Paulo Solmucci — presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel)
A decisão do governo federal de impor limites ao saque-aniversário do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) representa um retrocesso na autonomia financeira do trabalhador brasileiro. A partir de novembro, as novas regras reduziram drasticamente a possibilidade de antecipação, estabelecendo um teto de R$ 2.500 por ano, dividido em cinco parcelas de R$ 500, além de impor um intervalo mínimo de 90 dias para liberação dos recursos. Essa burocracia transforma um mecanismo simples e eficiente em algo quase inviável para quem enfrenta urgências no orçamento.
O saque-aniversário foi criado em 2019 com um objetivo claro: dar ao trabalhador acesso a parte do próprio patrimônio, sem depender de demissão ou aposentadoria. Em pouco tempo, tornou-se uma alternativa relevante para milhões de brasileiros. Mais de 26 milhões já utilizaram essa modalidade, e a maioria pertence à faixa de renda mais baixa, onde cada real faz diferença para manter as contas em dia.
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Não se trata apenas de conveniência, mas de justiça econômica. O FGTS é um recurso do trabalhador, acumulado ao longo dos anos, e deveria estar disponível para ajudá-lo a enfrentar momentos críticos. Ao impor restrições severas, o governo não apenas limita o acesso ao dinheiro, mas também empurra milhões para linhas de crédito com juros abusivos, como cartão de crédito e cheque especial.
A comparação das taxas é reveladora. Enquanto a antecipação do saque-aniversário tem juros de 1,79% ao mês, o consignado privado chega a quase 6%, e o cartão de crédito ultrapassa 10% ao mês. Em um cenário em que 76% das famílias estão endividadas, negar uma opção segura e barata é condenar o trabalhador a um ciclo de inadimplência. Essa escolha política não protege; ela fragiliza.
Outro ponto ignorado é o impacto social. Pesquisas mostram que a maior parte dos valores antecipados é usada para quitar dívidas, não para consumo irresponsável. Isso significa que o saque-aniversário atua como ferramenta de reorganização financeira, evitando que famílias entrem em colapso econômico. Ao restringir essa possibilidade, o governo desconsidera a realidade de quem vive com renda apertada e enfrenta juros extorsivos.
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Há também um efeito macroeconômico positivo que está sendo desprezado. Quando trabalhadores conseguem equilibrar suas contas, voltam a consumir de forma planejada, beneficiando setores como comércio, serviços e alimentação fora do lar. Essa circulação de recursos gera empregos e fortalece pequenos negócios. Limitar o saque-aniversário é, portanto, uma medida que prejudica não apenas indivíduos, mas toda a cadeia produtiva.
Outro argumento relevante é a segurança jurídica. Ao optar pelo saque-aniversário, o trabalhador renuncia ao direito de sacar o saldo integral do FGTS em caso de demissão sem justa causa. Essa regra já é controversa e deveria ser revista, pois penaliza quem busca planejamento financeiro. Em vez de corrigir essa distorção, o governo adiciona novas barreiras, tornando a modalidade menos atrativa e mais arriscada.
O discurso oficial de que as mudanças visam evitar "abusos" não se sustenta diante dos números. O FGTS encerrou 2024 com saldo superior a R$ 770 bilhões, plenamente capaz de cumprir sua função social e financiar programas habitacionais. Restringir o saque-aniversário não é uma questão de sustentabilidade do fundo, mas de controle sobre o dinheiro do trabalhador.
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Mais grave ainda é a incoerência da política econômica. Ao mesmo tempo em que amplia a faixa de isenção do Imposto de Renda (IR) para proteger os mais pobres, o governo retira deles a possibilidade de usar os próprios recursos para sair do endividamento. Essa contradição revela uma falta de sensibilidade com quem mais precisa de alternativas acessíveis.
O caminho correto não é limitar, mas aperfeiçoar. É possível manter a saúde do FGTS e, ao mesmo tempo, garantir liberdade ao trabalhador. O saque-aniversário não é ameaça; é oportunidade. E deveria ser tratado como tal.
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