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O autismo desmistificado: vivendo no espectro

Nunca tantas pessoas receberam o diagnóstico de autismo. A ciência avança no entendimento do transtorno, ainda cercado por incertezas. Famílias e pacientes contam os desafios na busca por qualidade de vida

Uma em cada 44 crianças tem autismo, segundo um estudo de 2021 do Centers of Disease Control and Prevention (CDC), o Centros de Controle e Prevenção de Doenças, dos Estados Unidos. No período de 2000 a 2002, essa prevalência era de uma para 150. O Transtorno do Espectro Autista (TEA) não tem cara. Acomete qualquer raça, etnia e diferentes grupos socioeconômicos. O diagnóstico diz respeito ao paciente, mas significa também uma mudança radical para a família.

As primeiras características do autismo parecem ter sido apresentadas pelo psiquiatra Leo Kanner, em 1943. Na obra Distúrbios autísticos do contato afetivo, ele descreve crianças com quadro de isolamento extremo e desejo obsessivo por padrões, mesmices. Ainda pouco conhecido na época, várias hipóteses foram levantadas sobre o transtorno. Entre elas, que pais pouco afetivos com os filhos contribuiriam para que eles tivessem TEA — ideia, hoje, completamente desfeita.

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Ao passo que a ciência avança no assunto e abre portas para que pessoas autistas tenham qualidade de vida, famílias ainda enfrentam dificuldades na busca por tratamento. A realidade é que o diagnóstico não é precoce para todos, e a rede de apoio é restrita.

Lucinete de Andrade e Edilene Gomes da Silva, mães de jovens autistas, dedicam-se integralmente aos cuidados dos filhos e são exemplos de que, na maioria das vezes, essa missão fica mesmo destinada às mulheres. E quem tem autismo grau leve? Alessandra Boaventura só soube que estava no espectro quando foi investigar o caso do filho. Viviane Martins e Gabriel Martins compartilham a rotina de cuidados com Murilo, de 11 anos. Histórias que a Revista mostra a seguir. 

Tratamento para todos

A Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF) estima que 13 mil pessoas convivam com o distúrbio do neurodesenvolvimento. Por aqui, uma instituição filantrópica vem se destacando no esforço para atender essa população, especialmente os que vêm de regiões administrativas e do Entorno. A ABRACI-DF (Associação Brasileira de Autismo, Comportamento e Intervenção) é mantida por pais de crianças com autismo, que organizam doações e eventos em prol dessa comunidade. Mediante uma taxa associativa, o paciente tem acompanhamento psicológico semanal.

A Associação tomou corpo por causa de Lucinete de Andrade, hoje diretora-presidente da ABRACI. Em 2002, ela e outros pais participaram de uma pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) cuja proposta era divulgar a terapia ABA (Análise Comportamental Aplicada), uma intervenção comportamental focada em autistas. Lucinete foi uma das mães do estudo. Mais tarde, ela e outros pais quiseram avançar na teoria e prática do método e passaram a se encontrar periodicamente.

@luizafrazaofotografia/Divulgação - Familiares e pacientes da ABRACI-DF reunidos

Com frequência, Lucinete era anfitriã dessas reuniões. Ela se recorda da casa cheia. No espaço, os pais estudavam, passavam informações adiante e trocavam experiências uns com os outros. O resultado disso foi a ABRACI, fundada oficialmente em 2012, quando ganhou um espaço físico, no Cruzeiro Velho. Atualmente, o local funciona como sede administrativa e centro para atendimentos psicológicos.

Lucinete atribui sua dedicação à experiência com a filha autista, Naiara, de 18 anos, que lhe dá forças para cuidar de outras pessoas. O autismo é quatro vezes mais comum em meninos do que em meninas, e Lucinete lembra que já lutou muito para que as pessoas entendessem que a filha tinha, sim, TEA.

Além disso, as terapias para pessoas com autismo, assim como outros distúrbios do neurodesenvolvimento, são muito caras. Por isso, a ideia de disseminar os conceitos e as práticas da ABA é uma forma de tornar o tratamento mais acessível para as famílias, principalmente as mais carentes. Há evidências também de que, quando o método é continuado em casa, no contexto domiciliar, é visivelmente eficiente para os quadros de autismo, mesmo os mais severos.

Família envolvida

Por ser também conselheira tutelar, Lucinete tem um senso social aguçado. Sem apoio do governo para desenvolver as atividades, firma parcerias com estudantes de psicologia e psicólogos recém-formados para assistir as crianças da ABRACI e passar os princípios da ABA à frente.

