Ciência

Técnica revolucionária: nanopartículas são usadas contra o câncer

Formado na UnB, o pesquisador brasileiro Raul Cavalcante Maranhão desenvolve técnica revolucionária que aumenta substancialmente a eficácia da quimioterapia em pacientes

José Carlos Vieira
postado em 18/12/2022 07:00
 (crédito:  Raul C. Maranhão/Divulgação)
(crédito: Raul C. Maranhão/Divulgação)

Um ataque direto ao tumor cancerígeno, por meio de nanopartículas. É assim que a nova técnica desenvolvida pela equipe do doutor Raul Cavalcante Maranhão, professor titular da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Instituto do Coração da USP, pode revolucionar o tratamento de pacientes. "São mais de 70 trabalhos que nós já publicamos na literatura internacional sobre esse método", destaca ele à Revista do Correio.

A pesquisa para criar essa partícula nanométrica começou em 1992, quando Maranhão iniciou o projeto LDL artificial: um novo método para o tratamento do câncer. O objetivo, segundo ele, era criar uma versão artificial da LDL (lipoproteína de baixa densidade, em inglês), partícula que concentra mais de 70% do colesterol presente no sangue humano. O resultado foi a LDE, uma LDL artificial, um "veículo" capaz de transportar medicamentos diretamente aos tumores, sem os pesados efeitos colaterais de uma quimioterapia convencional, por exemplo.

Nascido em Belém, Raul Cavalcante Maranhão passou parte da adolescência em Brasília. "Tinha 12 anos quando minha família se mudou para a capital do país. Estudei no Caseb, no Elefante Branco e fiz medicina na Universidade de Brasília (UnB)", relembra. Depois de formado, foi para São Paulo, onde fez residência em endocrinologia e clínica médica no Hospital das Clínicas da Faculdade Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

"Em seguida, fiz doutorado em fisiologia na USP e fui para os Estados Unidos por um período de quase três anos, onde fiz pós-doutorado no Instituto de Biofísica na Boston University", acrescenta Maranhão. Na volta, foi contratado pela USP. Atualmente, é pesquisador do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da USP e professor titular da Faculdade de Ciências Farmacêuticas também da USP.

Prrofessor de Bioquímica, Raul C. Maranhão.
Prrofessor de Bioquímica, Raul C. Maranhão. (foto: Raul C. Maranhão/Divulgação)

Como se chegou às nanopartículas LDE para uso em tratamentos de pacientes com câncer? Qual é a principal diferença desse tratamento?

No Instituto de Biofísica de Boston, uma equipe de físicos e químicos desenvolveu um sistema de partículas muito pequenas (LDE), que, na verdade, imitavam a LDL, a proteína que transporta colesterol e outras de triglicérides. Eles faziam isso artificialmente, e a ideia era estudar estrutura dessas partículas, estudos físicos mesmo. E a minha ideia foi então usar essas partículas, esses sistemas de partículas, para estudar a fisiologia do colesterol, dos triglicérides nos organismos, inicialmente em animais e, depois, em estudos clínicos.

Na minha volta ao Brasil, incrementamos esses estudos. Foi quando descobri que, quando a gente injetava na circulação dos animais, essa partícula (a LDE) era capturada pelas células neoplásicas, cancerosas. Elas precisam se dividir muito rapidamente e, para isso, precisam duplicar as membranas, que envolvem as células, o núcleo das células, etc. E membrana é 50% colesterol. Então as células cancerosas ficam muito ávidas por colesterol, aumentam esses receptores para devorar o colesterol e fazer as novas membranas para se duplicar. O que constatamos? Quando pegávamos partículas que nós desenvolvemos e as injetávamos na circulação, ela buscava uma proteína que existe na circulação, que é chamada apoE, e se ligava, então, aos receptores do colesterol. E quando a gente injetava essas partículas no câncer, as células cancerígenas ficavam muito ávidas também para devorar as nanopartículas.

O que nós fizemos foi colocar drogas anti-câncer, os quimioterápicos, nas partículas e, com isso, injetar na circulação do paciente para se concentrarem no tumor, porque os quimioterápicos, como são administrados convencionalmente, se espalham pelo corpo todo — não só na área afetada. Você injeta na circulação, ele vai se espalhando e entra tanto na célula normal quanto na célula neoplásica.

Com a nossa estratégia, baseada no aumento dos receptores e na voracidade das células cancerosas pelo colesterol, a gente pode concentrar nosso tratamento. Nós injetamos, por exemplo, LDE em pacientes com leucemia mieloide aguda e constatamos uma concentração enorme (50 vezes mais) nas células leucêmicas, em comparação com as células normais. Mostramos, pela primeira vez, trabalhos inteiramente desenvolvidos no país em que nanopartículas são capazes de carregar quimioterápicos no tratamento de pacientes com câncer. Essa pesquisa teve grande repercussão.

A LDE vai além do tratamento quimioterápico em que sentido? Como ela age no combate aos tumores?

