ENTREVISTA / Mercedes Bustamante

Bolsonaro precisa reverter desmonte da proteção ambiental, diz especialista

Para Mercedes Bustamante, ausência na COP26 revela a visão do presidente de que "as discussões climáticas não têm relevância"

Gabriela Bernardes*
Tainá Andrade
postado em 14/11/2021 06:00
 (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)
(crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)

A bióloga Mercedes Bustamante, professora na Universidade de Brasília (UnB), avalia que a ausência de Jair Bolsonaro (sem partido) na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26), em Glasgow, na Escócia, foi um “erro crasso” e reflete a visão do chefe do Executivo de que “as discussões climáticas não têm relevância”. A especialista destaca o retrocesso do país na área ambiental, principalmente, durante a pandemia da covid-19.

“Na maior parte do mundo, com exceção do Brasil devido ao aumento do desmatamento e queimadas, a pandemia resultou em uma redução das emissões de gases de efeito estufa”, compara a acadêmica, que tem como principal área de estudo a ecologia de ecossistemas, focada em observar as mudanças ambientais globais.

Uma das vozes mais ativas nos fóruns e debates da COP26, Mercedes Bustamante, participou do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) e do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), contribuindo em vários estudos. Ela ressalta que o desmonte na área ambiental e o desrespeito aos direitos de povos indígenas e às comunidades tradicionais só geram repercussão negativa para o país.

A expert vê o momento atual como decisivo para a agenda ambiental e alerta para a necessidade de o governo provar com urgência “que realmente trabalhará no combate às mudanças climáticas”, pois “não há mais tempo para palavras sem lastro nas ações”.

Confira a entrevista concedida ao Correio:

Como a pandemia impactou a questão climática e modificou as pautas da COP neste ano? Quais foram as principais mudanças nos temas?

Na maior parte do mundo, com exceção do Brasil devido ao aumento do desmatamento e queimadas, a pandemia resultou em uma redução das emissões de gases de efeito estufa. No entanto, as emissões já retornaram aos patamares anteriores à pandemia. Isso mostra o quanto ainda precisa ser feito para encaminhar medidas mais rápidas de mitigação. Uma lição importante da pandemia é: problemas globais exigem estreita cooperação entre países e esforços para superação de desigualdades sociais.

Como o seu trabalho e pesquisa puderam contribuir nas discussões desse ano da COP26 para as soluções e problemas enfrentados pelo Brasil?

Eu participo de diferentes grupos que divulgaram documentos na COP26, como a Earth League, o Science Panel for the Amazon e o Climate Crisis Advisory Group. Entre eles, destaco, principalmente, o relatório produzido pelo Science Panel for the Amazon lançado na conferência deste ano. É, hoje, o mais amplo documento sobre a situação da Amazônia. Junto à Earth League, contribui com o relatório Ten New Insights in Climate Science 2021. Os dois documentos destacam pontos centrais para a solução da crise climática e ressaltam o papel central da conservação e restauração dos ecossistemas naturais, pontos importantes para o Brasil.

O Brasil fez uma manobra para fugir das pedaladas climáticas e, mesmo com o que chamam de “meta ambiciosa”, foi muito criticado. Quais foram as reais propostas feitas até agora?

Foi enorme a repercussão negativa sobre a imagem do país no exterior. A proposta que o Brasil apresentou, com sua Nationally Determined Contribution (NDC), foi considerada pouco ambiciosa e envolta em polêmica por ter alterado a base de cálculo anterior, que permitiria aumentar as emissões e não reduzir. A correção ainda não contemplou um aumento da redução de emissões que poderia ser feita pelo Brasil.

O fato da revisão de metas brasileiras ter aberto a possibilidade de maiores emissões, quando deveria ter considerado um aumento da ambição em termos de redução, em associação ao desmonte da área ambiental no governo federal, com consequências para o aumento do desmatamento e incêndios, além do desrespeito aos direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais só gerou mais repercussão negativa.

O que a ausência do presidente Bolsonaro pode demonstrar para os demais participantes da COP26? As propostas levadas pela comitiva brasileira são, de fato, eficientes e foram bem recebidas?

