Especial para o Correio — Sérgio de Sá
Muita coisa não tinha aqui, no mundinho da cidade moderna. Pra começar, essa quantidade de capivaras espalhadas por aí. Andam em bando, de galera, e ficam botando medo na gente por conta de um possível carrapato infectado ou de uma dentada imprevista. De vez em quando nos oferecem uma cena horrível de morte, patas viradas pro ar, duras, rochosas, uma tristeza sem fim no meio do asfalto.
Também não transitavam por essas bandas os motoristas bárbaros que dão meia volta na entrequadra sem titubear, mandando recado para o resto da humanidade: dane-se. Antes, todos íamos até o balão ou a tesourinha, sim, como bons cidadãos, fazer a volta e pronto. Normal. O que estão economizando agora? Tempo? Combustível? Educação? E os que entram à esquerda no posto de gasolina, entre as quadras, achando que dar seta resolve? Misericórdia.
Acabou, portanto, o mantra de que aqui não se buzina. A gente agora mete a mão no volante, mesmo que de nada adiante a estridência. Recebemos de volta um dedo em riste que diz em modo de grosseria: faço o que quero, o carro é meu, a cidade, minha, adapte-se, acostume-se, porque de agora em diante quem manda sou eu, não estou nem aí para suas velhas regras desbotadas, para norma alguma.
No princípio, a ideia era sermos mais civilizados, progredir juntos. Mas não deu muito certo. Pilotos vários não dão a mínima, nem para o plano original nem para jogos infames de linguagem. Chegou a hora de atropelar impunemente as leis de trânsito. E, claro, passar por cima das capivaras reais (perto do lago) e imaginárias (no rumo do Eixão, por cima, por baixo, a leste e oeste).
Sempre fico com saudade de um passado mais, digamos, polido, ainda que esse papo de que "antes era melhor" seja mesmo muito chato, além de inverídico. Tenho quase certeza de que era tudo igual, mas alimento esse lugar distante em que a convivência real se aparentava com a explicação teórica de um urbanista utópico que movimenta um playmobil bonzinho sobre a bem-comportada maquete.
Quer dizer, temos a faixa de pedestre. Mas, cá entre nós, tendo a pensar que ela apenas mascara uma brutalidade latente na travessia do olhar arrevesado trocado entre motoristas e pedestres. O sujeito te fecha com absoluta certeza de que está certo. O outro tranca o carro estacionado na vaga correta para comprar algo rapidinho ali e, na volta, fica chateadíssimo se você faz cara feia — porque ele estava errado.
A vida urbana segue cada vez mais parecida com outra cidade brasileira qualquer, desordenada, agourenta. Acho que é isso. Brasília foi se afastando do projeto para cair no processo, na trama da realidade do país. As onças sumiram, as capivaras brotaram. E nós continuaremos por um bom tempo contando para nós mesmos fábulas de como a capital foi inventada para fazer surgir uma nova e mais bacana cultura, emoldurada por azulejos, curvas, pilotis, cobogós etc. e tal.
Nas linhas retas, que bom, surgiram árvores e pássaros, além de pequenos bichos (nem sempre amigáveis), como bem destacou minha amiga Graça Ramos aqui neste espaço outro dia. Na atual arquitetura do cotidiano candango, entretanto, seres humanos ficam parecidos com animais predadores que, em via oposta, ganham traços de razão.
Quando me deparo com desafetos desconhecidos, encontro refúgio no poema Brasília, escrito por Sylvia Plath em 1962. Numa língua outra, encontro a história como relato do remoto, em ruas com ovelhas e carroças (In the lane I meet sheep and wagons) — e não capivaras e carros. Leio ainda o contraste entre a inocência do bebê que se alimenta no seio materno ("ele grita em sua gordura") e a perspectiva de extinção da fauna ("a aniquilação da pomba"), em meio à glória do poder.
Na ambiguidade onírica dos versos da poeta norte-americana, em que encarar o retrovisor é vislumbrar algum futuro, trago para o presente a chance de um tempo em que pessoas aladas possam sobrevoar com ternura o renascimento do impossível. E sejam, assim, capazes de olhar lá de cima o silêncio da cidade que foi um dia apenas terra vermelha, povoada por gente com torso de aço e coração espelhado.
Autor de Bernardo Sayão: caminhos, afetos, cidades, Sérgio de Sá nasceu em Brasília, em 1970.
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