Especial

Encontro de gerações: mostra reúne obras de Tomie, Ruy e Rodrigo Ohtake

Exposição reúne, pela primeira vez, trabalhos da consagrada artista plástica Tomie Ohtake, do filho Ruy e do neto Rodrigo, ambos arquitetos, em casa projetada por Ruy, no Lago Sul

Sibele Negromonte
postado em 04/06/2023 07:00 / atualizado em 04/06/2023 09:53
Casa Caldas, projetada por Ruy Ohtake -  (crédito: Paula Caruso)
Casa Caldas, projetada por Ruy Ohtake - (crédito: Paula Caruso)

Quando a curadora Ana Avelar, estudiosa da obra de Tomie Ohtake, visitou o arquiteto Rodrigo Ohtake, neto da artista plástica, em seu escritório em São Paulo, nunca imaginou que aquele encontro seria tão frutífero. Em apenas duas semanas, a partir da conversa inicial, Ana e Rodrigo montaram uma exposição que reúne obras de Tomie, e mobiliário de Rodrigo e do pai dele, Ruy Ohtake, em um endereço privilegiado: uma casa projetada por Ruy em Brasília.

E não se trata de um projeto qualquer. A Casa Caldas, criada a pedido do proprietário, o advogado Roberto Caldas, foi um dos últimos realizados por Ruy Ohtake, que morreu em 2021. O imóvel, finalizado em 2014, levou quase cinco anos para ficar pronto e é o único em que ele fez arquitetura, design de interiores e esculturas. Ou seja, a casa em si é uma obra de arte.

Ana Avelar conta que foi procurada pela Almeida & Dale Galeria de Arte e pela Casa Albuquerque Galeria de Arte, que pretendiam fazer uma exposição, a princípio, apenas com pinturas de Tomie Ohtake. No processo de maturação da ideia, a curadora foi ao escritório de Rodrigo, e vários dos mobiliários assinados por ele estavam em exposição lá. "A gente começou a conversar sobre esses objetos, sobre o fato de essa casa ter sido desenhada pelo pai dele… Foi engraçado porque, quando eu cheguei para conversar com o Rodrigo, eu não tinha essa exposição em mente, ela nasceu ali."

Exposição na Casa Caldas, projetada por Ruy Ohtake
Exposição na Casa Caldas, projetada por Ruy Ohtake (foto: César Rebouças)

A professora da Universidade Brasília (UnB) lembra que, depois dessa conversa, percebeu que o trabalho de avó, pai e neto estavam muito conectados. "Daí, eu fui entendendo o que era esse lugar, de fazer um encontro entre três gerações que têm as suas produções singulares, específicas, mas que também têm uma sintonia enorme no modo de produção, que é essa abstração intuitiva, que, aliás, deu nome à exposição."

A mostra Ohtakes: abstração intuitiva tem curadoria de Ana Avelar e assistência de Rachel Vallego e foi montada a partir de uma pesquisa na coleção da família Ohtake e de colecionadores particulares. "A ideia de arte abstrata, que envolve as artes visuais, a arquitetura e o design, é a forma de comunicação e estética que se entrelaça a partir da pintura da Tomie, permeando os elementos de Ruy e Rodrigo", diz Ana.

Logo na entrada da casa, há uma escultura em concreto de Ruy, feita especificamente para o imóvel, e outra, em aço, de Tomie
Logo na entrada da casa, há uma escultura em concreto de Ruy, feita especificamente para o imóvel, e outra, em aço, de Tomie (foto: Paula Caruso)

Casa habitada

Logo na entrada da Casa Caldas, há uma escultura em concreto de Ruy, que faz parte do acervo fixo do imóvel, assim como alguns quadros de Tomie e um mobiliário que fica na ampla sala integrada. As pinturas de Tomie e o mobiliário de Ruy e Rodrigo estão expostos no térreo, no primeiro andar e no subsolo, onde fica a piscina iluminada por um jogo de cores impressionante. O jardim, com uma vista estonteante para a Ponte JK, é mais uma atração, onde, inclusive, podem ser apreciadas algumas esculturas.

