Entrevista | PAULO PACHECO | Embaixador do Brasil no Chile

"Tendência é de uma relação fluida" entre Brasil e Chile, avalia embaixador

Diplomata destaca perspectiva de crescimento do comércio bilateral entre os países, com chegada do presidente eleito Lula ao poder, a partir de primeiro de janeiro de 2023. Petróleo e automóveis são os principais produtos exportados pelo Brasil

Rosana Hessel
postado em 14/11/2022 03:55 / atualizado em 14/11/2022 12:33
 (crédito:  Rosana Hessel/CB)
(crédito: Rosana Hessel/CB)

Santiago do Chile — O resultado do segundo turno das eleições brasileiras, no último dia 30, com a vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre o atual chefe do Executivo, Jair Bolsonaro (PL), marcou uma guinada na imagem do país no cenário internacional. Além disso, tende a mudar as relações com vários países, principalmente, os vizinhos latino-americanos.

No caso do Chile, por exemplo, apesar de o comércio entre os dois países ter avançado nos últimos anos, a expectativa é de uma reaproximação dos governos, na avaliação do embaixador brasileiro em Santiago, Paulo Pacheco. "Por conta do resultado das eleições, a tendência agora é ter uma relação mais fluida", afirma.

Desde o início do governo do presidente Gabriel Boric, em março, houve um distanciamento das relações diplomáticas. O sociólogo Sebastián Depolo — indicado como novo embaixador do Chile no Brasil, a fim de substituir Fernando Schmidt, que ficou quatro à frente da diplomacia chilena em Brasília — ainda não foi recebido pelo governo brasileiro para apresentação das credenciais. E, com isso, o país vizinho continua sem um chefe da diplomacia na capital federal.

Não à toa, tão logo Lula foi declarado vencedor nas urnas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), as autoridades chilenas cumprimentaram o presidente eleito nas redes sociais e, no dia seguinte, o líder esquerdista chileno telefonou para o petista para cumprimentá-lo. E, de acordo com autoridades chilenas, Boric pretende comparecer à posse de Lula em 1º de janeiro de 2023.

O embaixador, há dois anos à frente da Embaixada brasileira no Chile, destaca que há grande potencial de crescimento do comércio bilateral, principalmente, de petróleo e automóveis, que vem crescendo e ganhou destaque neste ano. Entre janeiro e outubro deste ano, o fluxo resultante da soma de importações e exportações entre os dois países somou US$ 11,6 bilhões, superando o volume recorde de US$ 11,4 bilhões registrado em 2021. No ano passado, o Chile foi o quinto destino das exportações brasileiras, atrás de China, Estados Unidos, Argentina e Países Baixos (Holanda).

De acordo com o embaixador, o maior desafio do governo de Boric será fazer a reforma da Previdência, porque o modelo criado durante a ditadura de Augusto Pinochet e que o ministro da Economia, Paulo Guedes, queria implementar no Brasil, revelou um fracasso.

O diplomata vê um recente acordo comercial entre os dois países, considerado avançado para os padrões da Organização Mundial do Comércio (OMC), como uma das alavancas das relações bilaterais.

Pacheco ainda aponta o turismo entre as áreas com destaque entre os dois países e que estão se expandindo, inclusive, no número de voos com empresas retomando voos ou estreando no mercado brasileiro, como as de baixo custo. Uma delas, a Jet Smart, que começará a voar duas frequências partindo de Santiago para o Rio de Janeiro e Foz do Iguaçu (PR), a partir de dezembro.

A seguir, os principais trechos da entrevista concedida pelo embaixador brasileiro ao Correio:

Como estão as relações comerciais entre Brasil e Chile?

