ENTREVISTA

"Há muito trabalho para a Lava-Jato", diz procurador Júlio Marcelo de Oliveira

Procurador critica Bolsonaro por falar em fim da corrupção e da força-tarefa. Ele também diz que se houver prorrogação do estado de calamidade para manter gastos, como o do auxílio emergencial, país perderá o controle do endividamento e poderá ter estagflação

Israel Medeiros*
Denise Rothenburg
Bruna Pauxis*
postado em 28/10/2020 06:00 / atualizado em 28/10/2020 07:36
 (crédito: Ana Rayssa)
(crédito: Ana Rayssa)

A distribuição das investigações da Lava-Jato para outros estados pode gerar perda de qualidade dos trabalhos. É o que defendeu o procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), Júlio Marcelo de Oliveira. Em entrevista ao programa CB.Poder, parceria entre o Correio e a TV Brasília, ele rebateu comentários de políticos de que os inquéritos da operação deveriam ser descentralizados. Atualmente, a “sede” da Lava-Jato é em Curitiba.

Oliveira, que atuou no impeachment da presidente Dilma Roussef, ao apontar as pedaladas fiscais da petista, fez um alerta sobre o rombo fiscal causado pelo auxílio emergencial e as consequências de uma eventual prorrogação do benefício para depois de 2020. De acordo com ele, isso poderia gerar consequências econômicas que deixariam a sociedade em um patamar parecido com o dos anos 1980, com inflação galopante e o país estagnado. Confira e entrevista:

O presidente Bolsonaro disse que a Lava-Jato não é mais necessária porque acabou a corrupção no governo. Acabou mesmo?

De modo algum. Foi uma frase muito infeliz e equivocada do presidente. Há mais de 400 inquéritos, de investigações em curso, só na força-tarefa de Curitiba. Há muito trabalho a ser feito, e não cabe ao presidente da República acabar ou não com a Lava-Jato. Isso é uma consequência do esgotamento dos fatos a serem investigados, que acontecerá em algum momento, e é uma atribuição do Ministério Público e do Poder Judiciário. Não tem razão para o Poder Executivo pretender interferir em uma operação como essa, que não só é uma das maiores da história do país, como, talvez, uma das maiores do mundo no combate à corrupção.

No Rio de Janeiro, há um estudo recente sobre a relação das milícias com o crime organizado. Como o senhor vê essa questão?

A situação da segurança pública no Rio é gravíssima. Há muitos anos, vem se desenvolvendo esse quadro de incapacidade da segurança pública de dar uma resposta à sociedade carioca, para que o cidadão possa andar na rua com tranquilidade e paz. Há morros dominados por tráfico e outros pelas milícias e agora que eles estão se associando, a expectativa é de que tenham um poder ainda maior. O estado tem de se equipar, com pessoas, materiais e inteligência. O Judiciário tem de dar uma resposta nos processos penais que são propostos. O sistema penitenciário tem de funcionar bem para isolar as lideranças, desmantelar as organizações. Todo um conjunto de órgãos tem de se articular para um enfrentamento dessa magnitude.

Tivemos o caso do André do Rap, que foi solto pelo ministro Marco Aurélio Mello, do STF. O deputado Lafayette, autor desse artigo que permitiu a soltura, disse que a ulpa não foi dele, e, sim, do ministro. O que acha?

Todos estão, a meu ver, errados. O deputado, que fez a introdução da norma, porque, do ponto de vista da exequibilidade, da operacionalidade, é inexequível. Os juízes não podem parar de julgar os casos para ficarem o tempo todo fundamentando novamente as prisões preventivas que já estão acontecendo. Isso é um volume de trabalho que vai tirar a eficiência do Judiciário. No caso do Supremo, tem o problema da distribuição de processos que permitiu que os advogados entrassem com nove habeas corpus e, depois, desistiram, porque não caíram com um ministro que achavam que seria simpático à causa. Quando caiu com o ministro Marco Aurélio, ele foi em frente e concedeu a ordem.

Essa prática é permitida?

Isso é uma fraude processual, que o sistema falho permitiu. Acontecia nos tribunais, mas foi eliminado por uma regra no novo Código de Processo Civil. O primeiro juiz para quem foi distribuído fica prevento. Se houver desistência depois do ingresso de uma nova ação, vai cair para ele. Então, não adianta fazer isso. No Supremo, isso não estava sendo observado. Agora, o ministro Fux (presidente do STF) disse que, a partir de agora, será. A meu ver, o ministro Marco Aurélio tem todo o direito de ter suas próprias convicções, mas acho lamentável que a gente não leve em consideração as consequências do funcionamento do sistema criminal das decisões que são tomadas. A gente não pode adotar aquele princípio jurídico “faça-se a justiça e pereça o mundo”. Se não olharmos para a realidade, nunca vamos aplicar o direito bem. Só para recapturar esse traficante já se gastaram mais de R$ 2 milhões. E esse não é o principal problema, mas é todo o mal que ele poderá fazer liderando a organização criminosa dele. É muito esforço no combate ao crime para depois colocar todo mundo em liberdade com essa facilidade.

E a segunda instância no Congresso?

Isso, a sociedade está esperando. A prisão em segunda instância é estrutural, dela depende o funcionamento efetivo do sistema penal, especialmente sobre os crimes de colarinho-branco. O autor do crime percebe que não tem chance de ser punido, então, pratica o crime. E se for descoberto, contrata advogado e espera o processo prescrever, como todos os outros fazem. Esse sistema incentiva a prática do crime.

Tivemos vários filhos de ministros, e até ministros, envolvidos em escândalos que, até hoje, não foram explicados. Como fica isso dentro do TCU?

