Especial

Mês do Orgulho LGBTQIAPN+: sem lugar para o preconceito e intolerância

No Mês do Orgulho, contamos histórias de famílias LGBTQIAPN+ que, com amor e respeito, enfrentam as possíveis adversidades resultantes de suas orientações e gênero

Letícia Mouhamad* e Ailim Cabral
postado em 25/06/2023 00:00 / atualizado em 25/06/2023 08:00
Dupla maternidade: Mariana Fonseca (na frente) e Érika Oliveira (em pé) são mães dos gêmeos Noah e Louise -  (crédito: Letícia Mouhamad/CB/D.A Press)
Dupla maternidade: Mariana Fonseca (na frente) e Érika Oliveira (em pé) são mães dos gêmeos Noah e Louise - (crédito: Letícia Mouhamad/CB/D.A Press)

"Esta família é muito unida e também muito ouriçada; brigam por qualquer razão, mas acabam pedindo perdão." Se você tem mais de 15 anos, lembra-se não apenas da música — que agora, provavelmente, cantou no ritmo —, mas também do programa de televisão ao qual se relaciona. A Grande Família, seriado exibido por mais de 10 anos na rede aberta, retratava os causos de uma família tida como tradicional no subúrbio do Rio de Janeiro.

Querida por muitos, a série ficou guardada na memória dos mais nostálgicos, já que reproduzia, em seus personagens, inúmeros comportamentos considerados tipicamente brasileiros. No entanto, assim como tantas outras narrativas da época, o programa se restringia a mostrar um único modelo de família, não correspondendo à realidade de boa parte da sociedade.

Quer uma prova? Observe em seu meio e veja quantas configurações são possíveis. Aí vão alguns exemplos: mães solo; pais solo; duas mães; dois pais; crianças criadas pelos avós, pelos irmãos mais velhos ou pelos tios/tias e casais sem filhos. Existem casos, também, em que os amigos são mais família do que os próprios parentes de sangue.

Há quem diga que família não se escolhe, porém, se afeto, cuidado e amizade são atributos passíveis de serem compartilhados, família pode ser, sim, uma escolha, daquelas feitas com muita sabedoria e amor. Por isso, hoje, novas narrativas têm moldado o imaginário coletivo, a fim de representar grupos antes pouco lembrados ou reconhecidos.

No longa Mãe só há uma, de Anna Muylaert, o jovem Felipe descobre que sua família, com quem conviveu grande parte da vida, não é biológica, quando a polícia prende a matriarca por sequestro. Confuso, ele passa a viver com os parentes verdadeiros, ao mesmo tempo em que se reconhece como mulher transexual. Os conflitos em torno do seu gênero exemplificam alguns dos desafios vividos, na vida real, por pessoas da comunidade LGBTQIAPN+.

Os filmes nacionais Tatuagem e As Boas Maneiras e a série Manhãs de Setembro complementam a lista quando o assunto é diversidade familiar. Inspirada pela temática e em comemoração ao Mês do Orgulho, a Revista conta histórias de famílias constituídas por muito amor, respeito e parceria. A dupla maternidade de Mariana e Érika, a amizade dos irmãos Carolina e Lu e a dupla paternidade de Daniel e Wilton são de cativar!

"São duas crianças muito inteligentes e nós trabalhamos muito em suas emoções, sempre tentando ouvir e fazer o melhor por eles", reforça Mariana
"São duas crianças muito inteligentes e nós trabalhamos muito em suas emoções, sempre tentando ouvir e fazer o melhor por eles", reforça Mariana (foto: Letícia Mouhamad/CB/D.A Press)

Parceiras na dupla maternidade

Para a cabeleireira e empreendedora Mariana Fonseca, 34 anos, falar de si é mais difícil do que parece; dos filhos, Noah e Louise, é sinônimo de sorriso no rosto. E, para além do gosto por tatuagens e da coleção de discos, ela é apaixonada por maternar. Foi no interior do Goiás, onde viveu boa parte da infância, que conheceu a pessoa com quem compartilha esse amor. Érika Oliveira, 35 anos, é corretora de imóveis e, também, mãe dos gêmeos. Viveram quase 10 anos casadas. Hoje, cada uma segue o próprio caminho, mas permanecem aliadas na criação dos pequenos. Uma é a rede de apoio da outra.

