ELEIÇÕES 2022

Entenda as contradições de Damares sobre denúncias de exploração sexual

A ex-ministra Damares Alves falou, durante cerimônia religiosa, que tinha conhecimento de casos de tráfico de crianças no Pará, mas não apresentou provas e, agora, se contradiz

Aline Brito
postado em 13/10/2022 23:37 / atualizado em 13/10/2022 23:38
A ex-ministra da Mulher deu declarações conflituosas sobre as denúncias de crimes sexuais no Pará.  -  (crédito: Assembleia de Deus Min. Fama/Reprodução)
A ex-ministra da Mulher deu declarações conflituosas sobre as denúncias de crimes sexuais no Pará. - (crédito: Assembleia de Deus Min. Fama/Reprodução)

Nesta quinta-feira (13/10), a senadora eleita pelo Distrito Federal neste ano, Damares Alves, deu mais uma versão do caso envolvendo exploração sexual e tráfico de crianças na Ilha de Marajó, no Pará. A ex-ministra afirmou que, na verdade, a denúncia foi originada de conversas que ela tem “com o povo na rua”.

Inicialmente a futura senadora garantiu, em vídeo divulgado nas redes sociais pelo filho do presidente Jair Bolsonaro (PL), o senador Flávio Bolsonaro, que tem conhecimento de crianças de 3 e 4 anos que seriam abusadas sexualmente e teriam os dentes arrancados para praticar sexo oral, além de se alimentarem somente de comida pastosa para deixar o intestino livre para o sexo anal.

No discurso, Damares ainda enfatizou ter imagens que comprovariam os crimes sexuais. “Eu vou contar uma coisa para você que agora eu posso falar. Nós temos imagens de crianças nossas brasileiras com 4 anos, 3 anos, que quando cruzam as fronteiras sequestradas, os seus dentinhos são arrancados para elas não morderem na hora do sexo oral. Essa é a nação que a gente ainda tem, irmãos”, declarou para os fiéis no culto.

Entretanto, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, nesta quinta-feira, a ex-ministra disse que não pode falar de dados “sigilosos” e negou que tenha afirmado possuir esse conteúdo. “As imagens que eu falo são dos estupros de recém-nascidos. As imagens de crianças dopadas também foram encaminhadas pela ouvidoria”, disse, se referindo a outro caso citado durante o culto.

A ex-ministra dos Direitos Humanos, Mulher Família também não soube dar explicações claras à Folha de S. Paulo sobre as denúncias encaminhadas ao Ministério Público e citou três CPIs antigas que, supostamente, investigaram esse caso da Ilha de Marajó. Uma CPI de 2010, outra de 2013 e outra realizada pelo Ministério Público do Pará. Mas essas comissões não mostraram casos como os que Damares citou durante a cerimônia evangélica.

“As denúncias que chegam na ouvidoria eu não tenho acesso porque são dados sigilosos. Por lei, eu não posso ter acesso aos dados da ouvidoria, mas tudo que a ouvidoria coletou a ouvidoria encaminhou”, garantiu Damares. Ela ressaltou que as denúncias foram encaminhadas “para o Ministério Público, para a polícia, para os órgãos competentes. Os conselhos tutelares também recebem as denúncias”.

Ministério Público e Polícia cobram governo por provas

Contradizendo as afirmações de Damares, o Ministério Público do Pará e a Polícia Civil requisitaram ao governo federal provas dos relatos da ex-ministra. O ofício foi endereçado à atual chefe do Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Cristiana Britto.

"Solicitando que encaminhe a este órgão documentação existente naquele ministério, conforme afirmado pela então ministra em seu pronunciamento, a fim de que os relatos sejam investigados e todas as providências cabíveis possam ser adotadas", diz trecho do documento.

O delegado-geral da Polícia Civil do Pará, Walter Resende de Almeida, também encaminhou um pedido à pasta pedindo "com máxima urgência" os documentos, mídias e "tudo o mais que possa subsidiar o desenvolvimento dos necessários procedimentos investigatórios".

O Ministério Público Federal (MPF) foi outro que solicitou explicações. Damares chegou a fornecer ao órgão três relatórios para comprovar a veracidade da sua denúncia, mas as 2.093 páginas dos documentos não mostram nada que prova a veracidade das alegações feitas dentro da igreja evangélica. A análise dos documentos foi feita pelo jornal O Estado de S. Paulo.

Além disso, a CPI realizada pelo Ministério Público do Pará, citada pela ex-ministra, investigou casos de exploração sexual de crianças e adolescentes em todo o estado. Foram averiguados cerca de 100 mil casos entre 2005 e 2009 e, em nenhum deles, as circunstâncias eram como as declaradas por Damares. O ex-deputado federal Arnaldo Jordy, que foi relator da comissão em questão, garantiu que em nenhum momento houve registro de crianças que tiveram os dentes arrancados ou que foram submetidas a restrições alimentares para servir a um objetivo sexual.

