ARTIGO

Marcha das Mulheres Negras é um marco de refundação da democracia

Dez anos depois, as mulheres negras voltam às ruas para reafirmar o Bem Viver como projeto civilizatório

PRI-1611-OPINI -  (crédito: maurenilson)
PRI-1611-OPINI - (crédito: maurenilson)

» DANDARA DE PAULA, Gerente de Programas do Instituto Marielle Franco; INGRID FARIAS, Diretora de Articulação e Parcerias do Instituto Update; MARÍLIA NASCIMENTO, Coordenadora de Projetos no Brasil Instituto Update

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Em 2015, Brasília foi tomada por cerca de 50 mil mulheres negras vindas de todas as regiões do Brasil. Mais que um protesto, a 1ª Marcha Nacional de Mulheres Negras foi um gesto civilizatório profundo e simbólico. Ao ocupar as ruas com corpos, vozes e bandeiras, a Marcha reafirmou que o direito ao Bem-Viver — conceito herdado das cosmologias indígenas e oposto ao individualismo neoliberal — deve ser a base de uma democracia mais justa e plural. Ao mesmo tempo, mostrou que a luta pelo acesso pleno a direitos da população negra é, em essência, uma conquista de toda a sociedade brasileira.

Mas essa história não começa em 2015. Antes mesmo de "democracia" ou "feminismo" integrarem o vocabulário político nacional, mulheres negras já teciam com coragem e constância projetos de liberdade. De Dandara a Maria Firmina dos Reis, passando por tantas anônimas que sustentaram quilombos e revoltas, consolidou-se uma tradição de insubmissão que a pensadora Lélia Gonzalez chamou de amefricanidade: uma poderosa síntese de heranças africanas, indígenas e populares que reescreve a própria noção de democracia.

A Marcha atualiza essa tradição. Não fala apenas em inclusão, mas em refundação democrática verdadeira. Ao colocar no centro de sua agenda a Reparação e o Bem-Viver, denuncia o pacto da branquitude que estruturou a política brasileira e sustenta privilégios sob a aparência de neutralidade. E, ao mesmo tempo, projeta alternativas concretas: criação de um fundo de reparações, cotas para mulheres negras nos Três Poderes, um plano habitacional específico, redução dos juros em empréstimos, o fim do encarceramento em massa e o fortalecimento do SUS — propostas concretas que não cabem na lógica de um projeto de "democracia canibal". Essa expressão, cunhada pelo cientista político Marcos Nobre, descreve a forma como o sistema absorve e neutraliza demandas transformadoras e urgentes.

A potência disruptiva da Marcha nasce da posição estrutural das mulheres negras: situadas na encruzilhada entre racismo e patriarcado, mas também forjadas na resistência a ambos. Essa condição, como aponta a socióloga Patrícia Hill Collins, gera uma perspectiva analítica singular sobre os sistemas de dominação. Não se trata de uma política identitária restrita, mas de uma chave universalista. A partir de experiências específicas de opressão, a Marcha revela mecanismos que atravessam toda a sociedade e propõe mudanças capazes de beneficiar o conjunto da democracia e fortalecer o bem comum.

É por isso que falamos em refundação. A Marcha questiona a temporalidade liberal que trata o racismo como passado já superado e propõe justiça estrutural e histórica. Denuncia o genocídio continuado da população negra e, ao mesmo tempo, projeta formas circulares de vida comunitária e sustentável — capazes de desafiar o ideal de progresso linear da modernidade e inspirar novas formas de convivência.

O que está em jogo não é apenas memória ou reconhecimento. A contribuição das mulheres negras é decisiva porque nossa experiência de exclusão forjou capacidades críticas e propositivas fundamentais para democratizar a democracia de forma efetiva e duradoura. Sociedades mais igualitárias racialmente são também mais democráticas.

A década que separa uma Marcha da outra foi de acontecimentos emblemáticos e transformadores para o Brasil e o mundo. Tivemos a eleição de uma nova geração de lideranças de mulheres negras, o assassinato brutal de Marielle Franco, a pandemia de covid-19, eleições de governos de extrema direita no mundo, o assassinato de George Floyd. Mas, mesmo antes de tudo isso, ainda em 2015, as mulheres negras já apontavam caminhos e estratégias de resistência e futuro que nos ajudaram a atravessar esses tempos.

Em novembro de 2025, quando milhares voltarem às ruas em Brasília, a história estará novamente sendo escrita. E a pergunta que ficará para o Brasil será tão simples quanto radical: estamos prontos para refundar a democracia a partir das vozes que ela mais tentou silenciar?

O Bem Viver é um horizonte ético e político baseado na imaginação radical que, num país racista e patriarcal como o nosso, só nós, mulheres negras, podemos imaginar e construir com sabedoria e esperança.

 

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Por Opinião
postado em 16/11/2025 04:41 / atualizado em 16/11/2025 12:48
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