Reconheceram-se lésbicas ainda na adolescência, mas recordam a dificuldade de se assumirem em um tempo e em um lugar onde havia pouca informação e representatividade. "Eu só fui me assumir depois que já estava com a Mari, aos vinte e poucos anos", confirma Érika. Juntas, vieram para Brasília em busca de oportunidades de trabalho e, aqui, souberam da possibilidade de fazerem um procedimento de fertilização pelo SUS, no Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib). O desejo de tornarem-se mães só crescia.

Para Mariana, porém, o maternar nem sempre esteve em seus planos. "Até conhecer a Érika e ter um pouco mais de conhecimento, eu não me via nesse lugar. Lésbica e de uma classe social muito baixa, não enxergava a maternidade e o casamento como opções." Quando se casaram e começaram a falar sobre o assunto, procuraram referências de maternidade lésbica no Instagram. Eram pouquíssimas. Mas foram suficientes para acender esse desejo.

Pesquisaram sobre métodos e possibilidades, entraram na fila do processo de inseminação artificial e esperaram cerca de três anos até serem chamadas. Foi um período regado a muitos exames, desânimos e, sobretudo, fé. E não falhou. O sonho, aliás, deu tão certo que se realizou em dobro. Estavam esperando gêmeos.

A gestação foi aproveitada em cada segundo. Empolgadas, as mães prepararam cada detalhe do quarto dos pequenos e, a cada roupinha comprada, a expectativa aumentava. "Eu amei gestar e tive uma companheira incrível ao meu lado em todos os momentos. Quando eu comento sobre esse período, costumam dizer que romantizo, mas realmente me senti realizada. Estava vivendo um sonho", lembra Érika.

Sobre a sensação de receber um filho no mundo, Mariana complementa: "A gente os recebeu várias vezes, né? Quando conseguimos nos inscrever no projeto, quando atingimos o número de óvulos necessários, quando recebemos o positivo. Quando um casal homossexual quer ter filhos, tudo é muito bem preparado. Então, tudo é uma grande primeira vez. Recebemos o Noah e a Louise desde o dia em que decidimos ter filhos".

Hoje, aos quatro anos, a dupla é prioridade nas vidas das mães, que trabalham meio período para conciliarem seus horários nos cuidados com os pequenos. Como não têm rede de apoio, toda a responsabilidade permanece em suas mãos. Assim, em guarda compartilhada, as crianças ficam cinco dias com uma mãe e cinco dias com a outra. As tarefas mais práticas, como os cuidados com a higiene e com as atividades da escola, são bem divididas, e na educação, elas costumam ser bastante alinhadas.

Educação é a chave 

No começo da gravidez, Érika e Mariana receberam uma carta escrita à mão com ameaças, em tom religioso, acusando-as de estarem fazendo algo muito errado. "Ainda dá tempo de se arrepender", dizia, referindo-se à gestação. A autoria da violência nunca foi descoberta, e o tempo se encarregou de curar a dor pelas palavras ofensivas. Pessoalmente, as manifestações de preconceito se restringem a olhares tortos. Com aqueles dispostos a aprender, reagem com uma explicação didática; com os demais, apenas ignoram.

"Tudo o que sai da normatividade é sempre um desafio. Ser uma mulher lésbica já é difícil, quem dirá ser uma mãe lésbica", comenta a cabeleireira. Houve um tempo, inclusive, que ela se cobrou excessivamente por achar que deveria ser 10 vezes melhor que as outras mães. Pensava: 'Fiz essa escolha e preciso ser perfeita'". Com muita reflexão, entendeu que, além de mulher lésbica, é uma mãe que deseja o melhor para suas crianças. "Quero apenas criar adultos incríveis."