Um dos fatos curiosos da exposição é que a casa está habitada. Por conta disso, a visitação é bastante restrita e só pode ser feita com agendamento, via site, no endereço https://calendly.com/casa-albuquerue/ohtakes, de segunda a sábado, das 13h às 17h — último horário de entrada às 16h. O tour tem duração de uma hora e é guiado. A mostra foi aberta no último dia 30 de maio para um grupo de convidados e segue até 1º de julho.

Poltrona triângulo em metal e estofado de Ruy Ohtake
Poltrona triângulo em metal e estofado de Ruy Ohtake (foto: Fotos: Divulgação/Galeria Almeida &Dale)

Ana Avelar reforça que as produções são singulares, têm o olho do Rodrigo, têm o olho do Ruy, que efetivamente é a casa e alguns dos móveis, e têm o olho da Tomie. "Ao mesmo tempo que eles estão juntos, eles têm a sua própria poética."

Na exposição, não há indicação nas obras de quem é o autor, e Rodrigo reforça que isso tem um propósito. "No escritório a gente também não indica. É proposital. Para entender que os meandros vão também percorrendo as gerações. O que une muito as nossas gerações é a questão da intuição, que está, inclusive, no título da mostra. A Tomie sempre pintou de uma maneira muito intuitiva, e isso ela transmitiu para o Ruy sem nunca falar a palavra intuição. E a intuição é uma coisa totalmente individual. Se você acredita na sua intuição, potencializa a sua intuição, você faz uma coisa autoral, que é o que a gente busca fazer", reforça o arquiteto. "Nós três Ohtakes trabalhamos muito com a intuição, mas o jeito que a gente mostra essa intuição para o mundo varia, porque varia o olhar."

A piscina fica  no subsolo: jogo  de cores e luzes
A piscina fica no subsolo: jogo de cores e luzes (foto: Paula Caruso)

Um laboratório artístico

Tudo na Casa Caldas é superlativo. Foram quase cinco anos para a execução do projeto do imóvel, que conta com quase 2 mil m² de área construída, sete suítes e mais de 500 pranchas desenhadas por Ruy Ohtake até chegar ao resultado final primoroso. O advogado Roberto Caldas, um apaixonado por arquitetura, design e arte, conta que entrou em contato com Ruy, em 2009, para que ele começasse a construção do zero. "Tinha só o terreno."

Antes, Caldas tinha feito um projeto com Oscar Niemeyer, mas não conseguiu executá-lo, por causa da agenda lotada do arquiteto. "Eu, igualmente, adorava o Ruy Ohtake, então o procurei", lembra. O advogado pediu a Ruy para que cuidasse não só do projeto arquitetônico, mas também de toda a decoração.

"Rodrigo Ohtake (filho de Ruy) confirmou que esta foi a única residência para a qual o Ruy fez uma escultura. Ou seja, foi a obra da maturidade artística, uma obra-prima, em que ele teve toda a liberdade de unir arquitetura, design de mobiliário e artes plásticas, por meio da escultura da entrada e das tintas em profusão de cores marcantes", orgulha-se. A Casa Caldas também foi um dos últimos projetos residenciais executados pelo renomado arquiteto, que se apegou à obra. "Dizem que há muita briga em obra, né? No nosso caso foi o contrário: a gente se tornou grandes amigos."

A casa tem muito  concreto e aço e  quase  não tem  viga à mostra
A casa tem muito concreto e aço e quase não tem viga à mostra (foto: Paula Caruso)

E a dedicação de Ruy foi total. "De domingo a domingo a gente se falava. E, como gosto muito de arquitetura, eu o provocava com algumas ideias, que ele logo transformava em realidade." A sintonia entre os dois permitiu que Caldas também atendesse certos caprichos: "Ele pediu pra trazer uma construtora lá de São Paulo e eu topei. O dono da construtora foi o engenheiro residente, foi uma loucura", diverte-se.

