Cinema

O esboço de um enigma literário: Verissimo está nos cinemas

Acessível, tímido, modesto e introspectivo, o autor de clássicos nacionais Luis Fernando Verissimo é tema de documentário realizado, ao longo de oito anos, por Angelo Defanti

O escritor gaúcho Luis Fernando Verissimo move o documentário de Angelo Defanti -  (crédito: Sobretudo Produção/Divulgação)
O escritor gaúcho Luis Fernando Verissimo move o documentário de Angelo Defanti - (crédito: Sobretudo Produção/Divulgação)

Prestes a completar 80 anos, à época das filmagens de longa que chega aos cinemas agora, o personagem central de Verissimo — o escritor Luis Fernando Verissimo — se empenhou em repassar o número do WhatsApp dele para desconhecida fã. Mas a cena encerra quase um efeito especial, em meio à falta de familiaridade entre tecnologia e o cronista que por décadas dialogou com a popularidade junto aos leitores. "Posso te garantir que não sabe nem o que é WhatsApp! Ele não entende, acha que é um código normal de telefone, e há cena no filme que demonstra isso", assegura o cineasta responsável pelo longa, Angelo Defanti.

O documentário chega depois de Defanti acumular três filmes adaptados da literatura de Verissimo, o mais recente deles, O clube dos anjos. A proposta do documentário veio ainda em 2015. "Não deu tempo de ganhar um edital, então, fizemos tudo na raça e por iniciativa própria. Voltei para casa com 100 horas de material e que exigiam muito tempo para depurar. Poderia fazer uma devassa na vida dele, mas queria fazer uma boa história, na realidade. A chegada da pandemia, no meio, não ajudou muito. Não lamento esse período de hiato entre a realização e o finalização do filme. Acho que amadureci o processo. Ter filmado o documentário ajudou na ficção (O clube dos anjos) — os filmes acabaram conversando", comenta o diretor.

O autor de Comédias da vida privada, hoje aos 87 anos, ainda que não tenha incitado filme polêmico, tem lá até peça íntima exposta: "Tem cenas dele dormindo, tem cueca (dele) secando em quadro, mas quem não tem uma cueca que seca no varal!?", brinca o diretor. Na última semana das filmagens, o autor, projetando maior ação na fita, questionou: "O filme não vai ter nenhuma câmera na mão?", ao que o diretor deu a negativa. "Enquanto eu filmava, todos (da família) tinham um pouco de descrença no que eu estava fazendo. Poderia gerar um filme, todos (eles) vivendo a vida, acordando, almoçando, dando bom dia, jantando, indo dormir, e eu, filmando? Como é isso (!?) — a vida normal pode gerar cinema?", relembra Defanti. Não se tratava de um desconhecido administrando esse material. Todos abriram a vida, e o diretor se esforçou para corresponder. 

Entrevista // Angelo Defanti, cineasta

É meritocracia ser escolhido para retratar uma fase da vida de Verissimo (que, entre infinidades de temas, tratou da "equanimidade absoluta", na crônica A justiça que fere)?

Meritocracia, eu não sei! Diria que era outra coisa. Primeiro, eu tenho que falar do que desperta a vontade de fazer um filme. Fui tendo a convivência não só com a pessoa dele, mas a família, como um todo. Observava a família, o funcionamento e parecia tudo muito diferente: observei que tinha muito afeto ali, mas nem tudo era expressado, as coisas estavam muito nos pequenos gestos. Fora que é uma família que tem um patriarca muito introvertido, e todo mundo é muito extrovertido! Eles funcionam, e isso me chamou muito a atenção, mais até do que fazer um filme sobre o escritor, quis fazer sobre o entorno dele. Tem uma passagem no filme que é sobre a impossibilidade, a incapacidade dele de dizer não. Ele não consegue negar, talvez isso seja um comentário sobre o filme, quando propus. Ele também não negou. Claro que tem um processo de confiança: não era completo desconhecido. Era o Ângelo (eu) que tava lidando, não era uma equipe, era uma câmera em que ele não confiasse. Talvez, ainda assim, eu tenha aproveitado um pouco dessa incapacidade dele (risos).

