
No Mês da Consciência Negra, quando o país celebra a história e a cultura do povo negro, a reflexão e o debate sobre o racismo se tornam mais intensos. Na capital da República, esse crime faz vítimas todos os dias.
A barbárie mais recente foi contra uma mulher, dentro de um ônibus de viagem que levava passageiros de São Paulo a estados do Nordeste. O autor, cantor de brega funk Ewerton Cláudio, conhecido como VT Kebradeira, foi preso após atacar uma mulher de 21 anos com palavras agressivas, como “macaca, primata, escrava e preta fedida”. O caso, ocorrido na última segunda-feira, próximo à Rodoviária de Sobradinho, é tratado como injúria racial. O motorista do ônibus chamou a Polícia Militar e ele foi preso em flagrante. Ewerton foi autuado por ameaça e injúria racial e colocado à disposição da Justiça (confira o que diz a lei). O Núcleo de Audiência de Custódia informou que nenhum preso apresentado para a pauta desta quarta-feira (12/11) tinha esse nome, que também não consta na prévia desta quinta-feira (13/11) e ainda não há processo distribuído no PJE para essa pessoa.
Outra vítima de racismo, a estudante Leopoldine Ramos, 23 anos, disse ao Correio que enfrentou, em várias ocasiões, diferentes situações de racismo no Distrito Federal, inclusive, em um órgão público onde estagiou. Ela foi impedida de retirar um objeto pessoal no local por um segurança, que exigiu documentos e liberação, mesmo sendo a mesma pessoa que a havia autorizado a entrar anteriormente, acompanhada de um colega. “Ele foi arrogante, nos abordou de forma deselegante. Meu amigo, que também é negro e me acompanhava no momento, chegou a dizer na hora que era racismo, porque não tinha outra explicação”, relata. “Foi horrível. Creio que essa foi a pior situação que passei em local de trabalho”, lamenta.
Ela também se lembra de outros episódios envolvendo familiares. Um deles teve como vítima seu afilhado, de 7 anos, aluno de uma escola pública. “Coleguinhas puxaram o cabelo dele, chamaram de feio, sujo e de ‘macaco louco’ de um desenho animado”, diz. O caso foi levado à direção, os alunos foram suspensos, mas a dor permaneceu. “Quando aconteceu comigo, eu me senti um lixo, mas revidei”, recorda. Leopoldine acrescenta que se arrepende por não ter denunciado outras agressões que sofreu, mas reconhece que teme a descredibilização das denúncias por parte dos órgãos responsáveis. “Sim, me arrependo, mas sei que eu teria me desgastado mais ainda. Quando a gente chega à delegacia, às vezes não acreditam no que dizemos”, afirma.
De acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF), de janeiro a outubro deste ano, houve registro de 40 casos de racismo. No mesmo perído de 2024, foram 35 ocorrências, enquanto no ano inteiro de 2023 o total foi de 41.
O advogado especialista em igualdade racial Nauê Bernardo Azevedo explica que, desde 2023, quando a injúria racial foi equiparada ao crime de racismo, não há distinção em termos de pena. “O que muda é a forma de cometer o ato. Se a agressão se dirige a uma pessoa ou grupo de pessoas determinadas ou determináveis, entra na injúria. Se o comportamento for contra todo o grupo, entra no racismo”, esclarece. Em relação à injúria racial, conforme a SSP-DF, foram 685 casos de janeiro a outubro deste ano e 592 no mesmo período de 2024. No ano anterior inteiro, houve 741 registros.
Nauê Bernardo detalha que, para a denúncia, é ideal que se juntem provas e testemunhas da ocorrência. “Não deixe de representar (denunciar) ao Ministério Público, idealmente acompanhado de um advogado, e não se descuide da parte civil, exigindo reparação também nessa esfera”, aconselha.
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“O acompanhamento por um advogado ou advogada com constante atualização sobre os mecanismos legais é fundamental”, explica o especialista. “Não existe garantia de vitória, mas, ao reunir provas, testemunhas e manejar corretamente a norma, a punição a atos racistas se torna cada vez mais possível. Também é essencial cobrar das autoridades — polícia, Ministério Público, Defensoria, magistrados e servidores — letramento e capacitação permanentes, já que as próprias esferas oficiais, muitas vezes, impõem barreiras invisíveis que dificultam o acesso à Justiça”, ressalta.