E, por falar nisso, a possibilidade de os filhos sofrerem preconceitos pela configuração familiar que têm é uma grande preocupação. Por isso, as mães oferecem artifícios para que os gêmeos possam estar preparados para tais situações. Tudo começa, claro, com a educação. Além de tratar do tema, com leituras, por exemplo, elas apresentam vários outros modelos de famílias. Conviver com a diversidade fortalece.

As mães desejam criar Noah e Louise em Brasília. "Uma cidade linda, repleta de culturas, boas escolas, lazer com parques, exposições e eventos", comenta Érika
As mães desejam criar Noah e Louise em Brasília. "Uma cidade linda, repleta de culturas, boas escolas, lazer com parques, exposições e eventos", comenta Érika (foto: Letícia Mouhamad/CB/D.A Press)

Ademais, elas prezam por uma criação positiva, sempre amparada pelo diálogo. Passar medo para as crianças, segundo Érika, só dificulta a confiança que eles têm na família. Para complementar, a dupla tenta dar uma educação igualitária e sem distinção de gênero para os pequenos, mostrando que ambos são capazes de fazerem as mesmas coisas e têm as mesmas capacidades.

Enquanto conversávamos, Louise queria se aventurar nos brinquedos do parque — nos braços de Érika, imitava um passarinho. Queria voar. Noah, por outro lado, não poupava beijos nas mães e na irmã. Com relação à personalidade dos gêmeos, ambas concordam: Louise é mais radical, explosiva, audaciosa, corajosa, proativa e persistente. Quando gosta de algo, não poupa elogios. Noah é calmo, sensível, amoroso, empático, criativo e observador. "A gente costuma falar que eles são pontos de luz", finaliza Mariana.

Alternativas para iniciar uma família

Além da adoção, uma alternativa para casais LGBTQIAPN+ que querem iniciar uma família é a reprodução assistida. Embora seja extremamente eficaz, o método traz algumas dificuldades, incluindo o custo mais elevado.

Segundo o ginecologista obstetra especialista em reprodução humano e sócio-fundador e diretor clínico da clínica Mater Prime, em São Paulo, e do Mater Lab, laboratório de Reprodução Humana, Rodrigo Rosa, um dos maiores desafios enfrentado por casais formados entre dois homens cis, duas mulheres trans ou um homem cis e uma mulher trans.

A resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que regulamenta a técnica exige que a barriga solidária seja parente de até quarto grau de uma das partes do casal, o que se torna uma dificuldade quando não existe família próxima ou quando não há ninguém que aceite a incumbência.

A doação do óvulo também pode ser de uma parente de até quarto grau, desde que esta não seja a mesma que exercerá a função de barriga solidária. Esse processo, no entanto, é mais simples, uma vez que o óvulo pode ser de uma doadora anônima.

Em último caso, essas família podem entrar com requerimentos no CFM, relatando o caso e pedindo a aprovação de uma câmara técnica para que outra pessoa possa ser a barriga solidária. Rodrigo acrescenta que, na maioria dos casos, o parecer costuma ser favorável, mas quando a autorização é negada, os casais que têm condições costumam buscar o tratamento em outros países.

Para os casais formados por mulheres cis ou homens trans, é um pouco mais simples, uma vez que uma das duas partes pode gestar o bebê. Os espermatozoides podem ser provenientes de um parente de até quatro graus, desde que não seja consanguíneo, ou seja, não pode ser um familiar da pessoa que está fornecendo o óvulo.

Rodrigo comenta que um procedimento comum, que permite uma vivência conjunta ao casal é uma pessoa doar o óvulo e a outra gestar o bebê, assim a função de “mãe” pode ser compartilhada também biologicamente.

