Entrevista

"Brasil chafurda na mediocridade", diz Roberto Mangabeira Unger

Professor da Universidade Harvard diz que situação do país é resultado do atual governo e de gestões anteriores, de Bolsonaro, PT e PSDB. Na avaliação dele, o 8 de janeiro não foi uma tentativa de golpe e a política adotada para a Amazônia é arcaica

Henrique Lessa
postado em 20/05/2023 03:55
 (crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
(crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Roberto Mangabeira Unger, filósofo e professor da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, foi duas vezes ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República durante os mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Roussef. Considerado um dos mentores intelectuais do ex-candidato à Presidência Ciro Gomes (PDT), assim como o pedetista, se tornou um grande crítico das administrações petistas, às quais não poupa reprovações.

Controverso, Unger não tem receio de demonstrar sua opinião. Sobre o 8 de janeiro, diz que "não foi um golpe, nem uma tentativa séria de golpe", mas uma "manifestação de rebeldia de um pequeno grupo" instrumentalizado, segundo ele, pela mediocridade.

Unger está convencido de que o Brasil precisa de um novo pacto desenvolvimentista — que define como a união da inteligência com a natureza. E critica fortemente a condução da área ambiental. Na análise dele, o governo aponta para uma "política extrativista e arcaica", com a liderança da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.

Para o filósofo, há quem veja a Amazônia como um parque temático, mas essa visão não pode ser aceita pelo Brasil, que tem 25 milhões de habitantes na área da floresta.

Sobre a taxa de juros, Unger destaca que a redução é fundamental para o crescimento, mas não resolve tudo, como o presidente Lula tenta fazer crer. "Acho que é muito útil a ele denunciar o juro, que ele pode sempre culpar a estagnação econômica do país, pode culpar os rentistas, os banqueiros, os bancos, o Banco Central", disse o ex-ministro de gestões petistas.

A política externa de Lula não escapa das críticas do professor, que avalia ser apenas um teatro, uma política externa terceiro-mundista equivocada. "Serve como um teatro, buscando o protagonismo, o prestígio: o Brasil vai trazer a paz, vai resolver todas as guerras, o presidente vai passear no mundo e vai brilhar nos meios internacionais. Isso não é a forma séria de conduzir a política externa", frisa.

Na opinião dele, faltam para Lula pessoas que não sejam bajuladoras no seu entorno, que lhe digam quando ele está errando. O filósofo avalia que o presidente está "brincando de governar", sem pessoas que lhe ofereçam caminhos. "Está lá compondo ministérios, compondo ministério da mulher, ministério de negro, ministério do índio, nessa política que é uma política de brincadeira", lista, criticando a criação dos ministérios vinculados àquilo que ele conceitua como política identitária das esquerdas. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Como recebeu as notícias sobre a tentativa de golpe em 8 de janeiro?

O que houve em 8 de janeiro não foi um golpe, nem uma tentativa séria de golpe, foi uma manifestação de rebeldia de um pequeno grupo no país, que se deixou instrumentalizar e que não aceita as instituições republicanas, nem compreendem o seu sentido. O mais importante é que o Brasil, no mandato atual do presidente Lula, no mandato anterior de Jair Bolsonaro e nos mandatos anteriores do PT e do PSDB, chafurda na mediocridade. (...) A economia brasileira regrediu, qualitativamente, para um padrão anterior, e o nosso problema hoje é que não marchamos, necessariamente, para uma crise. Pode até haver pequenas crises pelo futuro, mas o mais provável é que isso continue indefinidamente, enquanto o agronegócio continuar sustentando. (...) Só podemos sair disso por um paradigma de desenvolvimento que afirme o casamento da inteligência com a natureza e nos coloque no caminho da economia do conhecimento, não só na manufatura avançada, mas em todos os setores da produção, inclusive no setor agrícola, e que respeite o primado da inteligência.

O governo quer incentivar os polos industriais e econômicos de saúde, defesa e naval. Isso indica o caminho desse casamento com a inteligência?

Por enquanto, é só conversa, absolutamente nada foi feito. O Ministério de Ciência e Tecnologia está entregue às baratas, não fizemos absolutamente nada em matéria de avanço tecnológico, estamos resvalando no tradicional. Na verdade, é a agricultura brasileira que está sustentando o país e é fruto do avanço científico e tecnológico, promovido, sobretudo, pela Embrapa, numa etapa anterior. Mas não continuamos com esse avanço. (...) Na Amazônia, uma política de desenvolvimento sustentável só pode ser uma variante da economia do conhecimento: ou é o extrativismo artesanal, sem escala, sem tecnologia, sem ciência e, portanto, sem futuro; ou é uma economia altamente vanguardista, que se baseia na ciência e na tecnologia mundiais. Não há nada no meio, ou é uma coisa ou é outra.

