Próximo de completar seis anos, em 6 de setembro, o atentado contra Jair Bolsonaro ocorrido em Juiz de Fora (MG) alterou a vida, a rotina e a saúde da bancária e petista Lívia Gomes Terra, 43 anos. Também sindicalista, Lívia foi apontada nas redes sociais bolsonaristas em 2018 como alguém com participação no episódio e que teria entregado a faca a Adélio Bispo, autor do ataque contra o ex-presidente, momentos antes da tentativa de assassinato.
A acusação contra Lívia não é verdadeira, mas uma fake news que mexeu e transformou, até hoje, o seu dia a dia. A bancária entrou na Justiça contra um dos responsáveis pela divulgação da falsa informação. A postagem foi disseminada entre os seguidores de Bolsonaro, e Lívia passou a sofrer ameaças, temia sair de casa e, por um período, recebeu proteção de um segurança, além de passar a fazer tratamento psiquiátrico.
Na segunda-feira passada, Lívia viveu uma sensação de alívio e chorou com o trânsito em julgado da sentença de condenção do acusado, confirmada em segunda instância. Foram quase seis anos dessa angústia, relatou ao Correio. Agora, a decisão a faz, nas suas palavras, recuperar um pouco da vida que ficou para trás durante esse tempo. Ainda hoje, ela recorre aos ansiolíticos e antidepressivos.
"A decisão da Justiça é uma pedra, um ponto-final. É a vontade de recomeçar e reconstruir muitas coisas perdidas nesses seis anos. Tentar a voltar a ter vida social, como todo mundo. Que essa decisão me traga paz e tranquilidade, poder trabalhar e me divertir com os amigos sem ter que, num lampejo, voltar correndo para a casa por causa de pânico, de desespero. Encerro esse capítulo e quero recuperar o resto da minha vida", contou a funcionária da Caixa e dirigente do Sindicato dos Bancários de Juiz de Fora.
O sindicato onde Lívia trabalha fica a 100 metros do local onde Bolsonaro levou a facada, no movimentado calçadão da Rua Halfeld. As idas posteriores do ex-presidente à cidade eram um martírio para a petista, que, nas redes sociais, naquela época, apresentava-se como "Lívia Lula Livre Terra".
"Depois do que aconteceu, toda vez que Bolsonaro veio aqui eu ficava em casa, como eu estava naquele dia. Ou ia para a casa da minha mãe, que mora em outra cidade. Eu não ia para a rua e tinha sempre alguém comigo, de testemunha mesmo. Para testemunhar que eu estava em casa durante a passagem dele aqui. Dizia a mim mesmo: 'Calma, Lívia, você não teve nada com isso, está tudo tranquilo'. Não há racionalidade. Foi o trauma que ficou", relatou a bancária.
O autor da postagem que gerou a condenação e que mudou a vida de Lívia foi o engenheiro Renato Henrique Scheidemantel, que mora no Rio de Janeiro. Ele reproduziu a informação de que uma mulher de óculos escuros que aparecia na cena da tentativa de matar Bolsonaro e que ainda teria entregue a faca a Adélio — acusação improcedente na investigação — era a petista de Juiz de Fora, que estava a quilômetros dali no momento. Outras mulheres até tiveram suas identidades associadas ao crime, mas nenhuma com o perfil da petista e que viralizou nas redes à época.
Segundo a denúncia e a sentença, o post de Renato foi repostado 114 vezes. O bolsonarista foi condenado por calúnia e difamação a 10 meses e 20 dias de prisão e, no recurso também apresentado pela defesa de Lívia, foi sentenciado ainda a pagar R$ 20 mil de indenização. Como a pena é considerada pequena e o réu é primário, o autor da postagem teve sua condenação de prisão revertida em prestação de serviços comunitários.
"As consequências do crime são gravíssimas, eis que Lívia, devido às ofensas e ameaças, inclusive de morte, precisou de acompanhamento psiquiátrico, por conta de depressão e crise de pânico que desenvolveu", registrou o desembargador Flávio Horta Fernandes, relator da ação no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), negando recurso de apelação do acusado. Uma turma do tribunal o acompanhou por unanimidade.
Defesa do acusado
Em seu interrogatório, Renato negou a autoria do crime, argumentando que não conhecia Lívia e que as postagens não saíram de seu perfil. O engenheiro contou que trabalhava nos fins de semana, era filiado ao PSDB e não tinha como criar essa história. O homem também disse que a postagem alcançou, em duas horas, cerca de 500 compartilhamentos, o que seria impossível por meio de seu perfil, que afirmou ser seguido então por dois mil internautas.
A publicação nas redes de Renato teria sido feita 8 de setembro, dois dias depois do atentado, e a expressão "mulher que emprestou a faca" já havia sido utilizada no dia 6. Ele afirmou em juízo ainda que poderiam ter feito uma montagem em seu perfil, que, segundo ele, foi bloqueado pelo Facebook após a publicação. Disse ainda que não considerava sua ideologia de extrema direita.
O engenheiro também argumentou que não há no print juntado aos autos nenhuma identificação que vincule a publicação ao seu perfil e que é muito fácil criar perfis "fakes". Mas não postou nenhum esclarecimento ou retratação desmentindo as postagens contra Lívia, segundo o Ministério Público e a Justiça. O acusado alegou também que se tratou de algo montado com o objetivo de "vitimizar" a bancária e que é comum as pessoas utilizarem fatos falsos com objetivo de capitalizar politicamente.
Para a procuradora Paula Mello Chagas, porém, não há dúvida da ação de Renato. "A alegação defensiva de não ter restado comprovado que a publicação teria partido do perfil do querelado, é descabida, pois a imagem printada e juntada à inicial não deixa dúvidas de que se a publicação foi realizada pelo perfil do querelado Renato Henrique Scheidemantel. Absurda ainda a alegação do acusado de que tudo teve o objetivo de vitimizar a querelante (Lívia), sendo comum pessoas utilizarem fatos falsos com o objetivo de se capitalizar politicamente. Nada mais absurdo", manifestou-se a procuradora.
E completou: "É evidente que a querelante não teria 'inventado' a calúnia sobre ela para se capitalizar com síndrome do pânico, tratamento psiquiátrico e psicológico e medicamentos, além do fato de o sindicato precisar reforçar a segurança, diante das efetivas e sérias ameaças sofridas".
Lívia Terra celebrou o fim do caso, mas frisou que não gostaria que Renato fosse para a cadeia. "Não tenho esse olhar punitivista. A liberdade é algo muito sério e não gostaria de carregar esse peso. Do jeito que está, para mim, ficou de bom tamanho. Foi uma responsabilização na medida certa", sustentou.
Renato Scheidemantel foi defendido pela Defensoria Pública do Rio, que foi procurada pelo Correio. A reportagem pediu uma manifestação da Defensoria e do acusado. A reposta foi que a Defensoria não iria se manifestar neste momento.
O jornal tentou contato direto com Renato, mas não obteve retorno. À Folha de S.Paulo, em maio de 2022, Renato respondeu que a acusação contra ele se tratava de "uma armação enorme, ativismo midiático. Criaram um factoide a meu respeito. Vou recorrer e processar todo mundo que tem a ver com isso", afirmou à época, após sentença desfavorável a ele em primeira instância.
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