
Em um dos romances mais famosos do século XIX, o escritor francês Júlio Verne, conhecido por narrar aventuras fictícias lendárias, contou a saga de Phileas Fogg, um rico lorde inglês, e de seu empregado Jean Passepartout, que aceitaram o desafio de dar a volta ao mundo em apenas 80 dias — o que parecia um feito impossível à época. Bastou esse mesmo número de dias, desde a entrada em vigor da tarifa de 50% a produtos fabricados no Brasil importados pelos Estados Unidos, para que os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump se encontrassem do "outro lado do mundo" para negociar. Da mesma forma que a empreitada de Fogg e Passepartout, o encontro era considerado inimaginável 80 dias atrás.
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Durante esse período, a relação entre os dois líderes teve altos e baixos. Lula chega para a reunião após uma semana de críticas ao governo de Washington. A conversa entre os dois deve ocorrer às 7h da manhã deste domingo (26/10) no horário de Brasília (fim da tarde no fuso de Kuala Lumpur, capital da Malásia). Embora a tensão entre os dois países tenha diminuído desde que Trump admitiu conversar com Lula, o presidente brasileiro, ao longo da semana, voltou a tecer críticas ao tarifaço e às ações militares na costa da Venezuela, que o Brasil enxerga como uma ameaça de instabilidade na região. Trump, por sua vez, embora tenha falado pouco sobre a reunião publicamente, sinalizou que as taxas contra a carne brasileira trouxeram benefícios aos produtores dos EUA. O comportamento de ambos às vésperas da primeira conversa presencial lança dúvidas sobre se o Brasil vai realmente conseguir ultrapassar as diferenças ideológicas e avançar em negociações que diminuam o impacto das sanções econômicas.
Na sexta-feira, pouco antes de embarcar para a Malásia, Lula disse estar otimista com a reunião. Porém, é pouco provável que haja anúncio de ações imediatas após o encontro. "O acordo certamente não será feito depois de amanhã (domingo), quando eu me reúno com ele. O acordo será feito pelos negociadores, que vão ter que sentar — (Geraldo) Alckmin, Mauro Vieira e (Fernando) Haddad — com o pessoal do governo americano para negociar", declarou a jornalistas. "Eu queria que fosse ontem, mas, se for amanhã, já está bom. Quanto mais rápido, melhor", emendou, após ser questionado sobre quando o acordo será firmado.
A conversa entre os dois líderes foi preparada em sigilo entre os representantes da diplomacia dos dois países, da mesma forma como o encontro na Cúpula das Nações Unidas (ONU), em Nova York, no fim do mês passado, quando Trump disse que houve uma "química" com o presidente brasileiro. No último dia 16 de outubro, em Washington, o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, apresentou ao seu homólogo dos EUA, o secretário de Estado, Marco Rubio, um pedido para que a sobretaxa de 50% seja suspensa temporariamente enquanto os dois países negociam outras soluções. Além disso, o governo brasileiro pleiteia que os setores de café e carne bovina sejam excluídos do tarifaço.
Na quarta-feira, porém, o presidente Trump sinalizou que as tarifas impostas à carne brasileira tiveram um impacto positivo no setor pecuário americano, ao cobrar que os empresários baixem o preço interno do produto. A carne subiu 15% do começo do ano até setembro no país, pressionando o republicano para que adote medidas para reduzir os valores. "Os pecuaristas, que eu amo, não entendem que a única razão pela qual eles estão indo tão bem, pela primeira vez em décadas, é porque eu coloquei tarifas no gado que entra nos Estados Unidos, incluindo uma taxa de 50% sobre o Brasil", escreveu Trump em sua conta na Truth Social. Ele também anunciou um plano na quinta-feira para importar carne da Argentina, a taxas menores, como forma de baratear os preços — o que irritou os pecuaristas.
Sanções a ministros
Lula diz que não há "assunto proibido" na reunião. Ele voltou a citar, por exemplo, o acesso a terras raras pelos Estados Unidos. Além disso, mencionou pela primeira vez que vai pedir o fim das sanções econômicas e financeiras que atingem autoridades brasileiras, incluindo ministros de Estado e do Supremo Tribunal Federal (STF). "Também eu quero discutir um pouco a punição que foi dada a ministros brasileiros da Suprema Corte, que não tem nenhuma explicação, nenhum entendimento. Eu acredito muito na negociação", declarou Lula.
Nos bastidores do governo, há um otimismo cauteloso com a reunião. Por um lado, as conversas preparatórias foram vistas como positivas, com demonstrações de interesse de autoridades americanas na negociação. Do lado estadunidense, há interesse na exploração de terras raras e na redução de tarifas sobre o metanol dos EUA, feito principalmente de milho. Tais negociações, porém, são delicadas e podem levar tempo até a conclusão — envolvem questões de soberania e podem impactar as vendas do etanol brasileiro, feito da cana. Uma oferta mais imediata seria um investimento de US$ 40 bilhões pela Embraer nos Estados Unidos para a compra de peças de aviação americanas, o que também tende a agradar a gestão Trump. "É um trabalho em curso, um trabalho em andamento, em que, gradualmente, esses itens de ambas as pautas vão ser colocados frente a frente no âmbito do diálogo para entender como avançar nas diferentes pautas", analisa o diretor de Comércio Internacional da BMJ Consultores Associados, José Pimenta.