"O Sistema Único de Saúde (SUS) não oferece a ABA. Muitas vezes, receitam medicação, mas não indicam estímulo comportamental. E o indivíduo com autismo precisa muito de estímulo. Então, como ficam as famílias carentes?", questiona. Para se ter ideia, das 113 crianças assistidas pela ABRACI, 50 são apadrinhadas. Ou seja, têm um terceiro que paga a taxa associativa destinada ao tratamento.

Assim, Lucinete toca a ABRACI-DF pensando no autismo enquanto contexto familiar e questão séria de saúde. "Falar em neurodiversidade é muito bonito, mas temos um público que requer ajuda de saúde mental. Adjetivos do tipo não revelam a realidade de mães doentes, cuidadoras que precisam ficar alertas a todo tempo, prontas para ajudar numa crise e que vão desesperadas atrás de soluções", afirma.

Adultos sem apoio

A ABRACI-DF ajuda pessoas como Lúcio Gabriel Gomes Fernandes, de 19 anos, que tem autismo severo. A mãe dele, Edilene Gomes da Silva, 44, vai do Mangueiral para o Cruzeiro toda semana para que o filho se consulte e tenha apoio na associação.

Arquivo pessoal - Edilene Gomes da Silva faz de tudo para que o filho Lúcio Gabriel, que tem autismo severo, tenha acesso a tratamento e uma vida digna

Lúcio passou três anos na fila por uma vaga no Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS) — serviço que acolhe pessoas com sofrimento psíquico ou transtorno mental. Foi chamado quando tinha 16 anos e as atividades por lá ajudaram muito no desenvolvimento social dele. No CAPS, Edilene conseguia ter, ela mesma, acesso à terapia. Só que Lúcio recebeu alta quando completou 18 anos e a mãe teve o acompanhamento interrompido desde então.

Ele frequenta o Centro de Ensino Especial, na 912 da Asa Sul, referência no ensino de pessoas com deficiência na cidade, e é bem amparado por lá. Mas, mesmo com progresso e cuidados diários na escola, são muitas as dificuldades para conseguir tratamento para o autista adulto. Sem contar que a semana é agitada. Edilene é divorciada e a principal cuidadora de Lúcio.

A servidora pública da Secretaria de Saúde se desdobra em várias para levar o filho para a terapia e atividades complementares e ainda dar todo o carinho em casa. "É desgastante buscar ajuda e receber vários nãos. Felizmente, descobri que uma das medicações que ele toma está disponível na Farmácia de Alto Custo, o que já alivia no sentido financeiro", completa.

Algumas abordagens de tratamento

ABA (Applied Behavior Analysis) ou Análise do Comportamento Aplicada — Usa o condicionamento operante para reforçar e melhorar o comportamento significativo (positivo) e reduzir os indesejáveis, como agressividade. Ensina novas habilidades, aperfeiçoa a atenção e a interação. Nesse tipo de intervenção, é interessante que os pais deem sequência à técnica em casa.

Teacch (Treatment and Education of Autistic and related Communication-handicapped Children) — É um programa psicoeducacional. Prepara e organiza o ambiente físico para ser intuitivo. Visa a independência e o aprendizado. No Brasil, é menos comum do que a ABA, mas é possível trabalhar com as duas abordagens.

PECS (Picture Exchange Communication System) ou Sistema de Comunicação por Troca de Figuras — Método de comunicação alternativa, por meio de figuras, uma vez que autistas costumam ser não orais.

Como ajudar

ABRACI-DF

Chave Pix: 13053535000172

Ou entre em contato no (61) 99106-0034

Mais informações: https://abracidf.com/

Uma questão familiar

A técnica em nutrição Alessandra Boaventura, 41 anos, não recebeu o diagnóstico do filho de imediato. Perto de completar 2 anos, Miguel, hoje com 4, ainda não balbuciava. Não tinha qualquer tentativa clara de se comunicar pela fala. Ao caminhar, dava alguns passos, mas regredia e voltava a engatinhar. "Não interagia nem com as pessoas mais próximas. Não era de sorrir nem de olhar nos olhos. Assim que notei, procurei um especialista", conta a mãe.

Mesmo sem o laudo de TEA em um primeiro momento, Alessandra foi atrás de tratamento. Não descansou. Aliás, os dias continuam corridos porque o autismo é uma condição permanente, que exige cuidados constantes. O transtorno acabou diagnosticado por uma neuropediatra que o acompanha até hoje.