As relações comerciais entre os dois países seguem de vento em popa. No ano passado, apesar da pandemia, batemos o recorde histórico de US$ 11,4 bilhões de fluxo de comércio. E, neste ano, só de janeiro a outubro esse recorde foi superado com US$ 11,6 bilhões. E a participação do Chile nas exportações brasileiras, subiu de 2,5% para 2,7%, o que é importante, pois o país é o quinto parceiro comercial do Brasil. Outro dado que eu acho muito significativo é que o principal destino de investimento externos diretos do Chile é o Brasil. Quase 30% do total dos investimentos externos chilenos está direcionado ao Brasil. São quase US$ 38 bilhões de estoque de investimentos no país. Então, é uma relação econômica e comercial muito sólida e com potencial muito grande de expansão. O acordo de livre comércio que entrou em vigor no finalzinho de janeiro vai além do papel do Chile como parceiro estratégico do Mercosul.

Quando esse acordo foi firmado?

O acordo foi assinado em 2018, pelo ex-ministro de Relações Exteriores Aloysio Nunes Ferreira, do governo Michel Temer (MDB), e propõe disciplinas que são consideradas OMC plus, o acordo comercial mais moderno que nós temos hoje. Temos uma expectativa de que as relações bilaterais possam crescer ainda mais, porque um dos 24 capítulos mais importantes desse acordo diz respeito a compras governamentais. Agora, as empresas brasileiras vão ter acesso ao mercado chileno de compras governamentais e vice-versa. Então, eu já ouvi chilenos dizendo que o Brasil foi muito generoso nesse acordo, porque comparando as dimensões dos dois países, o que significa o mercado de governamentais federais em comparação ao chileno. Mas ainda estamos estudando a possibilidade de ampliação para estados e outros entes subnacionais.

Qual é a modernidade desse acordo em relação aos outros?

Ele introduz disciplinas como, por exemplo, comércio e gênero, comércio e meio ambiente, e a listagem de produtos que tenham sido previamente inspecionados pelas respectivas agências sanitárias. Isso facilita muito o comércio. Tem também a eliminação do roaming internacional, que impulsionará muito o turismo. Mas isso ainda precisa ser regulamentado pelos dois países. São diversas disciplinas consideradas muito modernas.

Alguma previsão de quando será a regulamentação dessas disciplinas?

Cada dispositivo tem uma data. O acordo está em vigor desde 25 de janeiro deste ano, mas é preciso a regulamentação de cada compromisso. No acordo de roaming, por exemplo, está previsto que esse dispositivo entraria em vigor um ano após a vigência. Porém como houve atraso nas reuniões das equipes, por conta da questão das eleições no Brasil, é muito provável que atrase um pouco. Por outro lado, por conta do resultado das eleições, a tendência agora é ter uma relação mais fluida.

A partir de 2023, serão dois governos de esquerda, no Brasil e no Chile. Como está a questão das relações bilaterais?

Em menos de cinco minutos depois do anúncio do resultado das urnas, o governo chileno cumprimentou o presidente eleito nas redes sociais do governo e da chancelaria. No dia seguinte, o presidente Boric telefonou para o Lula cumprimentando-o pela vitória. Foi uma reação muito rápida e muito festiva. Mas o governo aqui está enfrentando dificuldades.

É! O projeto da nova Constituição foi rejeitado em setembro.

O governo teve uma derrota muito importante que foi a não aprovação do projeto da Constituição. Sessenta e sete por cento dos chilenos rejeitaram o texto (da primeira proposta). Foi uma grande derrota. E, em função dessa derrota, o presidente precisou fazer uma reforma ministerial. E essa reforma ministerial sinaliza que a intenção de Boric é fazer um governo mais de centro esquerda. Não é possível um governo muito à esquerda, porque ainda há muitos conservadores no Chile. A minha impressão da sociedade chilena é muito conservadora e não é fácil você mudar isso. Os resultados das eleições anteriores ao plebiscito davam uma falsa impressão de que a maioria do país tinha mudado, que a maioria era progressista e refundacional. Todas as eleições eram de voto não obrigatório. Mas o plebiscito de 4 de setembro era obrigatório. Aí mostrou um retrato diferente, com resultados realmente interessantes.

