Entrevista | Secretário de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde de SP

"É insano, nada justifica não vacinar uma pessoa", afirma David Uip

Um dos nomes mais respeitados da medicina brasileira, o infectologista foi um dos profissionais de saúde que lideraram o enfrentamento da pandemia de covid-19. Defensor do SUS, sofreu ameaças quando comandou o Centro de Contingência de SP

Henrique Lessa
postado em 19/09/2022 03:30
 (crédito: Henrique Lessa /CB   )
(crédito: Henrique Lessa /CB )

Um dos profissionais da linha de frente da covid-19, tanto na prática médica quanto no planejamento público, o médico infectologista David Uip é um defensor do Sistema Único de Saúde, mas questiona a gestão do sistema e a destinação dos recursos públicos.

Uip foi o coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus do governo paulista e, agora, está à frente da Secretaria Extraordinária de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde do estado de São Paulo. O órgão estadual criado com objetivo de se tornar um formulador de políticas e estratégicas de longo prazo para o campo da saúde.

Em entrevista ao Correio, o infectologista falou sobre suas expectativas de mudança no financiamento do sistema público de saúde. Também falou sobre a pressão que sofreu, como coordenador do Centro de Contingência, quando foi contaminado pela covid e teve sua receita médica vazada na internet.

O SUS funciona?

Mesmo com deficiências, especialmente no cuidado básico à saúde e longe dos grandes centros, e com os crônicos problemas de financiamento e gestão do sistema, apesar dos problemas, existe um SUS que funciona, e muito bem. As pesquisas realizadas com usuários do SUS em São Paulo demonstram que a maioria da população aprova o sistema, apesar das filas e das dificuldades no acesso a determinadas especialidades. A capacidade de resposta do SUS foi fundamental no período da pandemia e, quando o governador (de São Paulo na época, João Doria) me chamou para integrar o Centro de Contingência, o estado tinha 3,5 mil leitos de UTI. Para covid, chegamos a quase 15 mil leitos.

Diferentemente de outros países, São Paulo não ruiu. Veja Nova York (nos Estados Unidos), muito mais rica, mas, com um sistema de saúde diferente, ruiu. Aqui, não. O SUS é um dos melhores e mais capilarizados serviços de atendimento público do mundo. No consultório, como médico particular, atendi mais de 2,5 mil casos de covid. De todos os pacientes, perdi 54 para a doença e sofro por cada perda, mesmo após 47 anos de formado. Cada morte sempre é um sofrimento, eu faço o que eu posso para lidar com isso.

Como melhorar o SUS?

O SUS precisa ser repaginado, tem que melhorar o financiamento, talvez mudar a forma como é realizado esse financiamento, precisamos discutir e começar a fazer melhor uso dos recursos com gestão. Quem faz as cirurgias de alta complexidade é o SUS, as cirurgias cardíacas é o SUS. Existe uma grande competência na alta complexidade, assim como existe uma grande competência do SUS no Programa Nacional de Imunização.

Como pode ser essa gestão do SUS, o sistema é viável?

Eu sou absolutamente a favor do SUS, mas precisamos falar das diferentes formas de gestão do sistema. No estado de São Paulo temos várias delas. Temos a administração direta, onde há uma dificuldade enorme para se fazer concursos públicos, para se fazer compras, e para se demitir. O problema não é a administração direta, o problema é que temos que modernizar a legislação que rege a administração direta. A segunda forma é por meio de organizações sociais, o que vejo como um avanço. O que precisamos é de um bom controle da economicidade, da qualidade e da seriedade na gestão. Estou propondo aqui para o governador a criação de uma agência regulatória para as organizações sociais.

Veja, por exemplo: o Sírio Libanês é uma organização social modelo, que faz a gestão de alguns hospitais públicos, isso melhora a forma de gestão e principalmente a agilidade. Temos uma forma de gestão, a usada no Hospital das Clínicas de São Paulo, que é uma autarquia especial, que responde pelo seu próprio orçamento. Uma outra forma é das fundações de apoio, como vemos em diversos hospitais. Essas são diferentes formas de gestão do SUS, e não entendo nenhuma delas como privatização do sistema.

O SUS remunera corretamente?

A remuneração da tabela SUS é um problema, mas, talvez, a gente tenha que remunerar por desfecho em vez da tabela. Desfecho é o que realmente custa, você remunera pela média do custo de um tratamento para uma doença específica. Só aumentar a tabela SUS ajuda, mas não resolve todo o problema de financiamento. Por exemplo: o leito de uma UTI era remunerado, antes da pandemia, na tabela, por R$ 600. Isso ajudou a quebrar as Santas Casas. Com a pandemia, o valor da UTI subiu para R$ 1,6 mil, ainda abaixo do custo, mas, agora, pela proposta orçamentária do próximo ano, o orçamento da saúde, de R$ 200 bilhões, deve voltar ao valor anterior, R$ 130 bilhões, assim como a tabela SUS. Isso é problemático.

A prevenção não é o melhor remédio?

Nós precisamos evoluir muito na prevenção. Quanto mais investirmos na base, na prevenção da diabetes, do câncer, entre outros, menos pacientes teremos em atendimentos caros de alta complexidade. Mas é difícil você falar em prevenção quando metade dos brasileiros não tem esgoto e água tratada, é difícil você falar em prevenção quando o número de vacinados no Brasil cai a cada ano. É todo um conceito de como você pensa a saúde.

