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Herança (boa) da pandemia: bordar, cozinhar, ler viram projetos de vida

Conheça histórias de quem iniciou um hobby no momento mais crítico da crise sanitária e se envolveu tanto que, hoje, o transformou em um projeto de vida

Giovanna Fischborn
Luna Veloso*
postado em 04/09/2022 08:00 / atualizado em 05/09/2022 12:11
 (crédito:  Carlos Vieira/CB/D.A Press)
(crédito: Carlos Vieira/CB/D.A Press)

A crise da covid-19 mudou o que se entendia como rotina. Horários e ambientes antes tão comuns foram reformulados, planos, interrompidos, a convivência em casa — e com o próprio lar — se refez. "Foi normal a sensação de desordem por não conseguir diferenciar o que era hobby, trabalho, família", afirma a psicóloga Bruna Capozzi. Mas, de um momento de tantas dificuldades, houve quem extraiu coisas boas. Para muitos, o que servia para preencher um tempo livre ou se fez fonte de renda para remediar um imprevisto não se findou com o arrefecimento da pandemia. Pelo contrário, deu tão certo que impulsionou outras ideias, hábitos e interesses.

Na busca pela harmonia entre o "dever" e o "prazer", muita gente direcionou energia para aquilo que era de interesse, ao mesmo tempo que tentava equilibrar as demais demandas da vida. "Ter um hobby é importante para a saúde mental. Nosso corpo e mente precisam de tédio, descanso, paz, trabalho. Não precisa ser produtivo nem ativo o tempo todo", explica a especialista.

Assim, consciente ou inconscientemente, meditar, cultivar plantas e fazer caminhadas foram usadas para controlar o processo ansioso. E há quem tenha encontrado no caos tempo para finalmente se dedicar àquele plano sempre adiado. Fotografar, terminar um livro… Atingida em cheio, a atividade econômica foi outro motivo de baque. A taxa média de desemprego foi a maior da série iniciada em 2012. Nesse caso, reinventar-se foi também uma necessidade.

É verdade que, com a volta das atividades presenciais, muitas dessas práticas foram deixadas de lado por conta da correria do dia a dia. Fernanda, Débora, Rodrigo, Marina e Laysse, porém, estão nadando contra essa maré. Hobbies que surgiram como forma de ocupar a cabeça naquele tempo, então um pouco mais livre, tornaram-se parte importante da vida desses quatro.

Do ateliê aos cafés da capital

Débora Amorim, 48 anos, passou anos tendo interesse pelo universo das cerâmicas, mas, com outras prioridades, a fotógrafa, doula e massagista nunca havia investido tempo e dinheiro na área. Um mês antes do início da pandemia, foi convidada a participar de um curso e resolveu aceitar a proposta para conhecer melhor a arte. Com a suspensão de suas outras fontes de renda, por causa do lockdown, resolveu usar o tempo livre para se dedicar mais à cerâmica e transformar aquilo em um trabalho rentável.

  • Conjunto de chá Arquivo pessoal
  • Porta vela de cerâmica Arquivo pessoal
  • Máscara de cerâmica Arquivo Pessoal

Usando o dinheiro da venda das primeiras peças para conseguir continuar pagando o curso, Débora, foi, aos poucos, evoluindo suas habilidades e aumentando a complexidade das peças, trocando de ateliês, participando de feiras e eventos da área até chegar na profissionalização que se encontra atualmente, quase três anos depois.

O processo de produção não é tão simples quanto parece. A artista explica que, além de técnica, estudo e prática, é preciso muita paciência. É necessário todo dia fazer a limpeza do ateliê, separar as ferramentas, organizar a mesa de trabalho, reservar argila para reciclagem, sovar a massa, criar a peça, preparar a massa, secar, pintar, fazer acabamentos, queima, esmaltação… e diversos outros processos que essa linha de produção exige. Mesmo que necessite de muita dedicação e esforço, o trabalho final é recompensante e o processo, terapêutico.

Feira autoral

Rodrigo Machado, antes de ceramista é assessor cultural e, junto com Débora, idealizou a Feira Itinerante de Cerâmica Autoral, um projeto de artistas locais para artistas locais. A feira conta com a exposição de peças utilitárias e decorativas que transmitem a individualidade e a essência de cada artista. O grupo de ceramistas foi criado pelo Instagram (@feiradeceramicaautoral) e, hoje, conta com mais de 48 profissionais que se revezam durante as edições da feira.

Ceramista Rodrigo Machado
Ceramista Rodrigo Machado (foto: Marcelo Fereira/ CB/ D.a Press)

De todo o aprendizado trazido pela cerâmica, Rodrigo destaca a troca com as pessoas do grupo, como parte essencial do processo. “É uma turma muito generosa, muito bacana de lidar. As trocas que acontecem, os encontros, são sempre muito amorosos. Os olhares e o apoio que cada um dá ao outro trazem essa sensação de união entre pessoas que não se veem como concorrentes.”