O especialista comemora o aumento na procura pelos procedimentos. “Com a informação cada vez mais difundida, casais e pessoas que achavam que não poderiam realizar esse sonho percebem que ele é mais possível do que elas poderiam imaginar.”

Revelação de Terra e paixão, na Globo, Diego Martins — o garçom homossexual Kelvin — é estreante em novelas, mas tem na bagagem a participação exitosa em três talent shows. No último, o Queen Stars Brazil, exibido pela HBO Max, o rapaz de 26 anos foi campeão. 

Os pais Daniel e Wilton com os filhos Isaac e Kevin
Os pais Daniel e Wilton com os filhos Isaac e Kevin (foto: Arquivo pessoal)

Aprendendo a ser uma família como tantas outras

"Mais uma família entre tantas." É assim que os bancários Daniel do Valle Silvestre, 48 anos, e Wilton Antônio de Souza Junior, 42, definem a própria família. Pais de dois meninos, Isaac Silvestre de Souza, 14, e Kevin Silvestre de Souza, 10, eles buscam tratar as características da formação familiar com naturalidade, mas, ao mesmo tempo, sem tentar mascará-las ou escondê-las.

“E mesmo se nós quiséssemos, não seria possível. Dois homens brancos, de mãos dadas, com dois meninos negros, além de ser óbvio que somos um casal, fica bem na cara que os meninos são adotados”, diz, rindo, Daniel.

Para Daniel e Wilton, é importante que os filhos entendam que eles fazem parte de uma família normal, como qualquer outra, mas, ao mesmo, fazem parte de três minorias e de grupos que costumam sofrer algum tipo de preconceito. “Eles são dois meninos negros, adotados e filhos de um casal homoafetivo, não temos como blindá-los do mundo e de todos os preconceitos que existem”, acrescenta Wilton.

E como unir todos esses fatores e transmitir isso aos filhos de maneira saudável? Para os bancários, o caminho ideal é o diálogo sincero e aberto. No início do processo de adoção, há cinco anos, Daniel e Wilton lembram de sentir uma certa ansiedade em transmitir aos meninos as suas vivências de forma muito intensa e rápida, mas logo perceberam que não precisavam de pressa.

“Assim que Isaac e Kevin chegaram, focamos na nossa afetividade com eles, em criar o nosso vínculo. Ficou claro que isso era o mais importante naquele momento. E que a educação, e como enfrentaríamos juntos os desafios do mundo, seria algo que viria com o tempo e a maturidade”, comenta Wilton.

Embora essas preocupações estivessem presentes desde o início — até mesmo antes de começar o processo de adoção, quando o casal chegou a conversar sobre o fato de que estariam trazendo mais um desafio para a vida dessas crianças, as inserindo em outra minoria —, eles sabiam que seriam capazes de oferecer muito amor e acolhimento aos filhos, acima de qualquer coisa.

Ou seja, antes de serem um casal homoafetivo ensinando aos dois filhos negros adotados sobre os preconceitos que eles poderiam enfrentar, Daniel e Wilton se tornaram pais — rótulo ou cargo mais importante que passariam a carregar em suas vidas. E foi assim que os quatro foram aprendendo, juntos, como ser uma família como qualquer outra e como lidar com as vivências únicas que sua configuração familiar traria ao longo dos anos.

Os pais Daniel (com o cachorro) e Wilton com os filhos, Isaac (à esquerda) e Kevin
Os pais Daniel (com o cachorro) e Wilton com os filhos, Isaac (à esquerda) e Kevin (foto: Arquivo pessoal)

Os maiores desafios

O fato de as crianças não conviverem com mulheres diariamente tem deixado Daniel e Wilton em alerta. “A nossa casa não tem mulheres, então ensiná-los como tratá-las com respeito é uma prioridade nossa”, explica Daniel. O diálogo e o exemplo são os principais caminhos, como a forma com que o casal trata as mães, as irmãs e as amigas. Além disso, os dois se esforçam para afastar ao máximo todos os aspectos da masculinidade tóxica da vivência dos filhos. “Infelizmente, antes de ensinar a igualdade real, precisamos desfazer o machismo estrutural, ensinando sobre o respeito e o cuidado extra que eles precisam ter com as mulheres com quem convivem”, acrescenta Wilton.

