
» DANDARA DE PAULA, Gerente de Programas do Instituto Marielle Franco; INGRID FARIAS, Diretora de Articulação e Parcerias do Instituto Update; MARÍLIA NASCIMENTO, Coordenadora de Projetos no Brasil Instituto Update
Em 2015, Brasília foi tomada por cerca de 50 mil mulheres negras vindas de todas as regiões do Brasil. Mais que um protesto, a 1ª Marcha Nacional de Mulheres Negras foi um gesto civilizatório profundo e simbólico. Ao ocupar as ruas com corpos, vozes e bandeiras, a Marcha reafirmou que o direito ao Bem-Viver — conceito herdado das cosmologias indígenas e oposto ao individualismo neoliberal — deve ser a base de uma democracia mais justa e plural. Ao mesmo tempo, mostrou que a luta pelo acesso pleno a direitos da população negra é, em essência, uma conquista de toda a sociedade brasileira.
Mas essa história não começa em 2015. Antes mesmo de "democracia" ou "feminismo" integrarem o vocabulário político nacional, mulheres negras já teciam com coragem e constância projetos de liberdade. De Dandara a Maria Firmina dos Reis, passando por tantas anônimas que sustentaram quilombos e revoltas, consolidou-se uma tradição de insubmissão que a pensadora Lélia Gonzalez chamou de amefricanidade: uma poderosa síntese de heranças africanas, indígenas e populares que reescreve a própria noção de democracia.
A Marcha atualiza essa tradição. Não fala apenas em inclusão, mas em refundação democrática verdadeira. Ao colocar no centro de sua agenda a Reparação e o Bem-Viver, denuncia o pacto da branquitude que estruturou a política brasileira e sustenta privilégios sob a aparência de neutralidade. E, ao mesmo tempo, projeta alternativas concretas: criação de um fundo de reparações, cotas para mulheres negras nos Três Poderes, um plano habitacional específico, redução dos juros em empréstimos, o fim do encarceramento em massa e o fortalecimento do SUS — propostas concretas que não cabem na lógica de um projeto de "democracia canibal". Essa expressão, cunhada pelo cientista político Marcos Nobre, descreve a forma como o sistema absorve e neutraliza demandas transformadoras e urgentes.
A potência disruptiva da Marcha nasce da posição estrutural das mulheres negras: situadas na encruzilhada entre racismo e patriarcado, mas também forjadas na resistência a ambos. Essa condição, como aponta a socióloga Patrícia Hill Collins, gera uma perspectiva analítica singular sobre os sistemas de dominação. Não se trata de uma política identitária restrita, mas de uma chave universalista. A partir de experiências específicas de opressão, a Marcha revela mecanismos que atravessam toda a sociedade e propõe mudanças capazes de beneficiar o conjunto da democracia e fortalecer o bem comum.
É por isso que falamos em refundação. A Marcha questiona a temporalidade liberal que trata o racismo como passado já superado e propõe justiça estrutural e histórica. Denuncia o genocídio continuado da população negra e, ao mesmo tempo, projeta formas circulares de vida comunitária e sustentável — capazes de desafiar o ideal de progresso linear da modernidade e inspirar novas formas de convivência.
O que está em jogo não é apenas memória ou reconhecimento. A contribuição das mulheres negras é decisiva porque nossa experiência de exclusão forjou capacidades críticas e propositivas fundamentais para democratizar a democracia de forma efetiva e duradoura. Sociedades mais igualitárias racialmente são também mais democráticas.
A década que separa uma Marcha da outra foi de acontecimentos emblemáticos e transformadores para o Brasil e o mundo. Tivemos a eleição de uma nova geração de lideranças de mulheres negras, o assassinato brutal de Marielle Franco, a pandemia de covid-19, eleições de governos de extrema direita no mundo, o assassinato de George Floyd. Mas, mesmo antes de tudo isso, ainda em 2015, as mulheres negras já apontavam caminhos e estratégias de resistência e futuro que nos ajudaram a atravessar esses tempos.
Em novembro de 2025, quando milhares voltarem às ruas em Brasília, a história estará novamente sendo escrita. E a pergunta que ficará para o Brasil será tão simples quanto radical: estamos prontos para refundar a democracia a partir das vozes que ela mais tentou silenciar?
O Bem Viver é um horizonte ético e político baseado na imaginação radical que, num país racista e patriarcal como o nosso, só nós, mulheres negras, podemos imaginar e construir com sabedoria e esperança.
