Cidade Nossa

Sobre técnica e cuidado: corpos negros no palco

Neste domingo (23/11), Ítalo Tadeu explica por que a técnica, cuidado e arte negra são inseparáveis

Italo Tadeu — especial para o Correio 

Os mestres nos ensinam a viver a arte além da técnica. Ao longo da minha trajetória como trabalhador da arte, aprendi isso no fazer cotidiano. Um dos meus grandes mestres foi o carioca João das Neves que, coincidentemente ou não, encantou-se no dia 24 de agosto de 2018, mesmo dia em que eu completei 30 anos. Foi com João — ator, diretor e dramaturgo que fundou junto a outros grandes nomes o Grupo Opinião, marca no teatro brasileiro de protesto e resistência — que aprendi que arte, política, cuidado, amor, resistência e técnica são inseparáveis.

A expertise de uma pessoa técnica que trabalha com espetáculos musicais e cênicos é fundamental para que tudo aconteça da melhor forma, isso é indiscutível. Não se alcança a plateia nem se causa o efeito esperado se não tiver cenário, iluminação e sonorização adequados e concebidas especificamente para cada espetáculo. Mas a responsabilidade do técnico que trabalha com espetáculos protagonizados por artistas negros — especialmente com o teatro negro — vai além de conceber ideias e garantir que os equipamentos funcionem na hora certa. Precisamos levar em conta o quanto nossos corpos são marcados por violências e hostilidades que nos fazem experimentar cotidianamente a dor e o desconforto.

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Sendo assim, o trabalho de um técnico na arte negra precisa levar em consideração o conforto mental e físico da pessoa artista, para que ela consiga expressar o seu trabalho com plenitude, sem se preocupar com nada além daquilo que preparou para entregar no palco. Toda a parte de cenário, iluminação, sonorização deve ter como princípio criar um ambiente confortável e seguro para que ela possa se expressar da melhor forma. Infelizmente, a realidade nem sempre é assim. O que mais se vê são cenários prontos chegando no dia da apresentação, iluminações sem levar em consideração a cor da pele do artista, sonorização padrão, que não valoriza o timbre de cada pessoa, e relações hierarquizadas sem afeto e sem respeito pela individualidade de cada história.

Quem trabalha com a arte negra sabe que não pode ser assim. A iluminação que valoriza uma pele negra não é a mesma que realça uma pele clara. O som que abraça a voz de uma mulher preta cantando um congado não pode ser o mesmo que amplifica a voz de uma cantora de baladas pop. A cenografia, a sonorização e a iluminação que acolhem a expressão de um corpo negro no palco não podem ser convencionais ou padrões: precisam estar atentas às suas singularidades, às suas memórias, aos símbolos e às raízes. Porque a história que esses corpos carregam é diferente — é marcada por ausências, violações, resistências e por uma força que não cabe em moldes prontos.

A minha experiência com arte negra se deu, principalmente, no mineiro Grupo dos Dez, que completou recentemente 15 anos de trajetória e retorna aos palcos com toda força no ano que vem, depois de ter sido fortemente afetado pelos anos de pandemia, como tantos outros grupos independentes. Essa experiência me mostrou que conceber a técnica na arte negra vai além de dominar e executar a técnica em si. Envolve capacitação específica, pesquisa contínua e atuação engajada, com escuta, preparo, cuidado e compromisso. Exige, sobretudo, entender a pessoa artista como um ser de força e fragilidade, que precisa ser evidenciado e ao mesmo tempo protegido. Porque é, sim, sobre conceber com originalidade, e também sobre operar bem equipamentos. Mas é também — e principalmente — sobre criar um ambiente onde o artista negro possa brilhar com dignidade e segurança.

Desse modo, ser técnico no mundo da arte é um ofício de bastidor, mas é também um ofício que envolve resistência, persistência e muito amor. É essa a essência de João das Neves e do Grupo dos Dez. É essa a essência que quero imprimir na CACO, espaço de criação, gestão e produção que estou ajudando a fundar aqui no Distrito Federal. A ideia está bem conectada com o nome: transformar "cacos" em mosaicos de significado, gerando novos conceitos e narrativas artísticas que valorizem o trabalho criativo, promovam a reflexão social e incidam positivamente na sociedade. Por enquanto, é só uma ideia em movimento. Mas é de caco em caco que peças diversas se unem para formar um todo coeso e belo.

*Italo Tadeu é cenógrafo, cenotécnico, técnico de som e iluminador cênico. Atua desde 2007 com artistas e grupos de teatro negros de Belo Horizonte. No DF, é idealizador da CACO — coisas, artes e conceitos, empresa de criação, gestão e produção dedicada a reunir fragmentos de saberes para reconstruir a experiência cultural no cenário contemporâneo.

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