Anos de chumbo

31 de março de 1964, uma data para ser lembrada

À revelia do presidente Lula, entidades e parentes de vítimas da ditadura vão "descomemorar" os 60 anos do golpe militar

Logomarca do  grupo Coalizão Brasil por Memória, Verdade e Justiça para lembrar o aniversário do golpe -  (crédito:  Reprodução)
Logomarca do grupo Coalizão Brasil por Memória, Verdade e Justiça para lembrar o aniversário do golpe - (crédito: Reprodução)
postado em 17/03/2024 03:55

À revelia da decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de vetar manifestações em tom crítico à ditadura, na lembrança dos 60 anos do golpe militar de março de 1964, entidades da sociedade civil, movimentos sociais e parentes de vítimas da ditadura e políticos, incluindo parlamentares do PT, preparam uma agenda extensa de atos para não deixar a data passar em branco.

Lula determinou o cancelamento, no âmbito do governo, de solenidades, discursos e produção de material oficial alusivo à efeméride, como revelou o Correio, na semana passada. A principal agenda nesse sentido está ligada ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, que cancelou alguns eventos.

Do lado das entidades, ao contrário, são várias as ações programadas. O Instituto Presidente João Goulart anuncia uma série de atos, como palestras, debates e, também, uma missa em memória aos opositores ao regime que foram mortos ou desapareceram pela ação de agentes do regime ditatorial. A Comissão Nacional da Verdade concluiu, em seu relatório final, que 434 pessoas morreram ou desapareceram nos chamados anos de chumbo.

"Não dá para esquecer uma data como essa, e lamentamos a postura do presidente Lula. Lembrar dos que tombaram naquele período pela volta da democracia é um dever e uma obrigação de quem não quer aquele passado de volta", disse João Vicente Goulart, filho de Jango.

Um dos atos previstos é a Marcha da Democracia, em 1º de abril, que pretende repetir o caminho das tropas do Exército, que seguiram de Juiz de Fora (MG) para o Rio e Janeiro com o intuito de derrubar o presidente Jango. Agora, o trajeto será invertido. Uma caravana sairá da capital fluminense para a cidade mineira, onde estão agendados vários atos. A família de Jango participará.

Leonardo Boff

Apoiador há décadas de Lula e morador de Petrópolis (RJ), cidade que está no roteiro da caravana, frei Leonardo Boff estará presente. Ele faz uma convocação às pessoas para que participem. Sem citar o amigo presidente, o religioso diz que não é preciso de "apoio e conclamação de cima" para se protestar contra o regime ditatorial, numa referência à decisão de Lula de vetar atos oficiais nesse sentido.

"Convoco a sociedade civil, o povo, para fazer a marcha reversa, para lembrar o que foi esse golpe com suas trágicas consequências, para que nunca mais aconteça. Nós vivemos tempos trágicos, em que houve uma tentativa de golpe. Por isso, é preciso que a sociedade civil se mobilize. Não precisamos de apoio e conclamação de cima, mas de baixo, do próprio povo, que tem consciência da necessidade da democracia e de se evitar todo tipo de golpe e ameaças à vida, de pessoas que são torturadas, mortas ou desaparecidas", prega Leonardo Boff.

No trajeto, o grupo realiza ato em Petrópolis pelo tombamento da Casa da Morte, local onde opositores da ditadura foram detidos e, alguns, mortos. Os corpos de 12 opositores foram incinerados em fornos de uma usina de cana-de-açúcar em Campos dos Goytacazes (RJ), para onde foram levados.

A prefeitura de Juiz de Fora, por sua Secretaria de Direitos Humanos, organiza uma série de atividades, como a instalação da "Marca da Memória" no local que serviu de calabouço dos primeiro presos da ditadura.

O grupo Coalizão Brasil por Memória, Verdade e Justiça, que reúne dezenas de entidades, inaugurou, anteontem, sua "Agenda Nacional de Descomemoração do Golpe de 1964, 60 anos, Ditadura Nunca Mais", que apresenta toda programação alusiva à data.

"Com isso, pretendemos criar um trânsito de informações entre estados e municípios do Brasil, para ciência geral e para dar a dimensão da articulação e da mobilização em torno desta data, a força e a voz da sociedade civil. Será fundamental estar nas ruas para gritar em alto e bom som: Ditadura nunca mais! Violência de Estado nunca mais!", manifestou o movimento Coalizão.

"Equívoco" de Lula

Um dos organizadores da Marcha da Democracia, o deputado federal Reimont Santa Barbara (PT-RJ) classificou como um erro a decisão do presidente Lula de proibir atos oficiais que lembrem as violações cometidas pelos militares a partir de 1964.

"Acho um equívoco. Como parlamentar governista, sou do PT e defensor das políticas do governo, mas, com algumas coisas, não se pode tergiversar. Não dá para deixar passar em branco uma data tão importante como essa. É a descomemoração do golpe. A marcação da posição contrária ao que ocorreu. Temos uma Lei de Anistia que precisa ser revista, que não prevê a punição dos torturadores. Muitos deles já morreram, outros estão aqui. Não podemos ser condescendentes com eles. Portanto, acho um equívoco a postura do governo", disse o Reimont ao Correio.

Sobre a marcha, o parlamentar afirmou que terá um caráter simbólico importante e, também, didático, porque alunos serão chamados para acompanhar os atos e terão contato com o que aconteceu no passado.

Também organizadora da marcha, a deputada estadual Marina do MST (PT-RJ) diz não ser necessário o apoio do governo para que a mobilização nas ruas ocorra.

"É papel dos movimentos sociais ocupar as ruas e defender as nossas pautas. A reparação dos crimes da ditadura é uma delas. É importante lembrar também que Jango foi deposto por dar início às reformas até hoje necessárias no país, como a agrária, que o mundo todo fez, menos nós. Não podemos nos acomodar pelo fato de Lula ter sido eleito. Lembrar a ditadura é a melhor maneira de evitar que aqueles pesadelos nos assombrem novamente. São muitos. O da censura, da tortura, da morte, da mordaça, da fome, da hiperinflação, da corrupção sem investigação, são vários", disse a deputada. 

 

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