O cuidado de Ruy tinha um motivo. A estrutura da casa é de aço e concreto, os vãos são livres, quase não se vê pilares. A escada de acesso ao primeiro andar é curva e ladeada de vidros. "Imagina o trabalho que é fazer e instalar um vidro curvo. Eles vieram 12 vezes até chegar no resultado final. Chegava um bem, outro não, então o Rui dizia: tem que voltar, tem que voltar, tem que voltar. E a empresa fez dentro do valor originalmente combinado", recorda-se.

  • Logo na entrada da casa, há uma escultura em concreto de Ruy, feita especificamente para o imóvel, e outra, em aço, de Tomie Paula Caruso
  • Rodrigo Ohtake, arquiteto e designer César Rebouças
  • A casa tem muito concreto e aço e quase não tem viga à mostra Paula Caruso
  • Casa Caldas, projetada por Ruy Ohtake Paula Caruso
  • Casa Caldas, projetada por Ruy Ohtake Paula Caruso
  • A piscina fica no subsolo: jogo de cores e luzes Paula Caruso/Divulgação
  • Poltrona triângulo em metal e estofado de Ruy Ohtake Fotos: Divulgação/Galeria Almeida & Dale
  • Óleo sobre tela Abstrato, de 1967, Tomie Ohtake Divulgação/Galeria Almeida & Dale
  • Poltrona em metal, madeira e estofado de Rodrigo Ohtake Divulgação/Galeria Almeida & Dale
  • Namoradeira em chapa de aço policromado de Ruy-Ohtake Divulgação/Galeria Almeida & Dale
  • Escultura em metal-policromado de Tomie Ohtake, sem-título, de 2008 Divulgação/ Galeria Almeida & Dale
  • Exposição na Casa Caldas, projetada por Ruy Ohtake César Rebouças
  • Vista da Casa Caldas para a Ponte JK César Rebouças
  • Roberto Caldas se tornou amigo de Ruy Ohtake: cinco anos do projeto à construção César Rebouças
  • Rodrigo Ohtake, arquiteto e designer, e Ana Avelas, curadora e professora da UnB César Rebouças

Como morador da casa, Roberto Caldas ressalta que o imóvel não é apenas lindo, mas também extremamente confortável. "Os quartos são todos muito bem ventilados, todos com muita luz, todos os banheiros super ventilados, que é a marca do Ruy. Isso, para ele, era fundamental: funcionalidade." No início da construção, o arquiteto costumava visitar a obra ao menos uma vez por mês; depois, passou a ser a cada dois meses. "Ele participou de momentos muito importantes da minha vida, e eu sei que eu também da dele."

Mobiliário e escultura

Namoradeira em chapa de aço policromado de Ruy-Ohtake
Namoradeira em chapa de aço policromado de Ruy-Ohtake (foto: Divulgação/Galeria Almeida &Dale)

Como Roberto Caldas tinha pedido que o projeto incluísse também a decoração e o design de interiores, Ruy construiu várias peças, algumas funcionais, como o enorme banco de concreto; outras apenas decorativas, como a escultura que fica logo na entrada da casa. E aí vai um detalhe: próxima a essa obra, o proprietário pôs uma escultura de Tomie Ohtake, feita em aço e pendurada no teto, que foi produzida no centenário da artista. Uma entrada de tirar o fôlego

"Aqui, tem um bar que ele desenhou em madeira; lá em cima, no escritório, tem uma escrivaninha toda em formas orgânicas; tem também a estante, tudo desenhado pessoalmente por Ruy com muita dedicação", detalha.