"O problema da exploração sexual [na região] é antigo, e ela não conhece isso melhor que nós. O que ela alegou nós nunca ouvimos falar. Não precisamos da Damares espetacularizando uma situação que já é monstruosa. Agrava uma situação que, na prática, já é grave demais", afirmou Jordy à Folha de S. Paulo.

Programa "Abrace o Marajó" tem baixa execução

Outra afirmação de Damares diverge da realidade. No culto a ex-ministra falou sobre o programa "Abrace o Marajó" e contou ser perguntada constantemente sobre o motivo pelo qual o “Bolsonaro está fazendo o maior programa de desenvolvimento regional na Ilha do Marajó”. Mas a iniciativa citada, na realidade, não tem grande execução.

Ao ser questionada pela Folha de S. Paulo sobre o material audiovisual que deveria ter sido encaminhado para o MPF, Damares desviou do assunto e voltou a falar sobre o programa. “No vídeo eu falo do programa Abrace Marajó, mas nós vamos levar para todas as áreas de fronteira. Se você assistir o resto do vídeo [do discurso na igreja], eu falo fronteiras. Eu não tenho fronteiras só no Marajó. Tenho fronteira em todo lugar”, garantiu

Entretanto, como confirmou o jornal O Globo, em 2022 o programa não gastou nada. O governo empenhou R$ 51 mil no Abrace o Marajó, mas o recurso não foi usado. O orçamento previu uma verba de R$ 3 milhões para o programa este ano, mas, faltando apenas dois meses para o fim do ano, nem uma parcela desse valor foi gasto. Os dados são do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do Governo Federal (Siop).

Damares afirma que Bolsonaro trava uma “batalha espiritual”

Os supostos casos envolvendo crianças de 3 e 4 anos da Ilha do Marajó foram usados por Damares, que tem feito campanha para Bolsonaro, para falar sobre o presidente e conquistar votos dos evangélicos favoráveis à reeleição do candidato à presidência.

Na gravação do discurso da ex-ministra durante um culto na igreja Assembleia de Deus, em Goiânia, no sábado (8/10), ela afirma que, ao tomar conhecimento da realidade das crianças na Ilha do Marajó, Bolsonaro assumiu a missão de “ir atrás de todas elas” e que, por isso, “o inferno se levantou” contra o presidente. “A guerra contra Bolsonaro que a imprensa levantou, que o supremo levantou, que o Congresso levantou, acreditem, não é uma guerra política, é uma guerra espiritual”, garantiu.

Damares ainda ressaltou ter “o manto constitucional” que a permite “se expressar dentro da minha igreja”. “Tem coisas que eu não posso falar lá fora, mas aqui eu tenho a liberdade constitucional de manifestar a minha fé”, declarou.

Em seguida, Damares ainda relatou que “continuou abrindo as gavetas do Ministério” e descobriu casos de recém-nascidos que são estuprados. “Nos últimos sete anos explodiu no Brasil o estupro de recém-nascidos. Nós temos imagens lá no ministério, irmãos, de crianças de oito dias sendo estupradas. Nós descobrimos que um vídeo de estupro de crianças custa de 50 a 100 mil reais”, declarou.

Segundo a senadora eleita, Bolsonaro se levantou contra todos esses “horrores” e, por isso, trava uma batalha espiritual para ganhar as eleições. “A gente agora como igreja, a gente tem aqui uma decisão para tomar, a gente vai continuar esta luta e tirar essas crianças das mãos de moloque [deus amonita conhecido pelo sacrifício de crianças] ou nós vamos entregar essa nação?”, proclamou Damares se referindo à reeleição de Bolsonaro.

O vídeo do discurso da ex-ministra, divulgado por Flávio Bolsonaro, tem sido usado pelos bolsonaristas nas redes sociais que apoiam a permanência do presidente. Flávio, na publicação, atribuiu os casos das crianças ao PT e disse que o que acontece em algumas regiões é “monstruoso”. “Ainda há resquícios de PT pelo Brasil!”, exclamou o filho de Jair. “Contra a abuso infantil vote 22!”, concluiu.

Sobre o uso político desses relatos de crimes sexuais, Damares argumentou dizendo que não responde por Flávio Bolsonaro e que não sabe quem vazou a gravação. “Eu não sei quem vazou esse vídeo. A igreja estava transmitindo. E a imprensa deu repercussão. Eu não respondo por ele [Flávio]. Mas foi só ele que usou? Ou a esquerda está usando de forma inversa? A morte violenta de crianças e adolescentes no Brasil caiu 53% em três anos e meio. E ninguém fala disso”, rebateu em entrevista à Folha de S. Paulo.

Por conta das declarações, Damares é alvo de uma petição, com mais de 600 mil assinaturas, para que seja cassada. Uma das signatárias é a apresentadora Xuxa Meneghel, que compartilhou o link do abaixo-assinado no Instagram.

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