Carlos Vieira/CB - Alessandra Boaventura e o filho Miguel: por causa dele, a mãe descobriu que também tem um grau leve de autismo

O grau de autismo de Miguel é considerado leve a moderado. Ele não toma medicamentos porque leva uma rotina que o ajuda. Vai à escola pela manhã, numa turma regular. O período da tarde é destinado às terapias em consultório com fonoaudióloga, psicóloga e terapia ABA naturalística, com muitas atividades lúdicas, que trabalham compreensão, desenvolvimento motor e empatia. A filha mais velha de Alessandra, Helena, tem 10 anos e é neurotípica (sem deficiência). Pode-se dizer que ela é o braço direito da mãe nos cuidados com o irmão em casa.

"Em momento nenhum, rejeitei a possibilidade de o meu filho ser autista e, mesmo antes da confirmação, corri atrás. Minha família abraçou a condição dele e me apoiou. E isso é tão importante, pois o autismo manifesta tantos comportamentos, reações", pontua. Miguel, por exemplo, gosta de bolinhas e objetos pequenos. A mãe já pegou ele tentando empilhar grãos de arroz. "São formas peculiares de se distrair, algo muito próprio do autismo, que se manifesta de jeitos diferentes de criança para criança."

No cotidiano, uma das principais dificuldades diz respeito à alimentação. O garoto tem seletividade alimentar severa e se nutre de pouquíssimos grupos alimentares. Tem aversão às comidas de cor escura e prefere que elas sejam crocantes. "Alguns autistas gostam somente de comida pastosa, ele é o contrário." A mãe, nutricionista de formação, busca oferecer alternativas saudáveis que não afetem o sistema nervoso dele. Por causa dessa característica, Miguel faz integração sensorial, para trabalhar a textura de diferentes alimentos.

Duplo diagnóstico

O mais curioso é que, durante essa jornada, Alessandra se descobriu também autista. Fez testes neuropsicológicos, por indicação do neurologista, e recebeu o laudo aos 40 anos, confirmando TEA. O autismo leve, antes, era motivo de muita incompreensão. "Sempre me senti diferente. Saber que tinha autismo foi um alívio", admite.

No trabalho, Alessandra era percebida como uma excelente profissional. O que pecava era a interação com os colegas. "Tenho muita dificuldade em lidar com pessoas. Preciso de rotina, nunca gostei de ambientes cheios e alguns barulhos e texturas me deixam altamente irritada", conta.

Ao transtorno de ansiedade soma-se a ansiedade característica do autismo. Alessandra sofre por antecipação só de marcar um cinema com os amigos. Hoje, ela tem um laudo que lhe concede o direito de ter um local isolado para trabalhar e, por causa das limitações, não exerce qualquer função — o que não a impede de ser uma profissional dinâmica, autodidata e desafiadora, como ela mesma se descreve.

Aliás, a partir da confirmação do autismo, a nutricionista passou a se conhecer e se respeitar cada dia mais. Os mais de 20 anos tratando depressão e ansiedade, de repente, fizeram sentido. Não se tratava somente disso. "O autismo foi transformador para nós dois. Até porque, por meio do diagnóstico do meu filho, pude reconhecer parte de mim. Quando recebi o meu resultado, chorava de alegria, eu me senti livre", lembra.

De acordo com Carlos Uribe, neurologista do Hospital Brasília, a incidência de autismo é maior em quem tem um familiar próximo com TEA. O transtorno é genético, mas não existe um gene que o defina — é a interação entre vários genes que é determinante.

O médico ressalta que a definição de Transtorno do Espectro Autista vem sofrendo modificações. Na Síndrome de Asperger, que se aproxima de um autismo grau leve, a comunicação é preservada. Por outro lado, no transtorno de autismo, a fala é geralmente afetada. "Por isso, há um movimento para delimitar o autismo. Assim, a Síndrome de Asperger se afastaria do autismo, para melhor tratar e entender cada um", aponta.

Tudo é autismo?

Ex-professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB), a psicóloga Maria Izabel Tafuri acredita que os números mais recentes sobre autismo têm relação com a evolução de conhecimento na área e de diagnósticos mais precisos, mas também guardam algumas particularidades. "É preciso tomar cuidado porque as crianças diagnosticadas agora são, em grande parte, os chamados filhos da pandemia, nascidos no cenário da covid-19. O teórico atraso pode ter relação com o isolamento e ausência de trocas sociais do período", explica.

Assim, no ponto de vista de Maria Izabel, um diagnóstico evolutivo apresenta grande vantagem se comparado a uma confirmação sintomatológica, que se baseia apenas nos sinais que a criança apresenta. Em vez desse último, a psicóloga defende um trabalho comportamental de dois a três meses para acompanhar se há evolução do paciente. Depois de algumas sessões, a criança logo consegue compartilhar brincadeiras e usar os brinquedos de forma convencional? Pode ser que se encaixe na categoria mencionada acima: a da que teve um atraso imposto pela covid.