Outro aspecto ao qual os pais se atentaram é a comemoração de datas familiares. Imagina-se que o segundo domingo de agosto seria uma grande festa, mas os dois preferem abordar as datas de uma forma um pouco menos tradicional. Daniel explica que, antes de chegarem à casa do casal, as crianças viveram com a família biológica, com uma mãe e um pai, e não desejam que essas datas tragam vivências negativas para os dois. “Não vamos lutar contra isso, com as comemorações das datas na escolas, mas ressignificamos para que sejam sempre momentos em que eles podem celebrar não só a nós dois, como pais, mas aos nossos outros familiares também”, explica Daniel.

Existem também os momentos em que as particularidades da família são facilitadores em alguns aspectos educacionais. Na casa da família Souza não existe divisão de tarefas por gênero, de forma que os pais têm menos preocupações sobre os filhos terem uma visão machista dos cuidados com a casa ou com os filhos.

Até algumas risadas e anedotas familiares acabam surgindo, como uma vez em que as crianças estavam brincando na área externa de um casamento para que foram convidados e levaram uma bronca da cerimonialista. “A funcionária disse que chamaria a mãe deles. Kevin tinha seis anos e disse que não ligava porque não tinha uma”, lembra, aos risos, Daniel.

Preparando-se para a adoção

Segundo Jéssica Nure, advogada especialista em direito homoafetivo e gênero, da startup jurídica Bicha da Justiça, focada em direitos e educação LGBTQIAPN+, esses são os passos necessários para quem deseja adotar:

1. Ter, no mínimo, 18 anos, independentemente do estado civil, desde que seja respeitada a diferença de 16 anos entre quem deseja adotar e a criança/adolescente a ser acolhida.

2. Apresentar: cópias autenticadas da certidão de nascimento ou de casamento, ou declaração relativa ao período de união estável; cópias da Cédula de identidade e da Inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF); comprovante de renda e de residência; atestados de sanidade física e mental; certidão negativa de distribuição cível; e certidão de antecedentes criminais. Com a entrega dos documentos obrigatórios na Vara da Infância e da Juventude, haverá a análise destes pelo Ministério Público, que poderá solicitar documentos complementares.

3. Passar pela avaliação da equipe interdisciplinar/interprofissional (formada por assistentes sociais e psicólogos do Fórum) para analisar a pessoa pretendente à adoção; sua realidade sociofamiliar; e identificar a dinâmica familiar que a criança/adolescente poderá ocupar.

4. Participar do programa de preparação para adoção, fornecido pelo próprio Fórum em parceria com as entidades autorizadas a realizarem o processo. Ao final é entregue o certificado de participação que será utilizado no processo de adoção.

5. Finalizado esses passos, a pessoa pretendente é habilitada à adoção e ingressa no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, no qual aguardará a criança/adolescente que poderá ser adotada para que se inicie a aproximação entre os envolvidos, dando início à convivência familiar.

Carolina Albuquerque, psicóloga e mestre em psicologia clínica, explica que um dos principais pontos a serem trabalhados nos adotantes são o luto pela filiação biológica, no qual há, muitas vezes, a idealização de um filho que se pareça com você, e a preparação para as demandas e as peculiaridades da criança que vai chegar. Ademais, a especialista orienta que as famílias entrem em contato com as pessoas mais próximas, a fim integrá-las ao contexto.