Qual a importância das vacinas nessa estratégia?

Vacina é a principal forma de prevenção de doenças, e o Butantan é uma importante fábrica das vacinas para o Brasil. Com parcerias nacionais e internacionais, logo teremos também uma grande estrutura de saúde para a fabricação de novos remédios.

Por que hoje falta a vacina para varíola?

A última dose de vacina para a varíola no Brasil foi em 1980, era uma doença erradicada, faltam estoques em todo mundo, não é só aqui no Brasil. Mas estamos com surtos de outras doenças para as quais não faltam vacinas, o que falta é política pública, falta comunicação, conhecimento, e sobram fake news. Eu falo sobre isso antes de muita gente por tudo que eu vi e vivi nos grupos negacionistas da vacina, isso é um movimento mundial. É insano, não tem nada que justifique não vacinar uma pessoa, uma população. Isso é um direito do cidadão e um dever do Estado.

Em São Paulo, faltam essas políticas?

Faltam mais. É isso o que estamos fazendo agora na secretaria, precisamos ampliar a comunicação, ampliar a conscientização da importância da vacina.

Por que o Brasil teve mais mortes por covid-19 (em relação à população) que outros países?

Naquele momento, faltou uma governança central. Faltou informação mais rápida e mais adequada. Também faltou uma resposta de insumos e medicamentos, mas esse problema o mundo inteiro sofreu. Claro que qualquer resultado que implica mortes é um desastre. Nós perdemos mais de 680 mil brasileiros, precisamos discutir porque aconteceram essas mortes.

Os números de mortes no Brasil são confiáveis?

Eu acho que o número de mortes do Brasil foi correto, apesar de as notificações serem muitas vezes lentas, elas foram corretas. Eu trabalhei na África muito tempo, lá eu não tenho a mesma confiança nos números.

A pandemia foi politizada?

Eu sou absolutamente contrário à politização da saúde. Existe a política de saúde, essa se discute; já a política geral, essa atrapalha a saúde.

Faltam médicos?

Não faltam médicos no país, o problema é a distribuição. Precisamos de uma grande participação do governo para propiciar uma interiorização, não só dos médicos como dos demais profissionais de saúde. Para isso, é necessário criar possibilidades de atualização e um plano de cargos e salários para esses profissionais que ficam no interior.

E o programa Mais Médicos?

O programa Mais Médicos é positivo, mas deve ser exigida a revalidação de diploma quando profissionais estrangeiros vêm para o Brasil, assim como tenho que revalidar o meu diploma se for trabalhar em outro país. A maior demanda do SUS são casos de baixa complexidade, isso o programa ajuda. Mas, ao mesmo tempo, também precisamos formar gente para atender os casos de altíssima complexidade, o que leva muito tempo. É um desafio complexo.

O senhor, quando contraiu covid, teve sua receita médica vazada. Enfrentou problemas por isso?

Sim, eu fui ameaçado de morte, eu e minha família fomos intimidados por todos os lados. Na receita que foi exposta, constava o endereço da minha casa, meus contatos. Era meu direito de ter privacidade, não como médico nem como integrante do Centro de Contingência, mas como paciente. Foi muito difícil.

Passada a doença, quais as sequelas?

Naquele momento eu estava na coordenação do Centro de Contingência, tive problemas físicos com a covid, mas segui trabalhando. Não é uma indicação médica. Eu fiquei doente no dia 22 de março, cumpri a quarentena e voltei a trabalhar, não tirei folga, não tinha opção, até que tive um esgotamento físico e mental. Quando tornei pública essa condição, como um ser humano normal, com meus limites, isso me custou mais críticas. Alguns entendem que médicos não podem demonstrar suas fraquezas para tratar seus pacientes, eu discordo.

E a cloroquina, funciona ou não?

Eu ajudei muito o ministro (da Saúde, Luiz Henrique) Mandetta, assim como ajudo o atual ministro e pretendo ajudar qualquer um que lá esteja. Discutimos diversas vezes os estudos de diversas drogas. Quando fiquei doente, a indicação era para o uso da cloroquina em pacientes hospitalizados, mas antes da necessidade de intubação. Com o passar das semanas e dos meses, a ciência comprovou que a cloroquina, assim como a ivermectina, não tem nenhuma eficácia no tratamento da covid. Não conheço nenhum trabalho que mude, até o momento, a verdade que a cloroquina não tem eficácia alguma.

E o tal "tratamento precoce"?

Hoje, temos, sim, tratamentos precoces, mas com drogas monoclonais, antivirais e anticorpos específicos, nada relacionado com cloroquina ou ivermectina.

O que falta para melhorar a saúde pública?

Sinto falta dos grandes pensadores que tivemos na saúde: Emílio Ribas, Vital Brasil, Osvaldo Cruz, Carlos Chagas, que pensavam à frente do seu tempo.

O senhor teme retrocessos?

Eu não tenho medo de retrocessos, eu tenho medo de não avançar, a política de saúde precisa ser uma política de Estado, e não de governos.

 


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