Saúde

Fissura labiopalatina deve ser corrigida com cirurgia o quanto antes

Simulador ajuda a garantir a precisão da cirurgia, que é o primeiro passo para tratar a fissura labiopalatina — malformação fetal que acompanha a criança por toda a vida

Carolina Marcusse*
postado em 01/05/2022 07:00 / atualizado em 02/05/2022 17:00
Médicos no workshop da Smile Train com o Simulare, aprendendo a realizar a cirurgia -  (crédito:  Kashi Sara Halford/Divulgação)
Médicos no workshop da Smile Train com o Simulare, aprendendo a realizar a cirurgia - (crédito: Kashi Sara Halford/Divulgação)

Fissura labiopalatina é o termo utilizado para explicar a fenda do lábio, do palato (popular céu da boca) ou de ambos que acomete milhares de pessoas no mundo. Popularmente conhecida como lábio leporino, suas causas são incertas, pois se trata de uma malformação fetal que pode ter sido causada por uso de drogas, medicações, infecções, questões genéticas, deficiência de algumas vitaminas, como a B9 (ácido fólico) e até desnutrição. No entanto, mesmo com todos os cuidados e sem nenhum desses problemas, não é nula a possibilidade de ter um filho com a fissura.

A origem é embriológica e ocorre até a 12ª semana de gravidez. A estimativa é de que a proporção de aparecimento da doença seja de um a cada 650 nascimentos, segundo o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/Centrinho), da Universidade de São Paulo (USP). O diagnóstico da maioria dos casos de fendas no lábio pode ser feito por meio de ultrassom, e o de fendas no palato, em algumas circunstâncias, somente após o nascimento. A correção é feita de forma cirúrgica e o protocolo de cuidados, de acordo com cada caso particular.

Vida com a fissura

 2022. Crédito: Kashi Sara Halford/Divulgação. Revista. Saúde. Clara Pereira, 12 anos, que realizou cirurgia para a fenda labiopalatina.
2022. Crédito: Kashi Sara Halford/Divulgação. Revista. Saúde. Clara Pereira, 12 anos, que realizou cirurgia para a fenda labiopalatina. (foto: Kashi Sara Halford/Divulgação)

Foi logo após o nascimento que Karina Pereira descobriu que sua terceira filha, Clara, tinha uma fissura no palato e unilateral na boca (fenda em um lado do lábio). À primeira vista, ficou surpresa, pois, como nos exames de ultrassom os dedos da bebê estavam na boca, não tinha sido possível visualizar, no pré-natal, que a criança apresentava a falha. "Eu não tinha nenhuma informação sobre o assunto, nem sabia do que se tratava", conta a mãe, que foi informada pela chefe de pediatria do hospital sobre o que era a fissura e quais seriam os próximos passos.

Moradoras do Rio de Janeiro, mãe e filha foram direcionadas para o Hospital Municipal Nossa Senhora do Loreto, centro de referência no tratamento de casos de fissura labiopalatina no estado. Lá, Clara teve cuidados adequados, incluindo os relacionados à nutrição, como uma placa para fechar o céu da boca e auxiliar na sucção do leite e outros cuidados, para que ela não ficasse sem o leite materno nos primeiros meses de vida. A mãe tinha contato constantemente com as pediatras e profissionais, que sempre a tranquilizavam e auxiliavam.

Aos seis meses, Clara passou pela primeira cirurgia, para corrigir o lábio. Ao longo dos 12 anos de vida, submeteu-se a outras cinco operações para chegar ao melhor resultado possível, de acordo com seu quadro. Sob cuidados de cirurgiões, pediatras, fonoaudiólogos, psicóloga, ortodontista e terapeuta ocupacional, a estudante consegue ter qualidade de vida, o que ela atribui aos profissionais envolvidos. "Tenho sentimento de muita gratidão por todos", emociona-se e sonha em estudar odontologia para cuidar de jovens com a mesma realidade.

Há seis anos, Clara conheceu o grupo Coral Smile Train (@saudecriancailha), programa patrocinado pela ONG de mesmo nome que, mundialmente, contribui para o tratamento de fissuras e formação de equipes multidisciplinares. O coral é coordenado por uma fonoaudióloga, uma regente musical (maestra) e uma assistente social. O principal objetivo é que o "paciente com fissura trabalhe, a fala de forma lúdica, por meio da música, dos tons e dos ritmos", segundo a organização. A atividade não visa substituir o tratamento fonoaudiológico, mas, sim, potencializá-lo.

Clara, que se considera uma pessoa tímida e não queria se juntar ao coral no começo, percebeu a melhora na fala, na concentração e na sociabilidade. Hoje, recomenda de forma enfática que crianças com fissuras se envolvam em grupos como esse. A mãe, Karina, conta que, além da amizade entre os pequenos cantores, que compreendem as realidades uns dos outros e se identificam, os responsáveis criam uma rede de referências e trocas. "A gente vira uma família. Todo centro de tratamento deveria ter um coral", afirma.