“Quanto antes esse tema for discutido e abordado com a rede de amigos, de apoio e a família biológica dos pretendentes, melhor. Quando a criança é acolhida, ela não é adotada apenas pelo requerente, é adotada em uma linhagem familiar; passa a ser filho, sobrinho, primo e neto”, exemplifica. Conviver com o tema da adoção, abordando-a no dia a dia, também é importante. Assim, comentar sobre a evolução do processo e tirar dúvidas, com naturalidade, deve fazer parte da rotina.

Sobre possíveis discriminações que a família LGBTQIAPN+ pode sofrer, a psicóloga direciona os responsáveis a naturalizarem a sua existência e a desnaturalizarem o preconceito, explicando, desde cedo, para a criança que o errado não é o modelo de família e, sim, aquele que interfere, tenta se impor e quer definir como o outro vai viver.

Nure reforça que não existe qualquer distinção entre as pessoas que pretendem adotar. “Os empecilhos criados para indivíduos dessa comunidade na adoção decorrem puramente dos preconceitos sociais e não da lei. No entanto, os processos podem ser guiados por quem reproduz intolerância, interferindo na análise da documentação obrigatória, de forma a cobrar ou exigir coisas desproporcionais que, eventualmente, não são cobradas de pessoas heteroafetivas.”

Além disso, o preconceito pode estar presente na avaliação pela equipe multidisciplinar, ao analisar a dinâmica social e familiar que o pretendente possui, e criar discriminações de cunho moral. Estar ciente da legislação e dos passos que regem todo o processo da adoção pode garantir que indivíduos da comunidade sejam resguardados em casos de intolerância.

Lu e Carolina Fortes: gêmeos e amigos para todos os momentos
Lu e Carolina Fortes: gêmeos e amigos para todos os momentos (foto: Arquivo pessoal)

Do ventre à luta, sempre juntos 

Quando a estudante de letras Carolina Fortes, 28 anos, partiu para um intercâmbio na França, não imaginava as surpresas que a viagem lhe proporcionaria. Lá, relacionou-se pela primeira vez com uma mulher, e a sensação de identificação — com o momento, com o beijo e com a moça — logo lhe conquistaram. Começou a "ficar" com outras meninas, mas somente quando retornou à cidade natal, engatou um namoro.

Como sempre gostou de conhecer pessoas e lugares diferentes, considerando-se bastante ativa, trocou novamente de cidade e, com a mudança, mais novidades: decepcionou-se no namoro e terminou; ingressou no movimento feminista e lésbico; e, depois de um tempo, voltou a ficar com rapazes. Sentiu que sofria certa pressão para se assumir como lésbica, quando, na verdade, se entendia como bissexual. Foi apenas quando se relacionou com pessoas transexuais que conheceu a pansexualidade, orientação com a qual se identificou. "Eu me sinto atraída por pessoas, independentemente do gênero ou da orientação sexual."

Quando a notícia foi contada aos pais, eles agiram de forma hostil e incompreensiva. Ela mesma recordava-se que, mais nova, imaginava ter um vida heteronormativa e, no futuro, pensava que se casaria e teria filhos. Um dia, declarou: "Eu sou feliz sendo assim. Se isso os incomoda, vocês precisam resolver na terapia". À época, perdeu um tio querido, que era muito jovem e gay, de forma trágica, fato que sensibilizou sua mãe para o contexto dos próprios filhos. Sim, filhos. Carolina não estava sozinha. Lu, seu irmão gêmeo trans, passou por desafios semelhantes no mesmo período.

Quando mais jovem, nunca foi desconfortável, para ela, estar dentro da heteronormatividade e vestir roupas tidas como femininas, por exemplo. Sempre notou, porém, que, para Lu, esse padrão o fazia sentir-se deslocado. Quando ele se assumiu como trans e pediu que ela usasse pronomes masculinos, confessa ter sentido estranhamento no começo. "Naquele período, cerca de quatro anos atrás, ainda se falava pouco sobre essas pautas." Ainda hoje, nota manifestações de preconceito, que também são desabafados por Lu.

