Por Dante Accioly — Especial para o Correio
É uma questão de direitos humanos, uma garantia fundamental da coletividade: toda quadra de Brasília precisa ter uma boa padaria na comercial.
Não estou falando de um lugar para comprar pão. Supermercado vende baguete, mas não é padoca. Também não falo daquelas boutiques que tratam o carioquinha como um artigo de luxo para se degustar com garfo, faca, pompa e circunstância.
Nada disso. Estou falando é de padaria — com "p" minúsculo.
Cheguei nesta cidade há uns 25 anos e precisei mudar de apartamento algumas vezes. É uma filha que nasce. É um casamento que termina. É o amor que me arrebata. E nasce outra filha. E nasce a terceira. Cada mudança na vida acaba fazendo a gente mudar de casa também.
Morei em Sobradinho, Asa Sul, Sudoeste, Centro de Atividades, Vila Planalto e Asa Norte. Em todos esses lugares, sempre tive um cuidado, uma precaução: perto de casa era obrigatório haver uma padoca honesta para eu chamar de minha. Um lugar para ir a pé.
É justamente por conta desse histórico de sucesso que não consigo entender: onde eu estava com a cabeça quando escolhi meu apartamento atual? A padaria mais próxima daqui fica a duas quadras para norte, sul, leste ou oeste. Um vacilo imperdoável.
Ai, que saudade… Tem coisa melhor do que chegar à padoca de estimação e receber aquela indiferença hostil dos clientes habituais? É o desdém da intimidade, o desinteresse de quem já é de casa.
Ninguém ali precisa de cardápio. Se o balconista for bom mesmo, a gente nem precisa fazer o pedido. Como um milagre, o café com leite de sempre, o pão com ovo e a garrafinha de chá-mate chegam para acarinhar o estômago vazio. É melhor do que casa de mãe porque a gente nem precisa lavar a louça depois de comer.
Não sei se é verdade ou apenas uma daquelas lendas originárias da cidade. Mas ouvi dizer que Lucio Costa esboçou os primeiros traços de Brasília em um papel de enrolar pão. Não duvido: a padoca é mesmo um lugar inspirador. Veja o Tom Jobim, que começou a escrever Águas de Março sobre um prosaico saco de padaria.
Eu nunca planejei uma cidade, nunca compus uma canção. Mas algumas das mais modestas realizações cotidianas da minha anônima existência se deram diante de uma boa xícara de café e um pão com manteiga na chapa.
Quantas palavras cruzadas não resolvi? Quantas páginas de jornal não li? Quantas boas ideias não tive para textos que jamais escreverei? Quantos pães de queijo não pedi para alegrar as boquinhas famintas das minhas filhas? Quanta vida não passou diante de mim numa reles mesa de padoca?
Uma boa padaria na quadra é um direito fundamental que deveria estar consagrado na Constituição e na Lei Orgânica do Distrito Federal. É por isso que tenho um respeitoso queixume contra Lucio Costa. Aquele gênio inquestionável cometeu um pecadilho no projeto original de Brasília, apresentado em 1957.
Foi no tópico sobre "as comodidades existentes no interior de cada quadra". Para facilitar a rotina do morador, o urbanista sugeriu a instalação de "mercadinhos, açougues, vendas, quitandas e casas de ferragens" no comércio local. Ô, seu Lucio Costa... Bem que podia ter citado as padocas, hein? Elas são necessárias para a "cidade viva e aprazível" que o senhor sonhou para a gente.
Tivesse Lucio Costa escrito a palavrinha "padarias" no projeto do Plano Piloto, eu estaria amanhã de manhã bem cedo na porta do Iphan. Ia cobrar a instalação imediata e o tombamento compulsório de uma padoca bem aqui na minha quadra.
Dante Accioly é jornalista
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