Além da oportunidade de venda que o evento presencial — normalmente em cafés espalhados pelo Distrito Federal — traz, é sempre um momento de confraternização e troca de experiência, técnica, e afeto entre os artistas e o público. “A gente só está de mãos dadas, se abraçando e se apoiando nessa empreitada que, para muitos, é nova, mas, para alguns, já é uma profissão de longo tempo, então tem muita troca.”

O primeiro encontro foi no Quanto Café, na Asa Norte, no final de dezembro de 2021. Hoje, a feira já passou por sete edições em cafés espalhados por Brasília, a próxima já está marcada para o próximo domingo, no Bambu Brasil Café & Bistrô, na comercial da 214 Norte, das 10h às 18h.

Sempre fissurado pelo mundo das artes, Rodrigo já havia feito aulas de música, pintura e teatro antes de se envolver com a cerâmica. Entrou em um curso dias antes do período de confinamento, assim como Débora, e aproveitou os meses seguintes para se dedicar integralmente à nova paixão.

Montou um ateliê em seu apartamento, que logo ficou pequeno e precisou ser deslocado para um estúdio mais confortável. Após meses de aulas, workshops e vídeos no YouTube, o negócio, que antes era apenas direcionado aos amigos e familiares, foi tendo uma maior repercussão.

Rodrigo conta que, quando começa a produção das peças, desliga-se do mundo exterior e se conecta 100% com a experiência que está vivendo. “É um momento de bastante introspecção e de encontro comigo mesmo, é quase meditativo.” Como um meio de fuga do excesso de redes sociais ele dedica de cinco a seis horas diárias.

Como um meio de fuga do excesso de redes sociais ele dedica de cinco a seis horas diárias a esse processo. “A cerâmica representa tranquilidade, suavidade, leveza, desafio e um olhar interior. É limpeza também, uma vez que eu acredito que a argila absorve muito da energia e da carga pesada que está acumulada em mim.”

Mesmo se inspirando no trabalho de outros ceramistas espalhados pelo mundo, ele deixa, muitas vezes, a intuição conduzir seu trabalho, sem ter muita ideia de onde quer chegar ao começar a produção. Distanciando-se cada vez mais da produção de utilitários — canecas, copos, jarras, pratos —, o artista vem se aventurando no universo das artes visuais com as peças escultóricas.

A volta da vida de assessor afastou um pouco Rodrigo do ateliê, mas sem deixar esse hobby — que virou profissão — de lado, ele vem se esforçando para conciliar a nova atividade com a antiga rotina.

De um passatempo a um vício

Mesmo que já tivesse aprendido os pontos iniciais com sua avó quando pequena, Fernanda Wivian, 20 anos, realmente começou a se aventurar pelo mundo do crochê durante os primeiros meses da quarentena.

A estudante Fernanda Wivian começou a fazer crochê na pandemia e hoje virou profissão
A estudante Fernanda Wivian começou a fazer crochê na pandemia e hoje virou profissão (foto: Arquivo pessoal)

Depois de algumas semanas assistindo a aulas on-line, começou a se sentir sufocada com o excesso de conteúdos digitais e procurou alguns mecanismos de fuga fora do mundo virtual para se distrair. Mesmo que tenha começado do básico, o interesse por se aperfeiçoar mais na arte foi crescendo muito rápido, ela queria ter a liberdade de criar seus próprios modelos saindo do clichê.

As amigas próximas começaram a se interessar pelo trabalho de Fernanda — que, naquela época, ainda era um hobby — e, assim, aquele passatempo começou a virar um possível negócio. Croppeds, casacos, tiaras, objetos de decoração, de pouquinho em pouquinho, a produção ia crescendo e a casa ficando pequena para armazenar tanta produção. Em 27 de junho de 2020, surgia o @croche_fefe.

Com toda aquela dedicação, as redes sociais começaram a ficar pequenas para o @croche_fefe — feiras, lojas colaborativas, eventos locais, começaram a convidar a artista para expor suas peças presencialmente pelas ruas de Brasília.

Em busca de equilíbrio

Aquele passatempo perfeito para desestressar Fernanda durante os intervalos de estudo começou, então, a tomar outras proporções, e a relação com as linhas deixou de ser assim tão leve. Com muitas exigências e cobranças feitas por ela mesma sobre seu trabalho, o crochê começou a sobrecarregar as tardes da estudante, que passava mais de oito horas por dia crochetando.

Com o tempo, ela foi aprendendo a administrar melhor o novo trabalho e a conciliar com os estudos para o vestibular, transformando novamente a arte em prazer. 

Mesmo que a vida acadêmica a tenha levado para Florianópolis, o trabalho continua sendo exposto — e vendido — em Brasília. Na feira da Torre de TV, tem uma loja em colaboração com a Rosa, do Majanoco artesanatos, onde vende artigos para casa, como cestos, vasos de plantas, porta objetos... Vez ou outra, é possível também encontrar o @croche_fefe na Endossa — loja colaborativa — ou negociando diretamente com ela pelo Instagram.