Que resultados?

O governo não conseguiu vitória nem em comunas de maioria de povos originários, por exemplo. Eles perderam praticamente em todas as comunas. E, pouco antes do resultado do plebiscito, saiu uma uma enquete publicada no El Mercurio que me chamou muita atenção, que indicava que a maioria dos indígenas, que preferem serem chamados povos originários, os representantes originais preferiam o conceito de pluriculturalidade em vez da plurinacionalidade, que era o conceito que estava no texto constitucional e que foi adotado pela Bolívia. Então, você vê que existe uma dissintonia entre as lideranças desses povos originários que estavam representadas na assembleia constituinte e entre os próprios povos originários. Existe uma assimetria.

O governo brasileiro tentou implementar, inspirado no modelo chileno de privatização da Previdência, o regime de capitalização, que está em falência no Chile e está sendo revisto. Quais as chances de mudança nesse novo governo?

Esse é um dos temas mais emblemáticos da campanha do Boric. É um assunto que tem uma dimensão humanitária. A aposentadoria aqui (no Chile) não dá para nada e, por conta disso, começou a ter suicídios de idosos. O presidente chileno já apresentou uma proposta de reforma do sistema, que prevê um sistema misto, com uma parte controlada pelo estado e outra pela operadora de seguros, que vai ser escolhida pelo próprio indivíduo. Isso eu acho que é central. Foi uma das bases da campanha e é o tema mais importante atualmente. E o Chile era uma referência para o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes.

Guedes integrou o grupo dos "Chicago boys", que implementou a política econômica neoliberal durante a ditadura de Augusto Pinochet, considerado um "case de sucesso", mas que, na verdade, está caindo por terra.

Exatamente. O problema no Chile é a distribuição. Realmente, os números frios são muito positivos, mas há uma desigualdade evidente, apesar de os níveis de pobreza não serem parecidos com os do Brasil. A renda per capita dos chilenos é maior do que a dos brasileiros, e as favelas daqui não se parecem com as brasileiras. As casas são pobres mas são muito dignas. Mas ainda há muita desigualdade e o que eu acho que pesou na eleição chilena foi muito essa questão geracional. Toda essa turma ao redor do Boric é muito jovem. Ele tem 36 anos. Os ministros estão em uma faixa de 30 anos e os assessores, na casa de 20 anos.

E como está sendo a convivência com esse novo governo?

Muitos chilenos criticam Boric porque ele não usa gravata em eventos formais.

Isso demonstra como a sociedade chilena é conservadora. Essa geração do presidente e de seu entorno, como acontece no Brasil, não viveu a ditadura na carne. Eles eram crianças na época e não valorizam os 30 anos da democracia, porque viveram quase o tempo todo deles de adulto no atual regime. Não possuem a memória do que foi a ditadura chilena. Aqui (no Chile), mataram e torturaram até crianças. Eles também não sabem como foram os tempos bicudos na economia durante a ditadura. A pior recessão do Chile ocorreu em 1982 e esse pessoal também não tem essa memória. Uma coisa louvável (da nova gestão) é o discurso para corrigir distorções. Há muitos jovens e muitas mulheres nos cargos do governo. Você vai fazer uma reunião com as autoridades, e eles já estão com o laptop aberto, dando respostas em tempo real. Está sendo uma experiência muito inovadora aqui. A esquerda no Chile é uma novidade na região. Ela é diferente, tanto que a economista italiana Mariana Mazzucato, professora de Economia da Inovação e do Valor Público na University College London, questionou em um artigo se o neoliberalismo que nasceu no Chile deverá também morrer no país. Há uma expectativa muito grande sobre o experimento atual da esquerda no Chile.

Como assim?

