EMBATE

PGR recorre contra a liberação de fichas sujas por ministro do STF

Vice-procurador-geral da República entra com recurso no STF para derrubar a decisão do ministro Kassio Nunes Marques que suspendeu trecho da Lei da Ficha Limpa e livrou da punição políticos vitoriosos nas eleições municipais

Sarah Teófilo
Renato Souza
postado em 22/12/2020 06:00
 (crédito: Nelson Jr./SCO/STF)
(crédito: Nelson Jr./SCO/STF)

O vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, entrou, ontem, com um recurso contra a decisão monocrática (individual) do ministro Kassio Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal, que, no sábado, suspendeu um trecho da Lei da Ficha Limpa, atendendo a uma ação do PDT. Na prática, a medida cautelar do magistrado poderia permitir que políticos com “ficha suja”, mas que disputaram as eleições municipais neste ano, assumissem os cargos.

A decisão de Nunes Marques foi tomada um dia antes do recesso do Judiciário, que começou no domingo, e seria analisada pelo plenário só ao fim do período. Medeiros pediu ao presidente do Supremo, Luiz Fux, a suspensão da liminar ou que todos os processos que tratam do tema fiquem “sobrestados”, ou seja, paralisados até decisão do plenário da Corte.

No recurso, o vice-procurador-geral apontou que a decisão tem, ao menos, cinco obstáculos jurídicos. Entre eles, o artigo 16 da Constituição, segundo o qual “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. O artigo foi também citado pelo ministro Marco Aurélio ao Correio — publicado no domingo —, quando o magistrado comentou ter visto com perplexidade a decisão do colega.

Medeiros pontuou que “a superação monocrática desse precedente obrigatório é ato que não encontra respaldo na legislação, sendo capaz de ensejar grave insegurança jurídica no relevante terreno do processo eleitoral”. Outro obstáculo apontado por ele consiste no fato de o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ter um enunciado prevendo que o prazo de oito anos de inelegibilidade é após o cumprimento da pena, “seja ela privativa de liberdade, restritiva de direito ou multa”.

Para o vice-procurador-geral, a decisão de Nunes Marques gerou uma quebra de isonomia no processo eleitoral. “Isso porque o ministro-relator deferiu o pedido de suspensão da expressão ‘após o cumprimento da pena’, tão somente ‘aos processos de registro de candidatura das eleições de 2020 ainda pendentes de apreciação, inclusive no âmbito do TSE e do STF’”, frisou.

O quarto obstáculo jurídico, segundo Medeiros, é o fato de o STF já ter discutido o assunto, em 2012, e declarado que a lei é constitucional, algo ressaltado, também, por Marco Aurélio. “Eu imaginei que todas as dúvidas estivessem afastadas, porque, quando o Supremo declarou constitucional a Lei da Ficha Limpa, ele o fez tendo a última palavra em colegiado sobre a lei”, disse o decano da Corte, na reportagem de domingo.

O vice-procuardor-geral relatou, então, que o tema foi debatido no Supremo, “com a observação de todos os órgãos da cadeia judicial, a começar pelo próprio TSE, que sempre foi deferente em relação ao pronunciamento do STF”.

Medeiros ressaltou que Nunes Marques errou ao dizer, em sua decisão, que os efeitos da norma só foram sentidos de maneira significativa pelos candidatos neste ano. O vice-PGR lembrou que ao decidir sobre a Lei da Ficha Limpa, o Supremo retroagiu e permitiu que a legislação atingisse fatos anteriores à sua publicação.

O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) entrou, ontem, com um pedido de amicus curiae (amigo da Corte, figura externa ao processo que oferece esclarecimentos sobre o assunto) na ação do PDT. Segundo o diretor nacional do movimento, Melillo Dinis, a ideia é tentar despachar com o ministro Fux e fazer “muito barulho” e chamar a atenção da sociedade para o tema.

Dinis elogiou a ação tomada pela PGR e diz temer que a medida cautelar de Nunes Marques abra um precedente perigoso para outras mudanças no âmbito do Congresso. De acordo com ele, já está sendo enfrentada uma investida contra a lei. Chegou a ser divulgado que o líder do Centrão, deputado Arthur Lira (PP-AL), estaria acenando para uma proposta de mudança na lei em troca de votos para presidir a Casa. O parlamentar negou. Dinis afirmou: “Estamos preparados para tudo. Se tem um tema que incomoda parte da política brasileira é a Lei da Ficha Limpa”.

Saiba mais

Caso em Goiás
A decisão do ministro Kassio Nunes Marques, do STF, sobre a Lei da Ficha Limpa, valerá especificamente para os políticos que ainda estão com o processo de registro de candidatura de 2020 pendentes de julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e no Supremo. É o caso, por exemplo, do prefeito eleito de Bom Jesus de Goiás, Adair Henriques (DEM), que teve o registro barrado pelo TSE.

Condenado por delito contra o patrimônio público em segunda instância, em setembro de 2009, ele teve o registro eleitoral para 2020 autorizado pelo Tribunal Regional Eleitoral, mas, no TSE, perdeu. Com a decisão de Nunes Marques, a defesa de Henriques pediu ao TSE que garanta a diplomação dele.

De acordo com o voto do ministro Edson Fachin, o prazo de oito anos de inelegibilidade deve ser contado a partir de 6 de maio de 2015, data em que foi finalizado o cumprimento da pena aplicada a Adair. O fundamento da decisão é exatamente o trecho da Lei da Ficha Limpa que, agora, Nunes Marques declarou inconstitucional.

Memória

Mobilização popular
A Lei da Ficha Limpa surgiu pela possibilidade criada na Constituição de 1988 de que os próprios eleitores apresentem propostas para alterar a legislação. Foi o quarto projeto de iniciativa popular a ser convertido em norma pelo Congresso. O texto tramitou por oito meses e foi alvo de manifestações e campanhas na internet e nas ruas pela aprovação.

Para virar lei, um projeto de iniciativa popular precisa ter a assinatura de, pelo menos, 1% dos eleitores em cinco estados. Em 2010, ano da aprovação da Ficha Limpa, eram necessários 1,4 milhão de assinaturas. O texto reuniu 2 milhões até o dia que foi apresentado. Além disso, recebeu aval da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e apoio de outros grupos, como o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE).

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