Diretor Angelo Defanti do documentário 'Verissimo'.
O diretor Angelo Defanti (foto: Arquivo Pessoal)

Existe uma emblemática cena da vivência dele com a neta e que envolve fabulação. Como a percebe?

Primeiro, essa cena que você destacou é a minha preferida do filme. É quase que avô e neta se colando pela ficção: ele entra na invenção, na onda dela, e não desmonta. Por mais lento e tranquilo, ele participa da tempestade da cena. Aquilo está mais na forma de eles conversarem — criança gosta de inventar muito, e ele é um ficcionista de profissão. É a forma de eles conversarem, onde se tocam e tem muito mais afeto do que se demonstra. Quando você propõe um filme desse; você não propõe só para pessoa, propõe para todo mundo. A família foi topando que tivesse uma câmera ali acompanhando as pessoas viverem as suas vidas, nos seus cotidianos; o que era rotina, eu estava tentando iluminar um pouco mais (para o filme).

Quais tuas impressões mais recentes dele?

A última vez na qual estive na casa foi em 2022, ele já tinha passado pelo AVC dele, em 2021. Sim, ele está inspirando cuidados, mas  dá gosto de ver o quanto mantém um cordão de carinho ao redor dele. A casa continua em pleno funcionamento. Como se demonstra, ele não é muito ativo. Agora, está um pouco menos ativo. Quando fui lá, transcorria o funeral da rainha (Elizabeth II), e ele estava acompanhando com muita atenção. Ele está aposentado, não escreve mais. Meu contato com eles é constante, com a Lúcia (esposa) ou com a Fernanda (a filha mais velha). Por e-mail, Verissimo respondia de quando em nunca. Ele decidia quando responder, e esse contato já era filtrado por outras pessoas.

Sendo ele muito moderado, você pareceu privilegiar a celebração da vida dele, sem tratar tanto de obra, cartum e jazz. O que faz ele tão popular?

Esse é um dos enigmas do filme: uma provocação mais pela pergunta do que pela resposta. Imagino as pessoas, daqui a 30 anos, que não terão uma relação contemporânea com a escrita dele e, ao mesmo tempo uma pessoa estrangeira, que não conhece nada e vai assistir o filme — ela fica muito intrigada como esse homem que não é dos mais atirados, que não tem tantos dotes de admiração pela persona dele. Ele é tão admirado, a ponto de um teatro inteiro cantar, espontaneamente, parabéns para ele! Ele é pacato, no último, e esse sujeito pacato e sereno e discreto; o que esse cara faz para produzir tamanha admiração, filiação, sentimento das pessoas? A resposta, clara, talvez esteja na obra para quem não conhece muito a escrita. Suspeito que se vai ficar um pouco intrigado, e buscar essa obra. No filme, há a opção por seguir o homem, tentar registrar o que eu via, conforme me aproximava dele e da família, ao longo dos anos. Os dados biográficos estão disponíveis em uma enciclopédia. E aquilo que não está na pesquisa?! O que o cinema pode fazer para demonstrar o que não está lá nos registros. Na ficção (dirigida antes do documentário), há o ponto de conexão com a própria característica da obra dele: pegar essa rotina, esses eventos cotidianos, e descartáveis, e dar uma luminosidade como se fosse um pouco do que chamo "a apoteose do pequeno". O rame-rame do dia a dia se transforma em narrativa, e a gente vai percebendo no que as coisas, alteradas ou repetidas, e as pessoas referendam a escrita dele.

Verissimo vive muito de memórias?