Eles querem se distanciar da esquerda tradicional, com exceção da ex-presidente Michelle Bachelet (que é socialista), uma daquelas pessoas que eles acariciam. Ela apoiou o atual governo e o projeto da Constituição. Ela é a única socialista que eles respeitam. Mas, de um modo geral, o atual governo tenta se distanciar da centro-esquerda, porque a pauta deles vai mais além. É de combate à injustiça social, de igualdade, então, eles incorporaram muitos temas de uma agenda de esquerda do século 21, mas que é diferente da centro-esquerda que inclui meio ambiente, ideologia de gênero, diversidade de orientação sexual, em geral, não só mulheres LGBTQIA . É uma agenda diferente dessa centro-esquerda que governou o Chile.

E quais suas perspectivas para as relações bilaterais entre Brasil e Chile?

Estávamos com as relações político-diplomáticas congeladas, desde que Boric assumiu. O diálogo político-diplomático de alto nível foi interrompido. Não veio nenhuma grande autoridade brasileira visitar o Chile e a única autoridade chilena que esteve no Brasil foi para participar de uma reunião multilateral das Américas na área de Defesa. Agora, a tendência é de que haja um estreitamento das relações, porque eu espero que ocorra um destravamento da questão da indicação de embaixador do Chile.

Em que áreas pode haver esse estreitamento?

Acho que a tendência é de que, com o novo governo, a relação fique mais estreita em todos os quadrantes. A relação econômica continua fluindo e a entre as sociedades também, pois a quantidade de turistas brasileiros visitando o Chile vem aumentando. E tem uma companhia aérea ultra low cost, a Jet Smart, que vai começar a voar duas rotas partindo de Santiago para o Rio de Janeiro e Foz do Iguaçu (PR), a partir de dezembro deste ano, com preços de US$ 160 e US$ 120, ida e volta, respectivamente. Essa empresa ainda estuda operar, no ano que vem, uma rota para Navegantes, em Santa Catarina. Outra empresa passou a operar voos diretos de Santiago para Florianópolis, a Sky.

Algum voo direto para Brasília?

Ainda há intenção de retomar voos diretos do Chile para Brasília. E há conversas com empresas para operar voos diretos para o Nordeste. Mas outra área em que existe um intercâmbio muito forte entre os dois países é a cultura. A quantidade de artistas brasileiros que se apresentaram aqui, em outubro, foi impressionante.

E como está a questão de imigração?

Aumentou muito a quantidade de imigrantes por aqui. Agora, há muitos venezuelanos e haitianos e menos peruanos. Os chilenos reclamam que são mal atendidos no comércio pelos chilenos, e, quando são bem tratados, normalmente, é porque o atendente é venzuelano. A questão é que os próprios chilenos acham que a questão do serviço melhorou, por conta dos imigrantes venezuelanos.

Como está a pauta comercial entre Brasil e Chile? Houve mudanças recentes?

O Brasil aumentou a exportação de automóveis e de caminhões para o Chile, muito em função da facilidade e da vantagem comparativa que o país tem de poder fazer o transporte de mercadorias por via terrestre. O corredor bioceânico vai ser concluído em janeiro de 2025, mas o Brasil já consegue trazer mercadorias por caminhões. Isso é uma vantagem comparativa importante que foi muito explorada durante a pandemia. Favoreceu o aumento da exportação brasileira de caminhões, de automóveis e de peças de reposição também. Mas o produto que o Brasil mais exporta para o Chile é o petróleo. De janeiro a junho deste ano, 63% do petróleo consumido no Chile veio do Brasil. E o segundo produto mais exportado do Brasil para o Chile, neste ano, é o automóvel, e o país só perde para a China. O Chile é um mercado importante para o Brasil é estratégico no comércio entre os demais países do Pacífico.

Esses acordos são reflexo da falta da indústria no país?

Sim, mas tem sempre o outro lado. Durante a pandemia, os chilenos começaram a reconsiderar a produção de vacinas no país. Eles até abriram uma fábrica com ajuda dos chineses, porque, eles são muito rigorosos e foram pioneiros também na compra de vacinas e na adoção de medidas restritivas para o uso de máscaras.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.