A vantagem é que, em vez de o quimioterápico atuar indiscriminadamente em todos órgãos, essa técnica de nanopartículas direciona o tratamento para a região do corpo onde ele é realmente necessário, que são as células neoplásicas (cancerígenas). Ao concentrar as drogas no tumor, nós observamos uma coisa realmente espetacular, que é a abolição da grande toxicidade dos quimioterápicos. É impressionante. Não só em leucemias, mas também em tumores de ovário, de mama, de próstata, de pulmão, etc. As vantagens são enormes. Primeiro, ao concentrar o quimioterápico, a ação dele fica mais eficiente, e, por outro lado, diminui da toxidade. Também pode reduzir drasticamente os preços do tratamento. A quimioterapia fica superconfortável, como se tivesse tomando qualquer medicamento. Não cai um fio de cabelo dos pacientes, não diminui as defesas imunológicas, evita lesões de fígado, de rim e várias coisas que são associadas à quimioterapia. É difícil dizer os percentuais quantitativos de sucesso, porque os protocolos de introdução de novas drogas são muitos rígidos. Ou seja, o tratamento só tem sido ainda realizado experimentalmente em situações especiais.

 Ilustrações do professor de Bioquímica, Raul C. Maranhão.
Ilustrações do professor de Bioquímica, Raul C. Maranhão. (foto: Raul C. Maranhão/Divulgação)

A quimioterapia com a LDE pode ser associada a outros tratamentos para combater o câncer?

Temos um trabalho publicado, há dois anos, sobre transplante de medula óssea em pacientes com leucemia aguda, coordenado pelo professor Salvador Rodrigues e pela doutora Sandra Rohr, realizado na Escola Paulista de Medicina (Unifesp). Esses transplantes têm uma taxa de mortalidade muito grande. São a última opção para pacientes que não têm mais nenhuma saída de tratamento. Nós mostramos que, fazendo a quimioterapia com a nossa nanopartícula, a LDE, a toxidade foi muito reduzida, não houve rejeição ao transplante nos pacientes e, ao invés dos 25% de sobrevida aos dois anos, nós tivemos por volta quase de 70%, apesar de ainda ser um número pequeno de pacientes (foram 15). O uso da LDE também diminuiu a toxicidade da radioterapia. Nós tratamos pacientes com câncer mais avançado. Mas as possibilidades são muitas. Até pacientes que iriam direto a cuidados paliativos, você ainda pode tratá-los.

Essas nanopartículas podem tratar outras doenças? Quais, por exemplo?

A aterosclerose, por exemplo. Nos testes que fizemos com animais, colocamos quimioterápicos, anti-inflamatórios e drogas de regeneração tecidual nas nanopartículas e percebemos uma poderosa ação anti-inflamatória que reduz a arteriosclerose, limpou as artérias desses animais para evitar embolias e infartos. Um estudo inicial em pacientes mostrou a viabilidade do tratamento com esta finalidade. O professor Noedir Stofel e sua equipe cirúrgica do InCor mostraram em coelhos que a LDE pode ser muito útil para evitar as complicações clínicas do transplante cardíaco, como a rejeição e a obstrução das artérias coronárias do coração transplantado.

A equipe da professora Eloísa Bonfá, também da Faculdade de Medicina da USP, mostrou em coelhos a eficiência anti-inflamatória da LDE na artrite reumatoide. Em artigo publicado recentemente, mostramos que o uso da LDE com quimioterápicos reduz o tamanho do infarto de miocárdio induzido em ratos, melhorando a função cardíaca dos animais infartados. A esse respeito, os resultados iniciais de um estudo clínico conduzido pelo professor José Carlos Nicolau, do InCor, mostraram que o tratamento com a LDE também pode reduzir o tamanho do infarto de coração em pacientes humanos, o que tem potencial terapêutico muito amplo em cardiologia. Esse trabalho foi mostrado no Congresso Internacional de Cardiologia, realizado no Rio de Janeiro, em outubro passado. Portanto, a LDE é uma proposta de renovação terapêutica não só para o câncer, mas para doenças de várias especialidades da medicina que afetam milhões de pacientes no Brasil e no mundo.

O que falta para a LDE estar disponível na rede de saúde?

Um aspecto importante é que, nos anos iniciais, usávamos um método muito trabalhoso e caro, que não permitiria a realização de estudos clínicos maiores. Levamos vários anos para desenvolver e comprovar um método prático, para produção em grande escala, o que torna possível o tratamento da população. Nossa descoberta é dos anos 1990; nessa época, o Brasil não reconhecia patentes na área farmacêutica, pagamos caro pelo pioneirismo. A indústria nacional era muito incipiente naquela época. Ainda é no aspecto de inovação, pois envolve capitais, riscos, etc. As várias etapas que são necessárias para regulamentar um medicamento que chegue à população requerem investimentos muitos altos. Talvez a Anvisa possa criar uma interface universidade/indústria para tratar das descobertas que saem da universidade. Estamos trabalhando nisso, para que se possibilite o registro da LDE com os diversos quimioterápicos e a sua disponibilização para a rede de saúde. O governo precisa abrir caminho para a inovação nacional. Facilitar a colocação no mercado das inovações farmacêuticas surgidas nas universidades que possam realmente beneficiar a população que, em última análise, é quem financia a pesquisa dos cientistas brasileiros.

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