
Em meio à pressa do cotidiano, o journaling, a escrita criativa e a arte de fazer scrapbooks ganharam espaço na rotina como ferramentas de refúgio e bem-estar emocional. A prática de externalizar pensamentos de forma inventiva transformou o papel em um espaço no qual é possível desabafar, criar e cuidar da saúde mental ao mesmo tempo.
Com formatos diferentes e benefícios semelhantes, escrever, colar e decorar têm em comum o poder de organizar pensamentos e aliviar emoções. O journaling funciona como um diário moderno que permite registrar sentimentos, reflexões e metas, podendo incluir colagens e desenhos no mesmo espaço. Já o scrapbook segue uma pegada mais artística, reunindo fotos, recortes, adesivos e elementos afetivos em álbuns ou agendas cheios de memórias e significados.
Quando a proposta é combinar imaginação, técnica e sensibilidade, a escrita criativa se destaca de outro jeito. Esse hábito envolve a produção de textos em gêneros como contos, poemas, romances e roteiros e transforma emoções em palavras, fazendo com que os sentimentos tomem forma por meio da ficção e da inovação.
Independentemente da forma de expressão, Haline Fernandes, psicóloga clínica, afirma que existem vantagens poderosas em usar canetas, papéis e adesivos para cuidar da mente. "Escrever e fazer colagens é uma forma segura, confidencial, gratuita e não julgadora de externalizar emoções, organizar ideias e até definir objetivos de vida, além de reduzir estresse, irritabilidade, ansiedade e angústia", afirma.
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Além da diminuição de sentimentos negativos, a psicóloga explica que registrar acontecimentos do dia a dia, seja de forma direta, seja criativa, ajuda a desenvolver o autocontrole, reduzir a impulsividade e tomar melhores decisões. Para a profissional, um dos principais benefícios da escrita pessoal é o autoconhecimento. "As pessoas tendem a ter mais clareza sobre seus sentimentos, comportamentos e como interagem com o ambiente à sua volta".
Segundo Haline, escrever também pode trazer novas perspectivas sobre acontecimentos passados. Ao reler textos sobre uma discussão com colegas, amigos ou familiares, por exemplo, é possível interpretar de forma diferente situações que antes pareciam definitivas.
"Dificilmente conseguimos separar memórias ou acontecimentos cotidianos das emoções que sentíamos quando eles ocorreram. Ao descrever nossas emoções, fica mais fácil associá-las, compreendê-las e nomeá-las, permitindo refletir, entender e, se necessário, buscar mudanças", assegura.
Refúgio pessoal
Como um porto seguro, Mirela Barreto, 19 anos, escreve diariamente, usando fotos para destacar memórias, objetos do dia a dia para exemplificar situações e adesivos divertidos e canetas coloridas para tornar o processo mais leve. "Se eu estiver tendo um dia muito intenso, com muitos sentimentos ou informações, uso o diário para escrever como me senti com tantas coisas. Às vezes, nem precisa ter muita coisa acontecendo, é só um espaço para me entender melhor e me sentir mais leve no final, mais para esvaziar a cabeça e me fazer bem", conta.
A jovem, mais conhecida como Mia, começou a praticar em 2018, depois de ver personagens de filmes e séries fazendo o mesmo. Com o tempo, interessou-se mais pelo hábito e, desde então, relata que não é apenas o ato de escrever que a faz se sentir bem. A experiência completa conta muito. "É um momento especial, em que relaxo, me divirto e posso ser eu mesma, destacando sentimentos profundos e intimistas que nunca achei que seriam externalizados", relata. Mirela também compartilha o processo em suas redes sociais.
Para quem pensa em começar a praticar a escrita em diários, Mia explica que não é preciso muito. O ideal é iniciar pelo básico, retratando informações simples sobre a própria personalidade. "É legal começar falando sobre o dia, pesquisar algumas perguntas, tipo aqueles desafios de 30 dias, colocar figurinhas ou fotos, escrever sobre uma música que gosta, qualquer coisa. Se você começar a escrever sobre o que ama, o diário já fica mais íntimo e automaticamente mais confortável para falar de coisas profundas", finaliza.
Já para quem deseja se aventurar apenas nas colagens, é importante ter em mãos materiais básicos, como álbuns, agendas, cadernos, papéis decorativos, adesivos, tesoura, cola e fotos pessoais, de pessoas queridas e momentos memoráveis. O essencial é se divertir e aliviar o peso da correria e da pressa que marcam o dia a dia.
Era digital e arte manual
Em tempos de altas exposições digitais, redes sociais, notificações e ritmo acelerado da informação, uma sensação de pressão constante é criada. Por isso, a psicóloga Haline explica que muitas pessoas buscam refúgio em práticas mais manuais e artesanais.
"Elas querem se desconectar e redescobrir o prazer com essas atividades, pois estimulam a criatividade, mantêm o cérebro ativo e engajado e podem levar à produção de dopamina. Além disso, aumentam a autoestima, promovendo um sentimento de realização, e induzem um estado de relaxamento e atenção plena, o mindfulness", explica.
O escritor e professor de letras Carlos Simões dos Santos, formado em português e inglês, reforça a importância do resgate da escrita manual em tempos de exposição digital. Para ele, escrever à mão cria um espaço profundamente pessoal, no qual segredos, confissões e lembranças podem aflorar com naturalidade.
"A experiência de escrever manualmente permite que emoções sejam externalizadas de forma segura, funcionando como um desabafo íntimo. Por isso, acredito que a escrita manual precisa ser resgatada e que professores têm papel importante ao incentivar a leitura e a prática da escrita em livros físicos, não apenas na internet", justifica.
Para Haline e Carlos, esses hábitos funcionam como verdadeiros abrigos emocionais em meio ao mundo digital. Além de permitir a expressão emocional e o autoconhecimento, eles oferecem prazer, criatividade e sensação de controle, elementos que dificilmente são alcançados no universo on-line, onde tudo é compartilhado, imediato e sujeito a julgamentos.
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
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