ARTIGO

A alegria do Brasil veio da África

A diversidade étnico-cultural do Brasil não deve ser escondida, mas, sim, celebrada com satisfação. Isso é um trunfo, e um trunfo nosso, característica do povo do Brasil, cuja alegria veio da África

Opiniao 2111 -  (crédito: Caio Gomez)
Opiniao 2111 - (crédito: Caio Gomez)

José Sarney ex-presidente da República, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras

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Quando presidente da República, visitei Cabo Verde, então governado pelo meu saudoso amigo Aristides Pereira. Foi uma admiração baseada na sua história de lutador pela independência de Cabo Verde e por seu trabalho à frente daquele país. 

Foi uma recepção inesquecível. Na ilha da cidade de Praia, sede do governo, desembarcamos e fomos recebidos por uma multidão com galhos de árvores, tambores e uma grande alegria. Estava acompanhado por Jorge Amado.

Quando vi a alegria naquelas manifestações musicais, virei para Jorge e disse: "Você está vendo o que estou vendo?" E, em seguida, acrescentei: "Estou vendo na beleza dessa multidão em sua manifestação que a alegria do Brasil e do povo brasileiro veio da África. Você pode ver essa multidão aqui em Cabo Verde como eu posso ver no Maranhão, e você, na Bahia."

O sangue africano, fundamentalmente, contribuiu para a formação do caráter e da identidade do povo brasileiro, de tal modo que podemos afirmar sermos um país mestiço. Praticamente nenhum brasileiro pode negar que essa marca esteja presente em seu DNA.

Pois bem. É uma vergonha que a escravidão no Brasil tenha se prolongado até o fim do século 19. Mas a libertação dos escravos foi um dos maiores movimentos brasileiros na construção de uma consciência nacional contra o sistema de terror que a escravidão representava. 

O terceiro maior quilombo do Brasil foi comandado pelo Negro Cosme, líder do Quilombo da Lagoa Amarela, no Maranhão. A primeira coisa que fez no Estado foi fundar uma escola de leitura e escrita. Ali se reuniam quase 3 mil negros. Foi mártir, enforcado em Itapecuru-mirim, no Maranhão. 

Não me canso de dizer que, ao lado de Zumbi, a luta da raça negra deve invocar essa figura notável, heroica, brava e altamente revolucionadora, que nos deu o exemplo de querer para o seu povo a ascensão através da educação. 

No Brasil não podemos falar da Abolição sem invocar a figura de Joaquim Nabuco, que dedicou sua vida, sua obra e seu talento a essa causa, ajudado pelo maranhense Joaquim Serra, a quem o próprio Nabuco reconhecia que, sem ele, jornalista e lutador, a campanha da Abolição não teria sido o que foi. Foi seu assessor e companheiro. Infelizmente, Joaquim Serra morreu antes que a Abolição fosse proclamada.

A comemoração do centenário da Abolição ocorreu durante a minha presidência. Não quis fazer festa, mas marcar a data com a minha convicção de que a nossa luta contra a discriminação racial dos negros tinha tido, até então, apenas manifestações políticas, nas quais não se via nenhuma providência concreta para a sua ascensão social, única fórmula para a sua participação nas decisões nacionais e a extinção da discriminação. 

Criei a Fundação Palmares, que até hoje é o grande instrumento a promover esse destino. Por outro lado, como senador, sem que nunca se tivesse falado sobre isso no Brasil, apresentei no Congresso Nacional o primeiro projeto abrangente sobre cotas raciais e ações afirmativas, dando a oportunidade de os negros terem uma cota de participação não somente no ensino médio e no universitário, mas também em vários setores da sociedade, de modo a que eles ascendessem a camadas mais altas em nosso país.  E assim vejo na televisão, nas novelas, em telejornais e em diversos programas a participação do talento negro com seus valores, sua alegria, sua cultura e sua musicalidade, que eles trazem no sangue.

As cotas raciais e a Fundação Cultural Palmares têm ajudado na ascensão social, política e econômica dos negros no Brasil.

O que me inspirou não foi a motivação política, mas a do intelectual que sempre esteve ao lado da luta dos negros e ao lado de Afonso Arinos, que propôs a tipificação da discriminação de raça e cor (Lei Afonso Arinos, Lei nº 1.390/1951). Minha inspiração vinha também do exemplo americano, onde a política de inclusão racial funcionava desde o fim da década de 1960. 

Aqui no Brasil, iniciamos, em 1971, o movimento para a criação, em 1978, do Dia Nacional da Consciência Negra, homenageando Zumbi dos Palmares, e tornamos a data feriado nacional em 2023/2024, lei sancionada pelo presidente Lula. Os Estados Unidos iniciaram uma homenagem, em 1968, ao seu grande líder negro assassinado, Martin Luther King Jr., e tornaram a data feriado federal em 1983, com início em 1986.

A comemoração que se fez ontem no Brasil, com o Feriado Nacional da Consciência Negra, é motivo de orgulho para todos nós.

O Brasil é um país mestiço, o que tive a oportunidade de proclamar em discurso nas Nações Unidas. Muitos não compreenderam, envolvidos no espírito da discriminação. Essa diversidade étnico-cultural não deve ser escondida, mas, sim, celebrada com satisfação.

Isso é um trunfo, e um trunfo nosso, característica do povo do Brasil, cuja alegria veio da África. E isso foi expresso ontem pelo Dia Nacional da Consciência Negra.

Viva!

 

 

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Por Opinião
postado em 21/11/2025 06:00
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