Fernanda está começando a se estabilizar melhor na cidade nova, e até já pensa em expandir os negócios para o público catarinense nos próximos meses. Desconstruindo o estereótipo do crochê e o trazendo para próximo do público jovem, a universitária produz peças modernas e estilosas, sempre se inspirando nas tendências para diversificar os conteúdos

O acaso acabou em doce

A confeitaria não estava nos planos profissionais de Laysse Mendes, 27 anos, até a pandemia chegar, mas pode-se dizer que o interesse, sim. No curso de nutrição na faculdade, pegou as optativas todas na área de gastronomia. Não aprendeu tudo, mas ganhou conhecimentos técnicos e teóricos.

Uma receita de cookie feita na pandemia originou a confeitaria LA'Cookies, de Laysse Mendes
Uma receita de cookie feita na pandemia originou a confeitaria LA'Cookies, de Laysse Mendes (foto: Arquivo pessoal)

Ainda em abril de 2020, ela arriscou reproduzir, em casa, uma receita de cookies passada por uma amiga. Cerca de um mês depois, apresentou os quitutes em um almoço de família e a opinião do pessoal foi unânime: ela precisava começar a produzir e vender os doces. Embora não estivesse totalmente convencida, Laysse decidiu tentar.

Em uma semana, definiu e montou logo, arte e cardápio da confeitaria artesanal que toca hoje, a LA’Cookies (@lacookiesbsb). Começou a vender o pack degustação no fim de maio, com sabores
clássicos que permanecem até hoje no menu. Inicialmente pensado como renda extra, o negócio acumulava encomendas semanas depois de lançado. Os pedidos foram tantos que Laysse precisou sair da empresa de sucos naturais dos pais dela, onde trabalhava, para se dedicar inteiramente aos pedidos. “Um acaso que deu certo”, define.

Atualmente, atende a encomendas grandes, para batizado, chá revelação, casamento. Raramente vende só a unidade do cookie. Aliás, outros itens saem tanto quanto o produto original — a torta de cookies e os ovos de Páscoa fazem sucesso entre os clientes.

A produção fica toda aos cuidados dela, que prepara os doces em casa mesmo. De vez em quando, a mãe ajuda a embalar. Para datas comemorativas, como Natal e Páscoa, Laysse chama uma prima para dar conta das demandas. Empreender não é fácil. Ainda é difícil conseguir as embalagens adequadas e pensar a logística, como delivery. Mas ela, hoje confeiteira, e com o apoio dos pais, também empreendedores, afirma que se encontrou.

Um mundo à parte

Uma boa história tem o poder de transportar o leitor para outro cenário, com sensações e emoções alheias ao mundo real. A psicóloga Marina Caricatti, 27 anos, que o diga. Ela intensificou o volume de leituras na pandemia como forma de lidar com um denominador comum para muita gente: a ansiedade. Por ter asma, tinha muito medo da doença. A solução foi enxergar o tempo em casa como aliado, por mais que parecesse o contrário.

Ler serviu de escape para a psicóloga Marina Caricatti na pandemia.  Hoje, ela participa de clubes  e segue com o ritmo de leituras
Ler serviu de escape para a psicóloga Marina Caricatti na pandemia. Hoje, ela participa de clubes e segue com o ritmo de leituras (foto: Arquivo pessoal)

Em uma rede social, Marina passou a acompanhar uma conta que produzia conteúdo sobre livros. As lives de leitura a incentivaram a dedicar mais tempo aos títulos que estavam parados na estante ou na fila de espera no Kindle. E, se antes se contentava com 10 minutinhos lendo, a animação virou tanta que ela dobrou, triplicou esse tempo. Persistiu tanto que, em 2020, terminou 40 livros.

O hobby serviu de escape. "Lembro que reli todos os livros do Harry Potter, coisa que havia feito ainda criança, e foi acolhedor. A leitura virou hábito e ajudou na saúde mental", conta. Um dos exemplares que mais gostou foi O Jardim Secreto, do inglês Frances Hodgson Burnett, sugestão de uma amiga.

Ela encontrou ainda mais estímulo em clubes de leitura on-line. Na Twitch, serviço de streaming de vídeo ao vivo, Marina recebeu e se fez apoio de outros leitores. Em alguns grupos, a proposta era de leitura conjunta, com um "livro do mês", cujo enredo e aprendizados eram comentados depois.

Outros, em lives com várias horas de duração, usuários se reuniam simplesmente para ler. "Nessas transmissões, as pessoas vão cada uma com seu livro e, todas concentradas e em silêncio, seguem com suas leituras ou outra tarefa que estão executando", esclarece. Até hoje ela usa da companhia remota das pessoas que entram na Twitch para focar nos estudos ou fazer algo relacionado ao trabalho. "Ajuda na atenção, porque você vê as outras pessoas também muito centradas", diz.

Atualmente, Marina mantém o ritmo de leituras como os do período pandêmico, mas não nega que tem sido mais difícil por causa das demandas do trabalho. Ela tenta, assim, compensar as páginas que não foram cumpridas ao longo da semana no domingo, dia mais tranquilo.

*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte

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