Três perguntas para
Tuanne Costa, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-DF
Como a vítima deve proceder no momento da denúncia? É necessário reunir provas antes de registrar a ocorrência?
É importante registrar imediatamente a ocorrência. A denúncia pode ser feita em qualquer delegacia de polícia (Civil ou Federal), ou diretamente na Delegacia de Repressão aos Crimes de Racismo e Intolerância (Decradi) se houver na localidade. A palavra da vítima é um elemento importante para iniciar a investigação, mas reunir o máximo de evidências é essencial para fortalecer o caso. Testemunhas, imagens, vídeos ou registro de conversas são provas úteis. A autoridade policial tem o dever de investigar a denúncia, mesmo sem provas prévias.
A lei prevê aumento de pena quando o crime ocorre em locais públicos, redes sociais ou por parte de servidores públicos. Quais situações são mais comuns no DF e o que caracteriza o crime nesses casos?
A Lei nº 14.532/2023 prevê aumentos de pena em situações que amplificam o impacto discriminatório. Isso ocorre, por exemplo, quando o crime é cometido em locais públicos ou de acesso público, como transportes ou estabelecimentos, onde a conduta ganha maior visibilidade. Igualmente grave é a prática em redes sociais, redes de comunicação ou publicações, devido ao alcance exponencial e à capacidade de disseminação massiva do ódio, que atinge inúmeras pessoas e prolonga o dano à vítima. No DF, observamos que essas dinâmicas são muito semelhantes às do restante do país. No entanto, percebo com preocupação que um grande número de casos ocorre no ambiente escolar, muitas vezes sem o combate efetivo que deveria ter, um claro reflexo da falta de aplicação e fiscalização da Lei nº 10.639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na grade de ensino.
Muitas vítimas têm medo de denunciar por receio de exposição ou de retaliação. Quais orientações para garantir que o processo seja seguro e efetivo?
A orientação principal é nunca fazê-lo sozinho. É essencial buscar, desde o primeiro momento, o auxílio de um advogado especializado em direitos humanos e combate ao racismo que possa oferecer a orientação jurídica necessária, planejar a denúncia de forma estratégica e acompanhar a vítima, garantindo a proteção de seus direitos e a mitigação de riscos de exposição ou de retaliação. Além disso, a busca por auxílio psicológico é fundamental para lidar com o trauma e o desgaste emocional inerentes ao processo, oferecendo o suporte para que a vítima se fortaleça.
O que diz a lei
- Racismo é crime. A Lei nº 7.716/1989 pune qualquer ato de discriminação ou preconceito por motivo de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional que atinja uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando a integralidade de uma raça.
- A lei abrange situações como negar atendimento em estabelecimentos, impedir acesso a emprego, serviço público, escola, hotéis e transporte, entre outros. O crime é imprescritível e inafiançável, ou seja, pode ser investigado a qualquer tempo. O acusado não pode pagar fiança para responder em liberdade.
- A injúria racial, prevista no artigo 140, §3º do Código Penal (CP), ocorre quando alguém ofende a dignidade ou o decoro de uma pessoa específica, utilizando elementos referentes à sua raça, cor, etnia, religião ou origem. Em 2023, a Lei nº 14.532 alterou o CP e a equiparou ao crime de racismo, ampliando a punição. A pena pode chegar a reclusão de dois a cinco anos, além de multa — e aumenta se for praticada por mais de uma pessoa.
- A mesma lei incluiu novas situações em que há crime de racismo, como casos cometidos em redes sociais, eventos esportivos, artísticos ou culturais, ou quando há violência contra práticas religiosas. Se o autor for funcionário público e cometer o crime no exercício da função, a pena também aumenta.
- Denúncias podem ser feitas em qualquer delegacia, incluindo a Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual (Decrin), da Polícia Civil do DF, além do 190 e do Disque 100.

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