Ele não vive muito de memórias. É um senhor muito pacato, reservado, taciturno — mas ele sempre foi assim. Isso há 50 anos. Ele muito fiel a isso, estando feliz, triste ou preocupado, a cara é mesma. Conhecendo a obra, a gente sabe que ele pode estar no silêncio, mas, por dentro, ele está longe disso, está pensando, analisando e, o tempo todo, sendo o cronista que é. Ele teve uma produção insana: nos anos de 1980 e 1990, ele produzia cinco crônicas semanais. Depois, caiu para três. Ele colhe muito do mundo, do mundo que ele observa. Caso não tivesse essa família, ficando mais isolado, ele, certamente não seria o escritor que conhecemos. Articulamos, no filme, essa observação:  esse cara colhe muita, muita, muita coisa do mundo, conforme fica parado, e nisso colhemos um pouco dele também.

Há solidão nele? Nota um mundo paralelo no mestre?

Tem algo muito pertencente ao filme: há uma demonstração de amor em todos permitirem que a pessoa (Verissimo) seja do jeito que ele é. Da parte dele, também já estar presente (junto a todos) é uma forma de amor. A família sabe do jeito dele, e entende, e ele entende também a família. Ele gerou filhos extrovertidos. Eles precisam da presença dele e é nesses pequenos gestos que coisas são ditas. Ele está ali, alheio, pensando, trabalhando e também colhendo do mundo. O que trazem de fora naquela casa gera combustível para ele pensar mais e mais. E há uma generosidade entre todos. Na engrenagem dele, há o contato com o mundo externo. Aliás, tenho certeza de que, a cada evento público que ele participava, fosse debate ou noite de autógrafos, ele queria muito que aquilo acabasse no segundo em que começou (risos). Ele ficava exposto às pessoas — sabendo para quem escreve. Ele não escreve para o etéreo, ele escreve para as pessoas. Na obra, isso vai tendo um lastro, um significado para outras pessoas, que sem contentam com a presença dele, ainda que ele não precise nem falar, mas pelo fato de estar na presença dele. Nisso, há a disponibilidade dele que traz a generosidade para com o outro, e ele entende da generosidade das pessoas que o leem e admiram. É uma via de mão dupla: ele nunca acha que é só ele que quer ficar sozinho, ele está ali com outros (sozinhos). Não é uma solidão povoada!

No filme ele comenta pouco de política, isso não o inquieta ou incomoda mais? 

Se a gente acompanha a obra dele, sabe que ele sempre foi um comentarista político muito ativo, influente, com pendor para a esquerda, sem esconder isso. Mas a proposta do filme não era ter entrevistas. Registrei, sim, as entrevistas que eu sabia às quais estaria exposto, na reta final dos 80 anos. As perguntas também foram importantes, e nelas ele não foi muito incitado a falar sobre política. Isso também é um comentário para um sujeito que teve sua influência política muito firme, comentando e sendo comentado por políticos. A própria Velhinha de Taubaté (criada durante o governo militar) é uma personagem clássica: trocava o sinal, ela não via problemas no governo, e isso era onde transpareciam todos os problemas do governo. Verissimo traz a ficção para influenciar a realidade. Havia crônicas feitas em primeira pessoa, com opiniões muito firmes. No filme, ele vivia muito política naqueles cadernos de jornais que estava lendo: a maioria era político. Lembro muito, no do aniversário dele, houve um debate entre a Hilary Clinton e o Donald Trump; acabou a festa dele e ele ligou a televisão! Ele está sempre percorrendo a política, não consegue se desligar disso.

E o fato da época da ditadura em que ele narra sobre a chegada de censores à redação da Folha da Manhã...

Ao que parece, a resposta que é verdadeira. O fato de ter um primo chamado Luis Carlos (e confundido com Verissimo), vim a saber que não era uma piada. É verdade. Chegaram falando de Luis Carlos Verissimo, e ele (Luis Fernando), aliviado, uma vez que talvez prendessem o primo dele (em seu lugar — risos).

 

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postado em 01/05/2024 09:35 / atualizado em 01/05/2024 09:40
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