A gestão Lula diz que vai priorizar a questão do clima, inclusive na sua política externa. Qual é a sua expectativa?

A Amazônia, agora, está numa resistência passiva contra o que se está fazendo lá. A população da Amazônia já indica a sua oposição à política extrativista e arcaica que está sendo apontada pelo novo governo Lula, sob a liderança da ministra Marina Silva. Está num processo de resistência de 25 milhões de brasileiros. Eles têm de ter alternativas. Veem a realidade, para eles, ao contrário da juventude burguesa do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Amazônia não é um parque de fantasia, não é um parque temático, é lá que eles querem e terão que viver e trabalhar. Quando eu comecei a trabalhar lá, no início do mandato anterior do Lula, logo compreendi que o problema fundamental é o caos fundiário. Ninguém sabe quem tem o quê. Numa área em que há o caos fundiário, a pilhagem vai ser sempre mais atraente do que a preservação ou a produção. (...) Precisa haver nas elites uma ruptura entre a parte rentista predatória, financista e o elemento produtivo; precisa haver dentro da elite uma facção produtivista que associa produtivismo a nacionalismo, que luta contra o predomínio do rentismo financeiro e que busca o apoio da maioria nacional. Todos os milagres de crescimento na história moderna tiveram esse componente.

Essa elite rebelde pede hoje a redução dos juros?

Mudar a política de juros é uma preliminar indispensável, mas é só preliminar, é uma condição necessária, mas muito longe de ser suficiente. Tenho a impressão de que o que está acontecendo com o presidente Lula, com o governo Lula, é que arranjaram outro fetiche, que são os juros. Se conseguirem forçar a baixa dos juros, imaginam que vai haver uma explosão de crescimento. Não é verdade. É necessário, é uma condição necessária, mas não é uma panaceia empurrar a Selic para baixo por si só. Não vai criar um ciclo de desenvolvimento, nem sequer vai mudar o juro mais importante. É muito mais complicado do que isso. A correia de transmissão entre a Selic e o juro de mercado é muito complicada (...). Vamos ver quando chegar a hora de substituir o presidente do Banco Central, se vão realmente escolher alguém de convicção, como é o André Lara Resende, que tem opiniões fortes sobre a baixa de juro; ou se vão colocar um personagem flexível, que se adapte ao jogo de acomodações que permita ao presidente Lula conduzir essa política de duas vias: de um lado, denunciando os juros, e, de outro, insinuando, por baixo da mesa, que vai chegar a uma acomodação com os banqueiros.

É útil ao presidente denunciar os juros?

Acho que é muito útil a ele denunciar o juro, que ele pode sempre culpar a estagnação econômica do país, pode culpar os rentistas, os banqueiros, os bancos, o Banco Central por essa estagnação. Assim como é muito útil se opor às guerras culturais por meio das políticas identitárias e fingir que somos como os Estados Unidos, um país em que há essa dialética de contrastes sociais e culturais, em vez de sermos o que somos de fato: o país do sincretismo e da mestiçagem.

Nas relações internacionais, Lula e Marina demonstram ter grande credibilidade, mesmo com Lula se opondo à condução da guerra na Ucrânia...

A política exterior está maculada (...), uma política terceiro-mundista barulhenta, usada como compensação retórica para as rendições internas. A política exterior não deve ser isso, mas tem sido isso. Serve como um teatro, buscando o protagonismo, o prestígio: o Brasil vai trazer a paz, vai resolver todas as guerras, o presidente vai passear no mundo e vai brilhar nos meios internacionais. Isso não é a forma séria de conduzir a política externa. (...) O problema mais sutil da política exterior de uma potência emergente como o Brasil é como reconciliar a necessidade de buscar uma posição melhor dentro da ordem mundial existente, com a pretensão de rever aquela ordem, para que a ordem seja mais aberta aos nossos interesses e aos interesses do pluralismo econômico e político do mundo. Isso é que seria uma política exterior séria. Não é uma política de viagens, de acordos de fotos ao ápice, é uma política de buscar seriamente a reconstrução das nossas relações com as grandes potências do mundo e aqui, na América do Sul, exercer a nossa função natural de liderança.