É grave. O ideal é que esses inquéritos evoluam o mais rápido possível, para se ter esclarecida a inocência ou culpa do envolvido. Eu não entendo porque não é tão rápido. Está na Procuradoria-Geral da República, essas investigações passam de um procurador para o outro. Realmente, há uma diferença de agilidade nas investigações que acontecem em Curitiba e as que acontecem na PGR. Desde o início da Lava-Jato foi assim. Isso é uma consequência negativa desse foro privilegiado que não tem mais razão de existir.

Há, agora, a polêmica da vacina. O governo não quer que seja obrigatória, não aceita a da China, quer a da Oxford. Está certo?

É preciso fundamentar as decisões. Se vai comprar de um e não de outro, tem de mostrar quais as vantagens, mostrar a comparação. Os estudos clínicos, a comissão de cientistas da Anvisa, o Ministério da Saúde é que têm de fazer essa avaliação. Não deveria existir nenhum tipo de discriminação da vacina pela origem.

Não comprando, e a vacina sendo eficiente, pode ser considerado improbidade administrativa?

Se ele deixar de comprar uma eficiente para comprar uma ineficiente, sem dúvida. Se essa hipótese ocorrer, pode acabar na Justiça. Mas a gente ainda está distante de estabelecer a eficácia dessas vacinas.

E a obrigatoriedade da vacina?

Do ponto de vista lógico, faria sentido, porque a pessoa que não toma vacina não está colocando em risco apenas a si, mas também a comunidade. Mas, do ponto de vista operacional, político, não há como fazer isso de forma obrigatória. A gente precisa convencer as pessoas dos benefícios da vacina. Mas o ideal é que não precise ser obrigatório. É preciso que haja campanhas de conscientização para que o governo não precise ser autoritário.

O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, falou sobre a possibilidade de um plebiscito para a revisão da Constituição. Qual é o seu ponto de vista?

Extremamente temerária essa declaração e essa ideia. Seria: vamos refundar o Brasil do zero. Primeiro, teria de ter uma eleição só para isso, porque os atuais parlamentares não têm legitimidade para isso. Eles têm legitimidade conferida para fazer PECs, emendar partes. Fazer uma nova Constituição do zero teria de ser um sentimento nacional muito forte e com pessoas eleitas apenas para essa finalidade, que não poderiam se misturar com os congressistas. Isso foi um erro da Constituição de 1988, porque muito daquilo que foi estabelecido na Constituição foi estabelecido em benefício dos próprios congressistas. A nossa Constituição não é ruim, é muito boa. Os problemas de governabilidade que temos, grande parte decorre de má gestão econômica. Quando o país estava crescendo, com a situação fiscal bem, ninguém falava de Constituição, estava todo mundo feliz. Outra coisa é esse presidencialismo de coalizão. Presidente tem de angariar aliados mediante a distribuição de cargos, liberação de emendas. Isso é o que traz ingovernabilidade. O deputado disse que os juízes e procuradores são causa de ingovernabilidade. Não são as instâncias que lutam contra a corrupção que deixaram o Brasil ingovernável. São esses que atuam apenas movidos pelo interesse da corrupção.

Governo tem outro problema pela frente: o fim do auxílio emergencial. Tem toda uma discussão em relação à prorrogação. Qual é a saída?

Nós não vamos ter dinheiro para prorrogar no nível que foi gasto. Já foi prorrogado até dezembro, mais duas parcelas. Estamos gastando R$ 254 bilhões com auxílio emergencial, em um país que tem uma receita corrente líquida de R$ 1 trilhão, R$ 1,2 trilhão. Então, estamos gastando 20%, 25% da nossa receita corrente líquida com auxílio emergencial. É insustentável. Isso em gastos até o fim do ano. Os R$ 600 não são muito dinheiro, mas, para um país onde há muita pobreza, um sistema arrecadatório ineficiente e que está com endividamento alto, nós gastamos mais do que podíamos. Então, o Brasil foi um dos países que mais gastaram com a pandemia em proporção do seu PIB. Vamos ter de reduzir, e bastante, esses valores.

Como fazer isso?

Se ele insistir na ideia do Renda cidadã, precisa mostrar as fontes de recursos. Ele vai juntar programas já existentes, ou talvez, criar um imposto para financiar. Essa licença que a legislação da pandemia concedeu ao governo para se endividar por essas despesas acaba quando acabar o período de pandemia. Então, você não pode manter um programa continuado de custeio com recursos de endividamento. Uma hora a dívida explode e ela já está em um patamar muito elevado.

Mas, para o primeiro trimestre de 2021, tudo indica que o estado de pandemia será o mesmo.

Se prorrogarem o estado de calamidade para autorizar esse tipo de gasto, estaremos aumentando o buraco fiscal. Não existe mágica. E os investidores estão vendo. Nossa dívida vai explodir este ano. Se nós continuarmos nessa trajetória, vamos perder o controle da dívida. Vamos entrar naquela situação de dominância fiscal, em que a política monetária já não faz mais efeito para estimular ou não a economia. Voltaremos ao período pré-plano real. Aí, você joga taxa de juros para o alto, vive um quadro de estagflação: um país estagnado e com alta inflação. É o pior dos mundos. Hoje (ontem), o presidente editou um decreto da estratégia federal de desenvolvimento, em que ele coloca três cenários: um de referência, em que há o controle fiscal sem muitas reformas; um otimista, transformador, em que muitas reformas são feitas, o Brasil ganha produtividade e a economia cresce; e outro ruim, de descontrole da dívida pública, em que nós vamos perder o bonde da história. Esse cenário ruim tem uma possibilidade considerável de ocorrer. Eu sei que a vontade política é de fazer o bem, permitir à sociedade ter esse benefício, mas o fato é que ele é insustentável.

* Estagiários sob a supervisão de Cida Barbosa

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