Comportamento

Você não está louca! Conheça o abuso psicológico por trás do gaslighting

A palavra mais pesquisada de 2022 na internet surge para caracterizar a manipulação psicológica acompanhada de mentiras e traições

Eduardo Fernandes
postado em 05/03/2023 07:00 / atualizado em 06/03/2023 12:20
 (crédito: Maurenilson Freire)
(crédito: Maurenilson Freire)

Mentiras, traições e manipulações. O gaslighting é uma forma de violência psicológica silenciosa que acontece por meio da distorção de fatos e omissão de situações em favor do abusador. De acordo com o dicionário norte-americano Merriam-Webster, a expressão ganhou força depois de ser a palavra mais pesquisada, na internet, no ano de 2022, com um aumento de 1.740% em comparação a 2021.

O termo, que surgiu em 1944, após o filme À Meia-luz — ou Gaslight, ainda não tem tradução livre para o português. Na época, a obra mostrou a história de um homem que chantageava emocionalmente sua mulher, colocando-a em posição de inferioridade com humilhações. Com isso, o gaslighting surgiu para caracterizar tais abusos psicológicos, que são capazes de destruir uma vida inteira e acarretar problemas mentais e físicos.

De acordo com a psicóloga Simone Arruda, especialista em término de relacionamento, tal comportamento é definido como uma sutil forma de fazer com que a vítima duvide da própria sanidade, com mentiras e até cerceamento da liberdade. "Ela passa a não acreditar no senso de realidade e percepções. O gaslighting é mais difícil de detectar porque são ações sorrateiras e constantes", detalha.

Tudo começa com o abusador proibindo a parceira de frequentar lugares, sair de casa, apontando a rede de amigos como inútil, até fazê-la desistir de conviver socialmente. Isso, como explica Simone, para fazer a mulher ficar vulnerável e isolada, dependente do agressor. Pela ausência de pessoas que a ajudem a enxergar a realidade dos fatos, o abuso torna-se mais fácil de ser cometido.

"Você está ficando louca", "Está fora de controle", "Está exagerando". Frases clássicas, mas dificilmente percebidas. Simone Arruda ressalta que o manipulador tenta de todas as maneiras fazer com que a vítima se sinta culpada por meio de agressões verbais, questionando a si mesma e tornando-se cética quanto às suas crenças.

"Eles ainda contam e negam mentiras, dizendo que nunca falaram isso, mesmo quando você tem provas. Fala mal da vítima para pessoas próximas, querendo minar a credibilidade da companheira, podendo constrangê-la na frente de outros com brincadeiras e comentários abusivos", descreve a psicóloga.

Outra característica mencionada por Simone é que esses homens carregam um elemento em comum: são extremamente sedutores. E além dessa capacidade de encantar, aparecem sempre como se fosse o cara perfeito e ideal.

No entanto, os momentos de amabilidade e gentileza, em muitos episódios, são trocados por agressões e acidez nas palavras. "Eles fazem comentários sobre a roupa, a maquiagem. Menosprezam a mulher, fazendo-a desistir de sonhos, objetivos e metas", completa Simone.

O começo do fim

Um relacionamento de idas e vindas, que durou mais ou menos três anos, mas deixou marcas para a vida inteira. Fernanda (nome fictício, a pedido da entrevistada), 33 anos, viveu uma montanha-russa de emoções ao lado do ex-companheiro, com quem não tem mais contato desde 2020. Ela conta que ele tinha o costume de negar o óbvio, mentir descaradamente e distorcer situações a favor dele. Fazia o núcleo de amigos pensar que Fernanda era obcecada por ele e que ela agia exageradamente.

"Ele dizia que eu não saía do pé dele, que tinha pena de mim. Vivia invertendo os cenários e me desqualificando. Quando era pego no flagra, se culpava, se fazia de vítima", relembra. Paralelo a essas condutas, fazia pequenos comentários depreciativos, aqueles que aparecem subentendidos em tons de brincadeira ou críticas construtivas.

Atacava a família, os amigos e dizia que ninguém prestava, que a vida era melhor ao lado dele. Não satisfeito, ainda afirmava que Fernanda não tinha futuro e que seria ninguém. Um galã disputado e sedutor, era assim que o abusador se enxergava. Fernanda relata que o ex-companheiro fazia questão de mostrar a ela a quantidade de mulheres a que tinha acesso. Deixava evidente que era um homem desejado e querido pelo público feminino, colocando a companheira em posição de inferioridade e baixa autoestima.

"Ele me deixou no fundo poço"

Fernanda sobreviveu a guerras internas e diversos dilemas enquanto esteve com o então namorado. Dias tempestuosos, impossíveis de serem esquecidos. Problemas relacionados à ansiedade apareceram. "Se você está em uma relação em que não se sente segura ou confortável, isso não é saudável. Hoje, para mim, é muito claro. E era assim que eu me sentia."

O convívio alternava-se entre dias bons e ruins. Momentos felizes que, de repente, eram trocados por algum problema que ele mesmo criava. Cavava uma briga, sem lógica ou explicação, sumindo por dias e culpando Fernanda pelos problemas. Por isso, a aflição psicológica acabou tornando-se parte de quem ela era.

