Artigo

Não sejamos hipócritas

Evidentemente, nascer e crescer em meio à violência e a privações não é condição sine qua non para se tornar criminoso

Para que nenhuma mãe mais tenha de chorar sobre o corpo do filho morto [...], é preciso fazer muito mais do que abrir fogo na favela -  (crédito: Pablo Porciuncula/AFP)
Para que nenhuma mãe mais tenha de chorar sobre o corpo do filho morto [...], é preciso fazer muito mais do que abrir fogo na favela - (crédito: Pablo Porciuncula/AFP)

Cansada de violência, farta de ler notícias sobre pessoas assassinadas por causa de um celular, horrorizada com a história da moça desfigurada e morta porque não quis ficar com um traficante no baile funk, revoltada com a informação de que os "donos do morro" atiram em cachorros porque o latido deles atrapalham seus "negócios", confesso que, ao ver pela primeira vez a foto dos corpos enfileirados na Praça São Lucas, na Penha (RJ), não senti pena.

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Se "pena", aliás, for entendida como condescendência, clemência e compaixão, como definido por alguns dicionários da língua portuguesa, reafirmo: não tenho pena. Assim como você, achei um deboche a postagem de Oruam, o filho do traficante Marcinho VP: "Por trás do fuzil, tem um ser humano". 

E por acaso o ser humano que segura o fuzil enxerga algum traço de humanidade naqueles que julga, condena e executa no "tribunal do morro"? Nas mulheres torturadas em barris de gelo, nos homens queimados vivos nos "micro-ondas"; nas mães, que recebem pacotes com pedaços de seus filhos? 

Dito isso, também ressalto: se não tenho pena dos traficantes, muito menos aplaudo a operação orquestrada pelo governador Cláudio Castro (PL), que exala a questões eleitoreiras. É fato que os policiais foram recebidos por criminosos fortemente armados, mas também não se pode ignorar que houve mais mortes do que prisões. Onde que isso é sucesso? Lembrando que, ainda que o Código Penal previsse pena de morte, seria antecedida por um julgamento. 

Agora, convido o leitor a um exercício que fiz comigo mesma. Responda honestamente. 

Em que tipo de bairro fomos criados? Vimos, alguma vez na vida, gente baleada no meio da rua, seja por polícia ou bandido? Tivemos de nos refugiar de tiroteio debaixo da carteira da escola? Convivemos com nossas mães ou ficamos o dia inteiro afastados delas, enquanto cuidavam do filho dos outros? Fizemos aulas de balé, futebol, judô, inglês ou natação no contraturno escolar? Ganhamos o aparelho de telefone que as propagandas garantem indispensáveis à aceitação social? Ou o par de tênis?

Passemos à segunda fase do teste. Nossos filhos estão bem nutridos? Moram em locais minimamente habitáveis, servidos, pelo menos, por água potável, energia elétrica e saneamento básico? Quando doentes, recebem atendimento médico de qualidade? Têm acesso, no local de moradia, a parquinhos, quadras de esporte e espaços lúdicos? Quantas vezes viajaram na vida? Seus filhos se reconhecem nas manifestações artísticas e culturais do país, ou só se veem retratados como bandidos? 

Evidentemente, nascer e crescer em meio à violência e a privações não é condição sine qua non para se tornar criminoso. Mais de 110 mil pessoas habitam os complexos da Penha e do Alemão, e os traficantes são um pequeno percentual disso. Nós conhecemos quem mora lá. São nossas diaristas, as babás das nossas crianças, as que cozinham para a gente; são os funcionários que coletam o nosso lixo, limpam as escolas dos nossos filhos, costuram nossas roupas, nos atendem no comércio, carregam nossas compras, dão banho nos nossos cachorros. E os filhos dessas pessoas deveriam ter as mesmas oportunidades que os nossos. 

Volto a dizer: tenho tanto horror a bandido quanto você. Mas seria hipócrita se não reconhecesse que a desigualdade social é o ingrediente-base da receita do tráfico. Para que nenhuma mãe mais tenha de chorar sobre o corpo do filho morto — seja ela mãe de bandido, de vítima de bandido ou de policial —, é preciso fazer muito mais do que abrir fogo na favela. 

 


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postado em 03/11/2025 06:02
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