A cirurgia

Assim como foi com Clara Pereira, a cirurgia não é algo simples e nem sempre decisiva. “É uma cirurgia de alto grau de complexidade, como as cardíacas e neurológicas”, afirma Marconi Delmiro, médico cirurgião do Hospital Regional da Asa Norte (Hran), que já realizou centenas de procedimentos em crianças com fissura labiopalatina. A intervenção deve ocorrer entre os três e os seis meses de vida, nos casos de fissuras labiais; já nas aberturas de palato, a partir do primeiro ano. Se há ocorrência dos dois tipos, as operações devem ocorrer uma de cada vez, priorizando a do lábio e, na idade certa, a do céu da boca.

Existem técnicas diferentes dependendo do profissional, mas a diversidade não é um problema se o resultado for uma cirurgia de sucesso para o paciente. “Se existem muitas técnicas, é porque o problema é difícil de tratar”, explica Delmiro. Em determinados quadros, pode ser necessária uma cirurgia de enxerto ósseo para juntar a fissura que passa atrás da linha da gengiva.

Além disso, o médico afirma que a ciência está em constante processo de evolução e, por isso, novas tecnologias vão sendo desenvolvidas e refinadas. Também recomenda aos responsáveis que não posterguem a cirurgia, pois, quanto antes for realizada, melhor para a fala, que pode ficar prejudicada, caso o cérebro se adapte a falar de forma diferente, tornando o tratamento mais difícil.

“A voz é a vida da gente, é a comunicação”, finaliza o médico Delmiro, reiterando que a fala é importante para a autoestima e independência. Além disso, problemas em se comunicar, como a fala anasalada ou fanha podem levar pessoas com fissuras a sofrerem com bullying e dificuldade de se relacionar, o que pode gerar sequelas psíquicas.

Smile Train

A organização sem fins lucrativos Smile Train opera em mais de 90 países e, no Brasil, desde 1999. A instituição atua em diversas frentes para realizar a cirurgia, o tratamento e trazer qualidade de vida para acometidos da cirurgia de fissura labiopalatina de forma gratuita. Hoje, tem um foco importante na formação de profissionais para realizar o tratamento adequado, já que, por não ser uma cirurgia simples, não são todos os profissionais que estão aptos. A Smile Train conta com diversas formas de capacitar os médicos, como a mais recente tecnologia, o Simulare.

Nova tecnologia

O Simulare é um modelo 3D feito à base de silicone que replica um quadro de fissura labiopalatina. Produzido por uma divisão da Smile Train, apresenta as mesmas dificuldades de uma cirurgia real, mas sem os riscos inerentes do aprendizado com um paciente. O molde tem camadas, como o corpo humano, com mucosas, textura da pele e profundidade, para que as simulações sejam o mais real o possível. "É muito difícil reverter uma cirurgia mal feita, por isso, visamos empoderar médicos locais para que possam realizar o procedimento", explica Marina Marot, diretora de comunicação da Smile Train na América Latina e Caribe.

Além do Simulare, a Smile Train financia hospitais locais para oferecer a cirurgia, expandindo o acesso. Somado a expansão do acesso às cirurgias, conta com projetos para complementar o tratamento, como programas de fonoaudiologia e corais, que ajudam a criança a trabalhar sua fala e ganhar confiança.

Palavra do especialista

Qual a importância de realizar a cirurgia de correção da fenda labiopalatina cedo?

A cirurgia do lábio realizada de forma precoce contribui para o reposicionamento adequado do osso, para menores chances de sequelas e uma melhor perspectiva de saúde. Não fechar cedo a fenda pode levar ao escape do ar nasal, prejudicial para a fala e fator que aumenta a propensão às chances de cáries, pois ocorre uma mistura da flora bacteriana da região nasal e bucal.

Quais as etapas e de que modo ocorre o tratamento?

O primeiro passo é a cirurgia de correção da fenda no lábio, por meio de pontos cirúrgicos. No entanto, para realização do procedimento, é ideal que a saúde da criança de forma integral esteja em equilíbrio, com peso adequado e sendo acompanhado por um médico pediatra. Em muitos casos, é preciso realizar adaptações para que a criança possa ser amamentada e alimentada. Após essa cirurgia labial, é realizada a cirurgia no palato, que consiste em uma cicatrização de segunda intenção, em que o cirurgião aproxima o centro do céu da boca, deixando um espaço nas laterais, que irá cicatrizar naturalmente. Em alguns quadros o osso fica descontinuado, por isso existe a necessidade do enxerto ósseo, retirado da bacia, da crista ilíaca, para correção. Com o passar dos anos e o desenvolvimento do crânio, novas cirurgias podem ocorrer, de acordo com avaliação de médicos, fonoaudiólogos e dentistas.

Quais as principais mudanças e melhorias que vêm ocorrendo no tratamento nos últimos anos?

Nos últimos anos, uma série de tecnologias vêm sendo aprimoradas, tanto na formação de profissionais quanto no tratamento de pacientes. No entanto, a maior e mais importante evolução dos últimos anos é o cuidado multidisciplinar — a compreensão de que o tratamento só acontece de forma efetiva e adequada se houver uma série de especialidades envolvidas para cada particularidade. Dentistas, fonoaudiólogos, pediatras, cirurgiões, nutricionistas, psicólogos, enfermeiros, consultores de amamentação, entre outros profissionais, são essenciais para o cuidado com a mãe e a criança.

Nivaldo Alonso é membro do conselho médico consultivo da Smile Train e chefe técnico da seção de cirurgia craniofacial do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/Centrinho) da USP-Bauru

*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte

 

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