Além do mental abalado, o físico também trouxe respostas negativas. "Tive infecções ginecológicas recorrentes em razão do estresse", relembra. De tanto olhar para o abismo, às vezes, você acaba trazendo ele para perto. E de tanto ser taxada de paranoica e descontrolada, Fernanda acabou agindo assim — um movimento involuntário, que ela mal consegue explicar o porquê. "E eles fazem questão de te deixar insegura e com receio. Vivia desconfiada de tudo, eu não tinha paz. Quando cheguei na minha terapeuta, em escala de abuso de 0 a 10, ela me disse que estava no nível 9. Eu só não apanhei", narra Fernanda.

É quando se percebe dentro de um relacionamento abusivo que você passa a conhecer outras histórias. Fernanda relembra que, na época, descobriu fatos criminosos sobre o ex-companheiro: antes dela, outra mulher havia sido agredida por ele — fisicamente. Por isso, o fim chegou. "Fiquei 15 dias em estado de choque. Vegetando mesmo. Fiquei processando tudo, porque era demais para mim. Foram dias horríveis."

Naquele ponto, com as idas e vindas do namoro, Fernanda rememora a vergonha que tinha dos amigos e de uma possível reaproximação. Diante disso, decidiu manter em segredo o desfecho e ficou sozinha. Logo que tudo acabou, o abusador foi bloqueado em todas as redes sociais e ficou sem acesso ao condomínio onde Fernanda morava. "Ele ainda tentou contato por e-mail, mas eu disse que chamaria a polícia. Depois, sumiu."

Ainda em processo de recuperação, as dores permanecem. Mas já não são insuportáveis como antes. Não está totalmente curada, mas entende que essas coisas levam tempo. De vez em quando os gatilhos aparecem novamente, principalmente quando está se relacionando com outros homens. Agora, o que resta é a certeza de que a superação vai chegar.

Um olhar mais atento

O psiquiatra Luan Diego Marques cita a importância de se falar sobre o gaslighting. Mais que isso: de impedir que o abuso evolua para algo mais grave, trazendo riscos reais à vida. A manipulação psicológica pode provocar, ainda, transtorno pós-traumático, vergonha, depressão e desencadear futuros relacionamentos tóxicos.

O especialista vê como fundamental ressaltar o porquê do gaslighting ser mais recorrente entre o público feminino. "As mulheres, historicamente, tiveram menos poder e controle em muitas esferas da vida, incluindo relacionamentos íntimos e familiares, nos quais, em muitas ocasiões, sua liberdade, pensamentos, atitudes e interesses eram controlados por agentes externos, em sua maioria homens", esclarece.

Em muitos casos, como o de Fernanda, homens abrem brechas e oportunidades para fazer do gaslighting uma forma de controlar suas parceiras. O psiquiatra aponta, ainda, que as mulheres, por lidarem diariamente com a discriminação e o sexismo, duvidam da própria capacidade, habilidade e percepções. "As mulheres também podem ser condicionadas em seu processo educacional a serem mais preocupadas em agradar os outros e manter a paz, o que as torna mais vulneráveis ao gaslighting."

Superar o gaslighting pode ser um processo desafiador e demorado, mas é possível, com o tempo e o apoio adequado. Segundo Luan, reconhecer que você foi vítima e não culpada é o primeiro passo para se recuperar. Esse pensamento envolve aceitar que a realidade a qual você foi levada a acreditar que era falsa e que você foi manipulada.

Além disso, psicólogos ou psiquiatras são essenciais para ajudar a processar os sentimentos que se desenvolvem. "É importante ter amigos e familiares em quem você possa confiar. Converse com pessoas em quem você confia e peça abrigo quando precisar." Aprender mais sobre o gaslighting também auxilia na percepção de comportamentos manipuladores em outros relacionamentos, evitando que você seja vítima mais uma vez.

Outras formas de ajuda: 

Linhas de apoio: existem várias linhas de apoio disponíveis para vítimas de abuso emocional, incluindo a Central de Atendimento à Mulher (180), o Ligue 180 (disque denúncia de violência contra a mulher), o CVV (Centro de Valorização da Vida) e outras organizações de suporte a vítimas.

Grupos de apoio: grupos de apoio para vítimas de abuso emocional podem fornecer um ambiente seguro e solidário para compartilhar experiências e obter apoio de pessoas que passaram por situações semelhantes.

Advogados: se você está enfrentando uma situação que envolve violência doméstica ou outras formas de abuso, é importante buscar ajuda legal. Um advogado pode ajudá-lo a entender seus direitos e opções legais.

Fonte: Luan Diego Marques, médico psiquiatra

Carta aberta às mulheres

"Se eu pudesse aconselhar e falar algo pras mulheres que vão ler esta matéria, seria que elas confiem nas próprias percepções e intuição. Acredito que, na maior parte do tempo, a gente vê e entende o que está acontecendo, mas prefere colocar a própria percepção ou discernimento em xeque. Seja porque ama, seja porque tem esperança de que vai mudar, seja porque acha que está vendo coisa onde não tem. Se te incomoda, acredite e dê valor ao seu incômodo sempre. Ele tem fundamento!

Fernanda*, 33 anos, vítima de gaslighting

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