Enquanto os políticos e os governantes se distraem e nos distraem com as decisões extremas do presidente Donald Trump para manter os EUA como pivô global, ameaçado pela China, vamos perdendo a noção do que é relevante — um roteiro de prosperidade e poder cuja falta enfraquece a defesa de nossa autonomia no teatro da geopolítica.
Desenhando nosso papel na guerra armada por Trump contra o mundo: a fatia da economia no PIB global é da ordem de 1,9% — um cisco ao 5º maior país em área e o 7º mais populoso —, contra mais de 3% em 1980, quando China e Índia, atuais motores do dinamismo econômico e maiores alvos da Casa Branca, estavam atrás do Brasil, e EUA, Europa e a União Soviética, que nem existe mais, davam as cartas.
É isso que está na disputa reclamada por Trump para os EUA: quem corta e quem produz o baralho. Nesse jogo, estávamos fora da mesa.
Entramos pelo desespero de Bolsonaro, ao enviar o filho Eduardo à corte trumpista para envenenar a relação com o STF, pela ansiedade de Lula em reaver o protagonismo em baixa, e a vontade de Trump em usar o apoio ao ex-presidente para mandar recado aos governos mais recalcitrantes do Brics aos seus desígnios. Indonésia, ex-líder do finado bloco dos não alinhados no tempo da guerra fria, já cedeu.
Existisse um programa transformador, cumprido com afinco acima de rixas ideológicas e de interesses mesquinhos das disputas de poder político, e estaríamos mais preparados para não receber sanções, o significado da tarifa de 50% sobre nossas exportações aos EUA, nem admoestações por causa do processo contra Jair Bolsonaro e outras interferências reservadas a países arruinados economicamente.
Uma economia sem força em relação aos países cuja prosperidade se fez com a venda de manufaturados, sobretudo aos EUA, e puxada pela produção de commodities, entre grãos, carne, minérios e petróleo, o Brasil estava na linha inferior das tarifas impostas de maneira personalista por Trump, 10% — uma oneração genérica, que veio para ficar. O livre-comércio dificilmente terá sobrevida, tanto quanto a financeirização exacerbada da economia global.
De problema à solução
Sem ser parte das cadeias produtivas de manufaturados exportados para os EUA nem produtor final de bens intensivos em tecnologia - as duas partes do esvaziamento industrial em curso nos EUA desde os anos 1970 pelas próprias empresas americanas -, o Brasil, como toda a América Latina exceto o México, não era alvo das atenções do gabinete de Trump. Poderia, ao contrário, ser parte da solução.
Ainda que ele faça das tarifas um instrumento de guerra política, a razão que o move tem raízes domésticas e visa forçar os capitais dos EUA a voltar com as suas fábricas terceirizadas para países da Ásia, China em especial, para criar empregos, rendas, e energizar o antigo poderio econômico. Esse é o nexo do movimento MAGA, de Faça a América Grande Novamente. Ou entrega ou será sacrificado.
Complementarmente, também quer obrigar fabricantes com tecnologia própria e mercados globais do Japão, Coreia do Sul, Taiwan e mesmo China a investirem mais nos EUA, sem renunciar ao dólar. Esse é o preço que ele cobra para terem acesso ao mercado de capitais mais líquido do mundo e a um mercado consumidor de US$ 350 bilhões/mês.
Tais referências deveriam estar em pauta pelos dois protagonistas centrais da disputa política no Brasil, em vez de se moverem mais em causa própria e de seus grupos que pelo interesse nacional.
Se algo tinham a oferecer, e nunca o fizeram ou se empenharam em construir seriamente, seria um programa de desenvolvimento, com a mobilidade social apensada, que espalhasse pelo país o espírito empreendedor e inovador da Embraer, da WEG, dos gigantes do agro e da engenharia de construção, minada pela Operação Lava-Jato.
Ainda há tempo para isso, mas certamente implicará renovação de nomes e uma ação mais inteligente de nossos partidos políticos.
Realismo chinês é científico
Não se espere, no choque político em que acabamos inseridos muito mais por razões abjetas dos Bolsonaro, por um sinal de potências como a China e de governos europeus que vá além de gestos protocolares de solidariedade. Maior importador do país, a China é ator relevante tanto do problema como da solução global.
Mas a dinâmica chinesa tem sutilezas que parecem escapar a muitos estrategistas não só do Brasil. Sabe-se, por exemplo, que lá não há livre movimento de capitais e o renminbi é administrado para estar sempre depreciado em relação ao dólar. Secretário do Tesouro e negociador chefe com a China, Scott Bessent disse que, depois de algum entendimento, que está avançado segundo ambos os governos, a expectativa é trabalhar pela valorização do renminbi. Difícil...
Como diz Michael Pettis, professor de finanças da Universidade de Pequim, "com seu persistente excesso de produção e subconsumo, um renminbi revalorizado ajudaria a corrigir algumas das profundas distorções estruturais da economia chinesa". O elogiado modelo de desenvolvimento chinês contraria o populismo latino, baseado no distributivismo mesmo que à custa do investimento e da produção.
Diz Pettis, o mais prestigiado estrangeiro próximo a quem decide em Pequim: "As famílias efetivamente subsidiaram a economia por meio de transferências implícitas e explícitas, com a supressão do crescimento salarial, juros baixos, gastos excessivos em logística e uma moeda desvalorizada. Tais mecanismos funcionam da mesma maneira: transferem renda, direta ou indiretamente, das famílias para subsidiar o investimento e a indústria". Mudar esse modelo, diz ele, "exigiria mudanças nas instituições políticas".
Um longo caminho até 2026
Vê-se que os ataques de Lula ao dólar e ao sistema de pagamentos das transações globais sob controle dos EUA, como disse na cúpula do Brics, são temerários. À China, ciente de que Trump tem trunfos, mas não tem a posse do baralho de cartas, interessa uma governança geopolítica em dois, um G-2, admitindo, para tanto, até que Trump anuncie algum dia que dobrou Xi Jinping e fechou um grande acordo.
A essa altura, convém tirar da frente a campanha eleitoral de 26 antecipada por Lula, firmar posição contra a intromissão dos EUA nas decisões do STF, e insistir em negociações apenas comerciais. Falta ao governo canais de acesso como os que tem Bolsonaro e não será pelos canais diplomáticos que se abrirá portas a Trump. Nem reunindo executivos de empresas brasileiras e americanas, já que falta a todos influência em Washington e essa agenda é política.
E aí? Deixar a agonia de Bolsonaro pra lá, ignorar os rompantes de Trump e apelar aos donos de capital, nem todos brasileiros, que de fato têm razões para atrair a atenção de Bessent, tido pela imprensa chinesa como uma "figura sofisticada" entre os radicais do entorno de Trump. Ou esperar e começar a planejar 2027...