A ausência do presidente reflete sua visão: que as discussões climáticas não têm relevância, um erro crasso para o Brasil. Por outro lado, assinar os acordos de eliminação do desmatamento e também o de redução das emissões de metano — no caso brasileiro, oriundas, principalmente, da pecuária — foi uma boa sinalização na direção correta. Mas, agora, precisamos ver ações concretas e rápidas para cumprir com os acordos e reverter as políticas de desmonte da proteção ambiental no Brasil. Não há mais tempo para palavras sem lastro nas ações.

Qual a sua impressão sobre o posicionamento das autoridades e da sociedade civil na COP26? Existe uma bolha na qual as discussões governamentais foram realizadas?

A sociedade civil brasileira representou de forma extremamente digna, diversa e proativa. É lamentável que os espaços de participação da sociedade civil e da ciência, em vários conselhos e fóruns que tratam de tais questões, tenham sido reduzidos ou mesmo eliminados. Um problema complexo como a mudança do clima exige ampla participação da sociedade para equacionar soluções que considerem também o respeito aos direitos e a justiça social. Então, a sociedade civil, setor privado e ciência são essenciais para a construção de propostas em sintonia com as demandas de sustentabilidade e proteção do clima. Os desafios que temos são complexos e exigem uma liderança responsável, transparente e democrática.

O mercado de carbono é realmente uma boa solução para o desenvolvimento econômico verde? Qual a sua opinião a respeito?

O mercado de carbono é uma das estratégias, em conjunto com outras medidas. No entanto, é preciso que seja transparente, bem regulamentado e justo, para que não seja entendido como uma ferramenta para prosseguir poluindo. É importante lembrar que não há saída se não trabalharmos no sentido de descarbonizar a economia global, com uma redução drástica do uso da energia fóssil. Dessa forma, o incentivo à inovação será crucial.

Como o Brasil sairá da conferência de Glasgow?

Se por um lado, o Brasil mostrou uma certa inflexão de posições anteriores — ao assinar a declaração para o controle do desmatamento e das emissões de metano —, com menos obstruções às negociações, por outro ainda não apresentou claramente quais ações serão efetivamente implementadas, quem serão os responsáveis e como irá reconstruir governança ambiental.

Adicionalmente, vimos autoridades brasileiras atacando as lideranças de povos indígenas na COP26 e mantendo a equivocada associação de conservação de florestas à pobreza. Tais pontos indicam que o governo brasileiro ainda terá que provar que realmente trabalhará no combate às mudanças climáticas. Infelizmente, os números recentes do desmatamento no Brasil indicam que não houve uma mudança significativa.

O que representa ou deveria representar esse encontro para o país?

Globalmente, estamos em um momento decisivo e precisamos atuar rapidamente para aproveitar a estreita janela de oportunidade para desacelerar o aquecimento global. O Brasil pode ser um ator importante, mas, infelizmente, o papel do país foi desidratado por seu conjunto de ações nocivas ao meio ambiente e pela postura na COP anterior, quando foi acusado de prejudicar as negociações. Temos que considerar que o Brasil já é afetado e será ainda mais pela mudança do clima, portanto deveria estar debruçado seriamente sobre essas questões.

Por qual razão o Brasil, que tem expertise em políticas de proteção ambiental, está em descrédito mundial? Como chegamos a isso?

A situação é fruto do desmonte sistemático dos órgãos ambientais, das estruturas de fiscalização e de um discurso, por parte do governo federal, que estimula as ações predatórias. No campo da pesquisa ambiental, há o impacto dos cortes expressivos no orçamento de Ciência e Tecnologia para custeio de projetos, renovação dos equipamentos e pagamento de bolsistas. A condução das atuais políticas de Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia e Educação convergem para gerar o quadro desalentador que vivemos hoje.

Qual é o peso e a importância da sociedade em eleger um candidato em 2022 que se preocupe com o meio ambiente e apresente propostas ambientais relevantes e eficazes?

O meio ambiente repercute em nossa qualidade de vida, saúde e economia. Os candidatos aos poderes Executivo e Legislativo devem dar centralidade a essa agenda, pois não considerar a pauta ambiental significa perder oportunidades e o agravamento da crise atual do país.

*Estagiária sob a supervisão de Rosana Hessel

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