Como irmã e aliada, foi Carolina quem fez a ponte do irmão com os pais, a fim de mitigarem os problemas na relação familiar. Como boa canceriana, afirma defendê-lo contra tudo e contra todos. "Sempre tento me colocar para ajudar, mesmo que, às vezes, eu não entenda ou não esteja passando por aquela situação. Ele é a pessoa que eu mais amo no mundo." E além de amor, compartilham hobbies e amizades. Hoje, a família abraça a pansexualidade de Carolina e a transexualidade de Lu. Tornaram-se ativistas e são eles, veja só, que corrigem aqueles que não usam o pronome correto com o filho.

Mobilização

Lu Fortes é biomédico e mestrando em saúde pública. Atua em um serviço do SUS, especificamente com questões relacionadas a HIV e demais infecções sexualmente transmissíveis, trabalho que lhe faz sentir realizado. Ademais, integra coletivos que pensam em saúde junto à população trans. Sua pesquisa acadêmica tem uma temática semelhante e visa mostrar como profissionais dessa área também são pessoas trans, como mobilizam esse campo e como criam suas redes. Tal qual a irmã, é chegado em pets e em boas conversas.

Todos os dias para ele, que se identifica como pessoa não binária e trans masculina, são desafiadores quando o assunto é preconceito. "O uso correto do pronome é, de longe, a maior dificuldade. Além disso, já sofri transfobia institucional e já desacreditaram o meu gênero", conta. As reações são variadas, a depender do espaço onde está. Por vezes, a fim de prezar pela sua saúde mental, apenas ignora; noutras, se coloca à disposição para conversar.

Questionado sobre a relação com Carolina, não poupa elogios e gratidão. "Ela foi uma pessoa essencial no meu processo de entendimento de gênero e sexualidade, sempre foi uma rede de apoio para além da nossa casa e jamais deixou de me defender", revela. Irmão, dizem os ditados populares, é aquele amigo para toda a vida. No caso dos gêmeos, a união partiu do ventre para a luta. Sempre aliados.

Sem desculpas para mal-entendidos

O acrônimo LGBTQIAPN+ representa, respectivamente, lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, intersexo, assexuais, pansexuais e não-binários. O sinal “+” serve para abranger as demais pessoas da comunidade e a pluralidade de orientações sexuais e variações de gênero. Veja, abaixo, o que significa cada designação:

- Lésbicas: mulheres que sentem atração sexual e afetiva por outras mulheres.

- Gays: homens que sentem atração sexual e afetiva por outros homens.

- Bissexuais: indivíduos que sentem atração sexual e afetiva por homens e mulheres.

- Transgêneros: pessoas que assumem o gênero oposto ao de seu nascimento.

- Queer: designa pessoas que não se encaixam à heterocisnormatividade, que é a imposição compulsória da heterosexualidade e da cisgeneridade.

- Intersexo: quem não se adequa à forma binária (feminino e masculino) de nascença. Ou seja, seus genitais, hormônios e demais características não se encaixam na forma tradicional de masculino e feminino.

- Assexuais: pessoas que não possuem interesse sexual.

- Pansexuais: indivíduos que têm atração física, amor e desejo sexual por outras pessoas, independentemente de sua identidade de gênero.

- Não-binários: pessoas que não se identificam com nenhum gênero, que se identificam com vários gêneros, entre outras. 

*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte

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    As mães desejam criar Noah e Louise em Brasília. "Uma cidade linda, repleta de culturas, boas escolas, lazer com parques, exposições e eventos", comenta Érika Foto: Letícia Mouhamad/CB/D.A Press
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e Wilton com 
os filhos, Isaac à esquerda) e Kevin
    Os pais Daniel (com o cachorro) e Wilton com os filhos, Isaac à esquerda) e Kevin Foto: Arquivo pessoal
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    Os pais Daniel e Wilton com os filhos Isaac e Kevin Foto: Arquivo pessoal
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