A Comissão Especial sobre Inteligência Artificial da Câmara dos Deputados terminou o ano sem deliberar questões importantes para o uso de ferramentas nas eleições de 2026. Apesar de o relator do colegiado, deputado Agnaldo Ribeiro (PP-PB), afirmar que iria votar o Marco Regulatório da IA antes do recesso parlamentar, especialistas ouvidos pelo Correio apontaram a faltou tempo hábil para uma conclusão detalhada, que garanta um ponto de equilíbrio entre a inovação tecnológica, a liberdade política e a proteção da integridade do processo eleitoral. Com esse cenário, o Judiciário pode ser provocado para aparar as arestas — acirrando, mais uma vez, os ânimos entre os Poderes.
Agnaldo Ribeiro afirmou, em evento, neste mês, que seu texto irá incorporar o PL que cria o Sistema Nacional para Desenvolvimento, Regulação e Governança de Inteligência Artificial (SIA) — encaminhado pelo governo federal — e também o Redata, regime especial de tributação para serviços de data center no Brasil. Segundo ele, o documento deve ser finalizado nos próximos dias. A reportagem entrou em contato com o parlamentar, mas não obteve retorno.
Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular
O uso de inteligência artificial no contexto eleitoral é atualmente regulado pela Resolução nº 23.732/2024, que alterou a Resolução nº 23.610/2019, responsável por disciplinar a propaganda eleitoral. Entre as medidas vigentes, há a proibição do uso de deepfakes e a exigência de avisos claros sobre a utilização de IA em campanhas. O advogado Matheus Puppe, consultor da Comissão Especial de Direito Digital da Câmara, afirma que a ausência de um marco deixa um vácuo normativo que pode comprometer a integridade informacional do processo democrático.
"As ferramentas de IA generativa, por exemplo, são capazes de criar deepfakes, simular vozes, redigir textos e manipular informações em escala massiva. Isso pode ser usado tanto para desinformar quanto para direcionar narrativas eleitorais de maneira altamente sofisticada e pouco rastreável", disse.
Essa preocupação já foi destacada pelo próprio Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nas eleições municipais de 2024. Em junho daquele ano, a presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia, junho daquele ano, a ministra Cármen Lúcia falou em um "desaforo tirânico" por parte das redes sociais. Em fevereiro, a instituição havia proibido o deepfake — tecnologia que usa IA para criar imagens, sons e vídeos falsos extremamente realistas — em propagandas eleitorais.
Novo embate
Caso o Legislativo não resolva a questão até a disputa do ano que vem, a Justiça poderá regulamentar o tema, mas com limitações, segundo Puppe. "O TSE tem competência normativa no processo eleitoral e já editou resoluções importantes sobre propaganda, fake news e impulsionamento. No entanto, a regulação da IA exige uma abordagem interinstitucional e interdisciplinar", afirmou.
Segundo ele, os aspectos mais amplos da tecnologia (como transparência algorítmica, auditoria de sistemas e responsabilização civil e penal) devem ser amparados por uma lei nacional coordenada com determinadas agências.
"O Congresso tem o papel primordial de criar um marco regulatório nacional de IA, com princípios, categorias de risco, exigências de transparência, medidas de mitigação e penalidades. Mas isso não basta. O desenho regulatório ideal é o multissetorial, ou seja, cada setor impactado pela IA (eleições, saúde, financeiro, educação, consumo, etc.) precisa ter sua própria regulação infralegal, sob a tutela das autarquias e agências técnicas competentes", defendeu o especialista.
O advogado Marcos Jorge, especialista em direito eleitoral pelo IDP, destaca a competência da Justiça para definir o tema, mas aponta a importância da criação de uma lei específica que garanta a segurança democrática.
"Embora o TSE tenha atuado de forma rigorosa e com muita competência na regulação da tecnologia nos últimos pleitos, um maior detalhamento legislativo a partir de um marco seria importante, pois protegeria ainda mais o processo eleitoral contra a manipulação prejudicial à democracia, definindo obrigações de transparência, criando responsabilização das plataformas e estabelecendo limites claros para o uso político da IA", disse.
A advogada Izabelle Paes Omena de Oliveira Lima, membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB São Paulo, partilha do mesmo entendimento. "O TSE deve expedir novas resoluções, adequando os procedimentos já existentes ao cenário atual e tendo como base a experiência obtida nas eleições de 2024. Mas ele não pode criar um 'marco legal geral' de IA por resolução, isso é tarefa do Legislativo", reitera.
Desafios
Para o presidente da Comissão de Inteligência Artificial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seccional Distrito Federal, Ulisses Alves da Conceição, especialista em direito digital, essa lacuna normativa coloca a Justiça Eleitoral em posição delicada. "Por um lado, a ausência de lei específica não pode resultar em omissão diante de ameaças concretas à integridade do processo democrático. Por outro, o TSE encontra limites constitucionais que restringem sua atuação normativa", apontou.
"O tribunal possui legitimidade para estabelecer regras sobre identificação de conteúdos gerados por IA em propaganda eleitoral, determinar obrigações de transparência quanto ao uso dessas ferramentas por candidatos e partidos, além de definir parâmetros técnicos para detecção de deepfakes e material sintético enganoso, e criar procedimentos céleres para análise e eventual remoção de conteúdos fraudulentos", acrescentou.
