VIDAS EM TRANSIÇÃO

Na BH de 1917, cirurgias redefiniram gênero de pacientes até contra vontade

Operações de desambiguação de sexo chocaram os costumes da época e mudaram a vida inclusive de quem não queria

Gustavo Werneck/Estado de Minas
postado em 09/08/2022 14:29 / atualizado em 09/08/2022 15:08
Jornais tratavam intervenções como cirurgia de mudança de sexo e chamavam a atenção para alterações de nome e padrão de comportamento -  (crédito: Juarez Rodrigues/EM/D.a press/Reprodução)
Jornais tratavam intervenções como cirurgia de mudança de sexo e chamavam a atenção para alterações de nome e padrão de comportamento - (crédito: Juarez Rodrigues/EM/D.a press/Reprodução)

O caso “Emília-David”, episódio em que uma cirurgia na Belo Horizonte de 1917 definiu a redesignação de gênero de um rapaz com malformação genital criado como menina até os 19 anos, não foi o único a ganhar as páginas dos jornais no começo do século passado como operação de “mudança de sexo”. Uma expressão tecnicamente equivocada, já que se referia a diagnósticos de pseudo-hermafroditismo ou “hipospádia” – condição em que órgãos genitais masculinos apresentam semelhança grosseira com a anatomia feminina, dado o pequeno desenvolvimento do pênis, que lembra vagamente um clitóris hipertrofiado.

Até a década de 1930, houve em BH registro de ocorrência de mais 20 casos semelhantes à história de Emília Soares (1898-1951), de 19 anos, que se submeteu a uma cirurgia e se tornou David Soares, com mudança na então carteira de idade (hoje de identidade). Operado, David se casaria com uma antiga colega de turma do colégio feminino e passaria a trabalhar como funcionário público. Como ele, a maioria dos outros pacientes esteve sob os cuidados do médico David Corrêa Rabello (1885-1939) no Hospital São Vicente de Paulo, atual Hospital das Clínicas, em Belo Horizonte.

Naturais do interior de Minas, muitas pessoas que passaram pelo bisturi do doutor Rabello ficaram conhecidas, maldosamente, como “Mário-Maria” ou “Maria-Mário”. O Estado de Minas localizou famílias com antepassado nessa condição, mas, “por uma questão de respeito à memória do parente”, algumas pessoas preferiram não dar entrevista. Assim, determinados nomes serão omitidos nesta terceira reportagem da série “Vidas em transição – De Emília a David”.

Sob o arco-íris

Em 28 de janeiro de 1933, o EM mostrava a história de uma mulher de 20 anos, que na época morava havia pouco mais de 12 meses em BH. Submetida a uma cirurgia para retirada do apêndice, “levantou-se transformada em robusto rapaz”. Eis um trecho da reportagem, intitulada “O resultado surpreendente de uma banal operação de apendicite”.

“A moça que se deitara na mesa operatória, sob os cuidados do dr. David Rabello, levantou-se transformada em robusto rapaz. A história pitoresca de um menino que foi criado por seus pais como se pertencesse ao sexo feminino. Uma lenda antiga culpa o arco-íris de certas metamorfoses humanas. Diz a superstição popular que o homem que passa sob o arco-íris transforma-se em mulher. E reciprocamente”, dizia o texto da época.

Prosseguiu o repórter: “No planalto em que foi plantada Belo Horizonte, o arco-íris é um acontecimento raro. Entretanto, o destino parece ter escolhido a capital mineira para palco de suas mais extravagantes e irônicas experiências. A população guarda memória de uma senhorita que, subitamente, com o auxílio de conhecido cirurgião, transformou-se em varonilíssimo mancebo, hoje casado e exemplar pai de família.”