"Em consultório, observamos muitos casos do tipo, em que os pais ficaram com medo e angustiados, não conseguiram brincar como gostariam com o bebê e o pequeno não interagiu com os primos nem outros colegas. A criança, por sua vez, encontrou uma mãe preocupada em demasia com outros assuntos. Tudo isso acaba influenciando o desenvolvimento", pondera. Notando algum atraso, o que costuma ser percebido perto dos dois anos, é importante iniciar a psicoterapia mesmo que não esteja definido se é autismo. Fazendo assim, é mais provável que os primeiros sinais regridam.

Inclusão social

A educação é ferramenta central nos cuidados de Murilo Martins Teixeira, de 11 anos, filho único do casal Viviane Martins, 43, e Gabriel Estevam Martins Teixeira, 41. Ela é contadora e ele, administrador. Diagnosticado no espectro autista com 1 ano e 3 meses, Murilo logo entrou para um programa de estímulo precoce oferecido pelo Governo do Distrito Federal (GDF) e foi para a creche. Conseguiu dar sequência ao fluxo escolar desde então. Fez o jardim de infância e, atualmente, frequenta uma turma para pessoas com deficiência.

Arquivo pessoal - Murilo Martins Teixeira é filho único de Viviane Martins e Gabriel Estevam Martins Teixeira: rede familiar para conviver com o autismo

Faz quatro anos que Murilo tem aulas no ensino especial da Escola Classe da 405 da Asa Norte, instituição referência na inclusão autista. No colégio, consegue se distrair, convive com outros colegas e é estimulado cognitivamente — está praticamente alfabetizado. A escola também alivia a carga de tarefas dos pais, já que Murilo demanda atenção em atividades corriqueiras, como escovar os dentes.

Terapias externas, com fonoaudióloga e psicóloga, os pais tiram do próprio bolso, com plano de saúde. Ainda assim, reconhecem que tiveram uma oportunidade que nem todas as famílias têm. Murilo teve o diagnóstico precoce e, no dia a dia, é muito bem assistido pelas pedagogas e educadoras da escolinha. "Ele teve muita sorte com os professores e profissionais da área. Foi algo que o ajudou demais a desenvolver", acreditam Viviane e Gabriel.

A principal limitação de Murilo é a fala, ele pronuncia poucas palavras. O período de pandemia foi um desafio a mais. Como passava muito tempo em casa, o menino tinha crises de ansiedade e tremores e passou a tomar algumas medicações desde então. "Uma certa regressão com mudança de comportamento", avaliam os pais. As oscilações de humor acontecem de forma espontânea, sem um motivo de frustração certo.

O futuro guarda algumas inseguranças. Viviane e Gabriel se preocupam se o filho terá as mesmas oportunidades quando for mais velho. A escola onde estuda aceita crianças com deficiência de até 15 anos. Por enquanto, a família está contente com os resultados de Murilo. Entre as coisas que gosta — teclado de música, paisagens, mapas e natação —, ir para a escola é uma delas. A criança é interessada e tem muito potencial para aprender cada vez mais.

Marluce Ferreira é uma das educadoras responsáveis pelo ensino especial na 405 Norte. A instituição frequentada por Murilo tem, hoje, 22 alunos autistas, sendo 16 em classes especiais e seis nas classes regulares, que convivem com alunos neurotípicos.

Nas classes especiais, cada professora acompanha dois alunos. E o currículo é diferente da turma convencional. A rotina escolar dos alunos com TEA inclui idas à horta comunitária e caminhadas pelas proximidades da escola. "O passeio externo visa estimular a autonomia dos alunos e incrementar o aprendizado. Até porque, teoricamente, a classe especial seria de caráter transitório. A ideia é ir inserindo as crianças nas aulas com neurotípicos", explica Marluce.

Sempre assistidos pelas professoras, eles passam pelas comerciais da Asa Norte, observam o movimento e as vitrines, atravessam a rua e são estimulados a fazer pequenas compras no mercado ou na padaria.

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@luizafrazaofotografia/Divulgação - Familiares e pacientes da ABRACI-DF reunidos
Arquivo pessoal - Edilene Gomes da Silva faz de tudo para que o filho Lúcio Gabriel, que tem autismo severo, tenha acesso a tratamento e uma vida digna
Arquivo pessoal - Murilo Martins Teixeira é filho único de Viviane Martins e Gabriel Estevam Martins Teixeira: rede familiar para conviver com o autismo
Carlos Vieira/CB - Alessandra Boaventura e o filho Miguel: por causa dele, a mãe descobriu que também tem um grau leve de autismo