Ele cita o impacto da morosidade do Legislativo sobre o tema. "A competência do Tribunal Superior Eleitoral para regulamentar o uso de inteligência artificial nas eleições existe e encontra fundamento constitucional e legal, porém sua atuação nessa matéria tem ocorrido fundamentalmente em razão da inércia legislativa do Congresso Nacional diante de uma tecnologia que já está amplamente disseminada entre a população brasileira e possui capacidade comprovada de influenciar diretamente os resultados eleitorais", concluiu.
O professor de direito digital Alisson Possa, do Ibmec Brasília, acredita que é necessário encontrar um ponto de equilíbrio entre a proteção dos direitos dos cidadãos contra eventuais danos decorrentes do uso das tecnologias.
"Trata-se de um desafio particularmente complexo, sobretudo em um contexto de rápida e constante evolução tecnológica. Há uma convergência relevante em diversos setores econômicos, como o financeiro e o da saúde, quanto à necessidade de adoção de regras protetivas para o uso da inteligência artificial. Ainda assim, grandes empresas internacionais de tecnologia exercem forte pressão contrária ao avanço de um marco regulatório mais robusto", disse.
Estando na reta final do ano, o advogado e cientista político Alexandre Basílio, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), acredita que é pouco provável que o Congresso Nacional conclua, ainda neste ano, um marco abrangente e detalhado de inteligência artificial com recorte eleitoral amadurecido antes das eleições de 2026.
"Soma-se a esse cenário o princípio da anualidade eleitoral, segundo o qual qualquer alteração normativa que produza impacto relevante no processo eleitoral deve ser aprovada até um ano antes do pleito, prazo que se encerrou em 4 de outubro de 2025. Trata-se de um tema complexo, técnico e transversal, que demanda tempo, consenso político e diálogo com diversos setores da sociedade", destaca.
Para o presidente do Instituto Brasileiro para a Regulamentação da Inteligência Artificial (Iria), Marcelo Senise, a comissão na Câmara lida com um tema complexo, e o excesso tem sido prejudicial para a deliberação dos parlamentares. "Existem mais de 230 projetos de lei sobre IA apresentados por deputados. É necessário que todos deveriam passar pela mesma comissão. Não podemos deixar uma legislação tão importante se transformar em uma colcha de retalhos, gerando o próprio caos Legislativo", disse.
"O impacto disso para o ano que vem é devastador: não teremos um conjunto normativo robusto capaz de garantir leis que protejam as próximas eleições do uso malicioso da IA. Para que as mudanças na lei eleitoral tenham validade, elas precisam ser aprovadas no ano anterior ao pleito", acrescenta Senise.
O cientista político Elias Tavares acredita que o tema será o novo cabo de guerra entre os Poderes no ano que vem. "O Legislativo critica muito o protagonismo do Judiciário, mas esquece de olhar para a própria responsabilidade. Se existe um poder capaz de se impor institucionalmente ao Judiciário, é o Congresso Nacional. Quando o Parlamento não legisla sobre temas centrais, como o marco regulatório da IA, ele próprio abre o precedente para que o Judiciário tome a decisão que julgue necessária", disse.
Tavares lembra o debate sobre fake news em eleições anteriores, em que o Judiciário tomou a frente. "O Congresso não avançou, o vácuo normativo se formou e o TSE acabou ocupando esse espaço em pleno ano eleitoral. Agora, caminhamos para um cenário muito semelhante, só que com um desafio ainda maior".
Na Justiça
As normas que irão regulamentar as Eleições Gerais de 2026 estão em elaboração na Justiça. As resoluções devem ser aprovadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) até março, após a realização de audiências públicas para colher sugestões da sociedade. Enquanto isso, permanecem em vigor os dispositivos atualmente aplicáveis à propaganda política e ao uso de tecnologias digitais.
No pleito municipal de 2024, a propaganda eleitoral na internet foi disciplinada, entre outros instrumentos, pela Resolução nº 23.610/2019, que passou a vedar o uso de inteligência artificial para a criação e disseminação de conteúdos falsos. As mudanças também estabeleceram parâmetros para coibir práticas de desinformação, incluindo o uso de recursos tecnológicos capazes de simular imagens, áudios ou vídeos com potencial de induzir o eleitor a erro.
O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP) tem adotado uma atuação preventiva e educativa no enfrentamento à desinformação relacionada ao processo eleitoral e a urna eletrônica. Entre as iniciativas, está a produção de conteúdos informativos com linguagem acessível e técnicas de otimização para mecanismos de busca (SEO), com o objetivo de ampliar o alcance das informações oficiais. Matérias explicativas publicadas pelo tribunal passaram a figurar entre os primeiros resultados em buscas no Google sobre temas como fraude na urna eletrônica e identificação de fake news.
Durante as eleições de 2024, a atuação do influenciador e candidato Pablo Marçal à Prefeitura de São Paulo também trouxe debates sobre o uso de ferramentas digitais e estratégias de campanha nas redes sociais. A Justiça Eleitoral de SP suspendeu os perfis dele no Instagram após a mobilização de um concurso de cortes de vídeos remunerados para amplificação de sua campanha.
* Estagiário sob a supervisão de Luana Patriolino
