Com uma série de violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985), incluindo graves crimes contra os povos indígenas, o Brasil segue com dificuldades em cumprir as recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), fixadas em 2014. Para o jornalista Rubens Valente, a omissão perpetua a impunidade, tendo como consequências o agravamento das crises humanitárias e milhares de mortes. Ele é integrante do Fórum: Memória, Verdade e Reparação para os Povos Indígenas e participou do Podcast do Correio, com as jornalistas Mariana Niederauer e Rafaela Gonçalves.
Valente lembrou que as violações graves, que se intensificaram durante a ditadura militar, persistem na democracia por meio da violência no campo e de manobras políticas e judiciais que ameaçam os direitos territoriais. A CNV fez 14 recomendações ao Estado brasileiro, incluindo a criação de uma comissão específica para investigar as violações contra os povos originários, mas nenhuma foi implementada.
"Não adianta um presidente civil, nesse momento, pedir desculpas por crimes cometidos por militares. As Forças Armadas deveriam reconhecer o que ocorreu, pedir desculpas e, a partir daí, tentar construir uma nova relação, uma nova abordagem em relação aos povos indígenas", disse o escritor.
A análise de apenas 10 dos mais de 80 casos de violações de direitos constatados pela comissão revelou 8.350 mortes de indígenas por ação ou omissão estatal no período. O fórum da sociedade civil, impulsionado pelo movimento indígena, detectou violações contra um mínimo de 80 povos. Para o jornalista, a complexidade e a vastidão do tema exigem uma comissão específica, uma vez que o Brasil possui mais de 320 povos indígenas, que falam mais de 200 línguas, em 418 terras demarcadas.
Valente ressaltou que a construção da estrada Perimetral Norte resultou na morte de mais de 200 yanomamis. Em 1966, Xavantes transferidos pela Força Aérea Brasileira (FAB) para outra aldeia foram vítimas de um surto de sarampo que dizimou cerca de 150 pessoas, com corpos sendo enterrados em covas coletivas.
"Essa história, por exemplo, ocorreu em 1966, dois anos depois do golpe militar, quando a Funai era governada por um oficial da aeronáutica. E eu pergunto: quem de nós sabe disso? Isso é estudado nas escolas? O que aconteceu? Então, há muito a ser revelado e debatido sobre esse período ainda. E esse período reflete até mesmo nos tratamentos que os indígenas têm hoje em dia. Os problemas mudaram de certa forma, mas continuam os mesmos", lamentou.
Marco Temporal
A resistência do Estado se manifesta na luta pela demarcação de terras, segundo o escritor. A tese do Marco Temporal, impulsionada por setores ruralistas, propunha limitar a demarcação apenas aos povos que estivessem ocupando suas terras em outubro de 1988, uma interpretação jurídica que, como destacou o entrevistado, inexiste na Constituição.
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O Supremo Tribunal Federal (STF) considerou a tese inconstitucional, atendendo a uma luta de mais de 10 anos dos povos indígenas. Contudo, o Congresso Nacional aprovou uma lei sobre o Marco Temporal sem consulta aos povos indígenas, contrariando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Diante do recurso indígena, o ministro Gilmar Mendes, em vez de julgar a inconstitucionalidade da nova lei, criou uma comissão de conciliação. Valente lembrou que o movimento indígena recusou-se a participar da comissão, alegando que a iniciativa visava reavaliar uma decisão já consolidada pelo STF.
"Vejam que o Supremo não está apenas discutindo recursos e processos. Ele está formulando uma política nova, uma legislação nova. E dentro dessa minuta foi incluída a possibilidade de mineração em terras indígenas e outras atividades econômicas. Ou seja, começou com uma discussão sobre a legalidade do Marco Temporal e virou discussão sobre mineração", destacou o Rubens Valente.
*Estagiário sob supervisão de Luana Patriolino