No seu recente trabalho “Miloca que virou David – Intersexualidade em Belo Horizonte (1917-1939)”, o escritor, pesquisador e professor Luiz Morando revela a frequência de registro, nos textos jornalísticos de então, “de certo processo de metamorfose, emprego irônico e abusivo do prefixo ‘ex’” e um contraste entre os termos “gentil senhorita” e a figura forte do Davi bíblico. “Na pequena capital mineira de então, David Soares encarnava o mito do indivíduo que, ao passar sob o arco-íris, tinha seu sexo alterado, confrontando a rigidez biológica e científica do binarismo sexual”, escreveu o autor.

Maioria dos pacientes tinha origem humilde

Luiz Morando chama a atenção para a origem social humilde da maioria das pessoas afetadas pela repentina mudança de gênero a partir da cirurgia de desambiguação de sexo, entre elas uma pessoa da zona rural de Curvelo, na Região Central de Minas. A exemplo de outras pessoas, era chamada de “mulher-homem”, e não sabia explicar por que, “possuindo feição masculina, voz aguda, músculos desenvolvidos, um buço sombreando-lhe o lábio superior”, fora criada como pertencente ao sexo feminino.

Em fevereiro de 1934, o poeta Djalma Andrade narrava outras ações do doutor Rabello, no extinto Diário da Tarde: “Ser ou não ser... A questão/pode trazer confusão/Toda a incerteza de Hamlet.../Somente o fero escalpelo/do doutor David Rabello/Inspira confiança e fé”.

Dois meses depois, a maioria dos jornais “ocultou” a cirurgia de adolescente do interior de Minas, da família de um prefeito. Em junho, foi a vez de a servente de uma escola de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, submeter-se ao “bisturi milagroso” de Rabello e “passar a ser um autêntico homem”.

O relato está em matéria do Estado de Minas de 7 de junho de 1934: “Após queixar-se de fortes dores no abdômen à diretora, essa examinou a funcionária, pensando tratar-se de apendicite, e constatou o ‘fenômeno’”. A matéria diz que, após a cirurgia, a décima do tipo realizada pelo doutor Rabello, o paciente foi muito visitado por diversos curiosos da capital e da cidade vizinha.

Ela não queria, mas foi operada

Em Lagoa Santa, também na Grande BH, em setembro de 1938, ganhou destaque o caso emblemático de empregada doméstica de 27 anos, também com diagnóstico de malformação. Conforme reportagem do EM, ela declarava que queria continuar vivendo como mulher. Trazida a BH, foi alvo de um debate sobre a conveniência de uma cirurgia contra a sua vontade, e se posicionou: “Se for para virar homem, não me deixarei operar”. Mesmo sob protestos, a decisão da paciente não foi respeitada: o pai autorizou a cirurgia em 4 de setembro de 1938.

“Essas histórias culminam com as ideias centrais que as narrativas apresentadas contêm: corrigir um (suposto) erro da natureza, restabelecer uma (suposta) verdade, desconsiderar a vontade do (a) paciente”, ressalta o pesquisador Luiz Morando. Em sua avaliação, o caso de Lagoa Santa é emblemático sob vários aspectos: “O lugar do paciente face ao homem da lei (no caso, o médico); o conflito de interesses a ser resolvido, sempre pendente para o lado da autoridade médica ou paterna; o discurso do masculino marcando a diferença de gêneros e hierarquizando-os; o foco distorcido sobre a monstruosidade – para os médicos, é necessário corrigir a natureza para a paciente deixar de ser monstro; para a paciente, ela passa a ser monstro ao ter ‘corrigido’ seu corpo, não se conformando com o ‘malfeito’”.

Recusa

Em fevereiro de 1939, uma lavadeira do Grande Hotel de Belo Horizonte, identificada como homem ao fazer um exame para obter a carteira de saúde, também se recusou a fazer a cirurgia. Coincidentemente, uma de suas irmãs havia sido considerada “mulher-homem” e operada. Curioso é que a divulgação do caso da lavadeira ocorreu uma semana após a morte, em 10 de fevereiro de 1939, do médico David Rabello, que, apesar das controvérsias, tornou-se cirurgião respeitadíssimo, teve seus méritos científicos reconhecidos e se tornou patrono da cadeira de número 62 da Academia Mineira de Medicina.

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