ARTIGO

Hierarquia do luto

O que diferencia Isaac de Allany não é a violência da morte, mas o valor simbólico atribuído a cada vida

O valor simbólico atribuído a cada vida muda  -  (crédito: Maurenilson Freire)
O valor simbólico atribuído a cada vida muda - (crédito: Maurenilson Freire)

 Ainda hoje, me lembro de uma aula na faculdade de jornalismo, em 2016, logo nos primeiros semestres. O tema era valor-notícia e a apresentação dos critérios de seleção para uma reportagem: proximidade, novidade, notoriedade, relevância, inesperado, conflito, interesse humano e tempo. São esses parâmetros que orientam a escolha do que vira notícia. Com os anos de profissão, esse filtro se torna automático. (Muitas vezes) você até perde a sensibilidade sobre o que é ou não importante.

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Essa discussão voltou com força para mim em novembro de 2025, quando escrevi a reportagem O pacto da esquina: adolescentes juram devoção ao crime em troca de pertencimento. Naquele mês e em outubro, Brasília assistiu a uma sequência de episódios violentos em que menores de idade figuraram como autores e vítimas. Um dos casos de repercussão foi o de Isaac Augusto de Brito Vilhena, 16 anos, esfaqueado e morto durante um assalto na 112 Sul, em 17 de outubro.

O latrocínio ganhou as manchetes brasilienses (jornais, sites, TVs, rádios) por dias seguidos e, um mês depois, para relembrar, uma reportagem necessária e comovente publicada no Correio. Para além da gravidade do crime, tecnicamente, a ampla explicação midiática se modula nos parâmetros do valor-notícia: o fato ocorreu no centro de Brasília, em uma quadra de alto padrão; a vítima era muito jovem; filho de médico e enfermeira; e aluno do Colégio Militar.

A repercussão cutucou autoridades a se manifestar e acelerou a resposta policial na apreensão dos suspeitos — também adolescentes. Cabe aqui outro conceito clássico das faculdades de jornalismo: a teoria Agenda Setting, desenvolvida na década de 1970 por Maxwell McCombs e Donald Shaw. O estudo defende que o público tende a dar mais importância aos assuntos que têm maior exposição nos meios de comunicação.

A ampla divulgação do crime contra Isaac é necessária. A questão é outra: e os demais casos?

Menos de um mês depois, Allany Fernanda, de apenas 13 anos, foi assassinada com um tiro na cabeça disparado por um amigo. O crime ocorreu no Sol Nascente, dentro de uma quitinete em uma rua sem saída, cercada por becos pichados pelo PCC. Filha de pais desempregados e usuários de drogas, Allany não tinha residência fixa e circulava entre a casa da avó, no Setor O, e a da mãe, em Águas Lindas (GO).

O namorado — que estava com ela no dia do crime — era desconhecido pela família. Quando soube da trágica notícia, a mãe sequer sabia o endereço do imóvel. Nas redes sociais, os comentários (preconceituosos) soavam como uma justificativa: "Isso que dá ficar atrás de macho"

Midiaticamente, dois dias de jornal foram suficientes para "extrair" toda a história de Allany. Valor-notícia: ignorado. A região não importava, notoriedade, muito menos. Não houve nota de repúdio de autoridades nem homenagem pública, como no caso de Isaac. O que diferencia Isaac de Allany não é a violência da morte, mas o valor simbólico atribuído a cada vida. Quando a cobertura da imprensa é seletiva, o luto também se torna.

 

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postado em 29/12/2025 06:00
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