O senhor não se vê esperançoso quanto à questão econômica ou da Amazônia?

Essa eleição foi produzida por uma polarização dentro do país, Bolsonaro e Lula, que acabou sacrificando todas as outras possibilidades. Agora, temos dentro do Brasil um outro Brasil que emergiu, uma maioria pobre, porém (com pensamento) pequeno-burguês, grande parte evangélica, protestante e com uma cultura que se opõe à cultura tradicional do Brasil. Temos de nos entender com este Brasil e buscar uma nova forma de inseri-lo na vida nacional de forma proveitosa.

E a extrema direita?

É uma distorção, uma degradação desse fenômeno social mais básico. Não tem uma consistência social específica. Vamos ver, no século 20, o que aconteceu na Europa: as pequenas burguesias foram demonizadas pela esquerda e se transformaram nos sustentáculos dos movimentos de direita, inclusive do nazismo e do fascismo. Elas tinham origem pequeno-burguesa, e foi essa pequena burguesia hostilizada e incompreendida pela esquerda. Não quero que aquele processo se repita no Brasil. Não podemos repetir aquele erro. Temos de abrir a cabeça e o coração e abordar este novo Brasil sem preconceito e conquistá-lo para uma posição melhor. Protesto contra esse discurso da civilização contra a barbárie, porque isso é tudo uma forma de açucarar e de esconder a realidade dos fatos, de dar uma justificativa a essa política titubeante, vacilante, que, agora, o presidente Lula está conduzindo, de acomodação. Contudo, acomodação com o Centrão, acomodação com os militares, acomodação com os mercados financeiros, e vai brilhar no estrangeiro. Esse é um prestígio de vida curta.

Mas fazer política não é acomodar os diferentes?

Há dois sentidos de acomodação: um é dizer que eu vou cooptar todo mundo, para cada um vou dar um pouquinho, e a cooptação vira um passo para a corrupção. Quando o Brasil observa essa política generalizada de cooptação, o comércio da corrupção, ele não está enganado. A cooptação acaba na corrupção, e isso é uma acomodação que não leva a lugar nenhum. É uma acomodação sem rumo. A acomodação em outro sentido é ver uma nova realidade: a social, um novo agente social, que é essa massa pobre de orientação pequeno-burguesa, e vir ao encontro dela. Há um outro tipo de acomodação, de buscar a construção institucional que permita redefinir como aliados aqueles que nós estamos acostumados a tratar como adversários. Essa é a acomodação superior, a acomodação do estadista, não a do cara que distribui açúcar.

Ciro Gomes, diversas vezes, igualou Bolsonaro e Lula. Os dois são a mesma coisa?

Não acho que sejam a mesma coisa. Tanto que apoiei Lula, votei em Lula e publiquei artigos no jornal defendendo a eleição dele, mas sem ilusões. Nos mesmos artigos em que eu defendia Lula, dizia o que eu achava que iria acontecer como mais provável. Está lá o presidente cercado de bajuladores, não tem ninguém forte ao lado dele, ninguém que lhe diga não, ninguém que lhe aponte outros caminhos. Então, ele está lá compondo ministérios, ministério da mulher, mistério de negro, ministério do índio, nessa política que é uma política de brincadeira, é uma política de evasão, de fuga dos problemas reais do país, inclusive os seus problemas de identidade coletiva. (...) Temo que essa retórica da civilização contra a barbárie seja usada como pretexto para continuar o que havia antes. Qual é a civilização? A civilização do beija-mão aos banqueiros e da distribuição de esmolas aos pobres, é isso que é a civilização? Posso dizer que não é essa civilização que o povo brasileiro quer, e não é isso que nós precisamos para levantar o país.

Quais são os seus próximos passos?

Estou tentando encontrar uma forma de intervir no debate brasileiro. Sei que fazer isso pelos canais tradicionais, só com os livros, com as palestras no circuito Ruy Barbosa, não serve, não resolve o problema. Se há uma ideia suficientemente poderosa, eu tenho certeza de que ela pode ser traduzida numa linguagem que qualquer popular consiga entender, não há obstáculo. O Brasil é um país singularmente disponível a receber mensagens. É isso que eu verifiquei quando andei o país. Agora, preciso saber como e com quais aliados vou poder contar nessa caminhada. Não tenho a menor ideia, então, vou descobrir. É pena que eu seja tão velho, mas vou compensar de alguma forma.

Confira a íntegra da entrevista

 

 


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