Roberto Caldas se tornou amigo de Ruy Ohtake: cinco anos do projeto à construção
Roberto Caldas se tornou amigo de Ruy Ohtake: cinco anos do projeto à construção (foto: César Rebouças)

Agora, Roberto e a esposa pretendem desenvolver um projeto com Rodrigo Ohtake, único membro da família com quem ainda não trabalharam. Mônica Caldas, que é presidente da Verse, rede de saúde mental com consultórios e hospital de internação, já iniciou as conversas com o arquiteto. "O entendimento com o Rodrigo Ohtake aconteceu em São Paulo, e imediatamente se percebeu harmonia com o que a Verse busca na expansão da rede hospitalar: ambientes humanizados, acolhedores, autossustentáveis, ecológicos e com a alegria das cores dos Ohtakes", ressalta.

O projeto será para a unidade do Lago Oeste, localizado em uma área com muito verde. "Sabemos que 90% da influência do que temos no que vivemos vêm do ambiente, não só físico, mas também mental. Esse ambiente físico que queremos proporcionar é o melhor possível — agradável, colorido, alegre, onde os pacientes terão um espaço para expressão de artes", detalha. Quem sabe esse não será o primeiro projeto de Rodrigo em Brasília?

Quando questionado sobre o desprendimento de abrir as portas da própria casa, algo tão íntimo, para desconhecidos visitá-la, Caldas diz que devia isso a Ruy Ohtake. "Às vezes, em determinados momentos, a gratidão fala mais alto. Desde que o Ruy faleceu, eu fiquei com aquela impressão, ele queria tanto expor a casa, porque algumas vezes dizia: Roberto, isso é uma obra-prima. Ele aqui teve toda a liberdade, fez o que quis, eu não restringi o Ruy em nada."

Quem são os artistas

Tomie Ohtake

Uma das principais representantes do abstracionismo informal, Tomie Ohtake, falecida em 2015, aos 101 anos, começou a pintar já madura aos 40, no início da década de 1950, sendo integrada, pela crítica, ao nicho dos "pintores japoneses". Sua obra abrange pinturas, gravuras e esculturas. Nascida em Kyoto, no Japão, ela chegou ao Brasil em 1936. Aqui, conheceu o engenheiro agrônomo Ushio Ohtake, também japonês, com quem se casou e teve dois filhos, Ruy e Ricardo. A família estabeleceu-se no bairro da Mooca, em São Paulo.

"A Tomie foi uma mulher muito importante, uma das poucas mulheres que teve a projeção que ela teve. Ela começou a carreira com uma certa idade, já era madura, e teve um destaque enorme. É incrível porque ela fez uma carreira inquestionável e, ao mesmo tempo, se fez sozinha, não tinha um apoio", comenta Ana Avelar, que estuda a obra da asrtsita plástica há anos. "Ela pintava embaixo da escada, literalmente, no bairro da Mooca", reforça o neto Rodrigo Ohtake.

Ruy Ohtake

Filho mais velho de Tomie, Ruy estudou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), na qual se formou em 1960. Foi responsável por mais de 300 obras realizadas no Brasil e no exterior, além de lecionar na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie e na Universidade Católica de Santos. Entre os projetos mais famosos, em São Paulo, estão os hotéis Unique, em formato de barco, e Renaissance; o Parque Ecológico do Tietê; o sistema de transporte urbano Expresso Tiradentes e a sede social e cultural do São Paulo Futebol Clube. Em Brasília, assinou o Royal Tulip Alvorada, o Estádio do Bezerrão e o Brasília Shopping. No exterior, projetou a Embaixada Brasileira em Tóquio.

Rodrigo Ohtake

Assim como o pai, Rodrigo é formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, em 2009, com um período de estudos na Politécnica de Milão. Trabalhou com Ruy por quase 10 anos, até abrir o próprio escritório. No ano passado, depois da morte do pai, em 2021, fundiu os dois escritórios. Além do trabalho como arquiteto, assina mobiliário que tem sido premiado internacionalmente.

Serviço

Exposição Ohtakes: abstração intuitiva
Quando: até 1º de julho, de segunda a sábado, das 13h às 17h
Onde: Casa Caldas, na QL 26 do Lago Sul. As visitas são feitas apenas por agendamento, pelo site https://calendly.com/casa-albuquerque/ohtakes, o tour é guiado e dura uma hora

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