SOCIEDADE

Além do ateliê de Suzane: ressocialização de presos ainda é um desafio

Trabalho e qualificação profissional são meios para a readaptação às regras e ao convívio social, além de ajudarem a desmotivar a prática de novos crimes

Aline Gouveia
postado em 10/02/2023 19:58 / atualizado em 13/02/2023 14:19
 (crédito: Wilson Dias/Agência Brasil)
(crédito: Wilson Dias/Agência Brasil)

No início deste ano, Suzane Von Richthofen foi transferida para o regime aberto após decisão da Justiça. Em 2006, ela foi condenada a 39 anos e 6 meses de prisão, junto com Daniel e Cristian Cravinhos, pelo assassinato dos pais em outubro de 2002, crime que chocou o país. Após deixar a cadeia, Suzane montou um ateliê on-line para vender peças de moda autorais. A iniciativa empresarial da mulher, que atualmente tem 39 anos, gerou diversas reações críticas na internet. A chuva de comentários negativos levantou uma importante questão: como lidar melhor com a ressocialização de presos?

No Brasil existem diversos mecanismos para a profissionalização dos egressos do sistema prisional, com o intuito de reinseri-los ao convívio social e evitar que voltem a cometer crimes. Entretanto, a estrutura do sistema carcerário e o preconceito de parte da sociedade são alguns dos maiores desafios para que processo de ressocialização seja bem-sucedido.

Entendendo o sistema prisional brasileiro

No sistema penal brasileiro existem os regimes fechado, semiaberto e aberto. Segundo o professor de teoria do direito penal Welliton Caixeta Maciel, os critérios para a transição das penas estão dispostos no Código Penal e são estruturados pela progressividade e regressividade. "O objetivo principal é o de 'humanizar a pena' segundo o tempo de execução desta e o mérito ou comportamento do condenado. O trabalho do sentenciado encontra explícita previsão legal, seja ele interno — dentro do estabelecimento penitenciário — ou externo, em serviços ou obras públicas, bem como a frequência em cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior", explica o especialista em criminologia e antropologia do direito.

Para o professor Maciel, o incentivo ao trabalho se deve pelo fato de ser uma condição de dignidade humana e as políticas públicas para inserção em empregos têm a finalidade educativa e produtiva. No entanto, os presos em regime fechado possuem poucos estímulos. O mesmo cenário é observado no semiaberto e aberto. "A realidade com a qual se depara o condenado aqui fora é quase sempre de dificuldade em conseguir trabalho de imediato e, quando consegue, as condições de trabalho são agravadas pela estigmatização, pelo preconceito, pela ignorância de muitas pessoas que desacreditam no processo de reeducação, reinserção e reintegração social do egresso do sistema", conta.

O advogado Antônio Lázaro Neto detalha que se a pena de um condenado for superior a oito anos, a punição será incialmente em regime fechado. Já nos casos de condenação de não reincidentes com pena superior a quatro e que não exceda oito anos, o preso inicia em regime semiaberto. Por fim, quando a punição é inferior a quatro anos, o sentenciado inicia a pena no aberto.

De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional, coletados de janeiro a junho de 2022, há 326.365 presos em regime fechado, 126.237 no semiaberto e 8.945 no aberto nas unidades prisionais estaduais no Brasil. Os dados não incluem os encarcerados sob custódia das polícias judiciárias ou batalhões policiais.

O advogado Antônio Lázaro Neto listou as diferenças entre os regimes de cumprimentos de pena:

Regime fechado: o cumprimento de pena ocorre em estabelecimento de segurança máxima ou média, o condenado trabalha dentro da prisão durante o dia e fica isolado no período noturno;

Regime semiaberto: o condenado cumpre pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar, sendo admitido o trabalho externo e a participação em cursos;

Regime aberto: o condenado deve recolher-se à casa de albergado ou estabelecimento adequado para a reinserção social do condenado, permitindo-se o trabalho e estudo fora do estabelecimento sem vigilância, devendo o condenado recolher-se durante o período noturno e nos dias de folga. Em muitos estados, diante da ausência de casa do albergado ou estabelecimento adequado, o regime aberto costumar ser cumprido em regime domiciliar.

Chance de recomeçar

No Distrito Federal, a Fundação De Amparo ao Trabalho Preso (Funap) atua na ressocialização de presos, por meio de treinamento profissional e chances de ingressar no mercado de trabalho. Atualmente, a instituição ligada à Secretaria de Justiça e Cidadania do DF atende mais de 3 mil pessoas com contratos de trabalho. A delegada e diretora executiva da Funap-DF, Deuselita Pereira Martins, destaca que os projetos de reinserção social servem para minimizar a ociosidade durante o cumprimento da pena, ajudando a promover mudanças positivas no comportamento dos indivíduos.

“O trabalho com a mão de obra carcerária é muito importante, pois além de possibilitar a remição de pena, essas oportunidades de trabalho promovem a valoração da dignidade da pessoa humana, dentro e fora do sistema prisional, como forma de desmotivar a prática de crimes, incentivar a readaptação às regras e ao convívio social”, afirma Deuselita.

Ter a chance de recomeçar a vida foi o desejo de Thaise Miguel, 29 anos, egressa do sistema prisional. Em 2015, ela foi presa por tráfico de drogas em Recife, sendo sentenciada a 10 anos e 6 meses de prisão. Os três primeiros anos foram cumpridos em regime fechado e, neste período, ela estudou e trabalhou. Depois, Thaise passou a usar tornozeleira eletrônica.

"Neste período de tornozeleira eu julgo o mais difícil, não tinha o abraço da família, mas já tinha ido buscar meu filho e permanecemos unidos por um ano, sem eu poder participar das reuniões da escola ou levá-lo no parquinho. Julgada e excluída, o emprego que consegui foi num cemitério extremamente abusivo", lembra.

Thaise Miguel tem um filho de 13 anos. Ela é coordenadora do Instituto Recomeçar. "Meu sonho é fazer parte da transformação de um mundo mais igualitário e melhor", diz
Thaise Miguel tem um filho de 13 anos. Ela é coordenadora do Instituto Recomeçar. "Meu sonho é fazer parte da transformação de um mundo mais igualitário e melhor", diz (foto: Arquivo Pessoal)

No início da pandemia, Thaise voltou a Brasília, conseguiu um emprego, recebeu apoio da família e retornou à faculdade de ciências de dados. Também foi nesse tempo que ela conheceu o Instituto Recomeçar, do qual se tornou coordenadora no DF. Fundada em 2015 pelo ex-jogador de futebol profissional e egresso do sistema carcerário Leonardo Precioso, a instituição é formada por equipe multidisciplinar e presta apoio social, profissional e psicológico às pessoas que passaram pelo cárcere.

No DF, a instituição possui 700 pessoas cadastradas e tenta inseri-las em vagas de trabalho em restaurantes, hospitais, redes de estacionamentos, cooperativas de reciclagem e serviços de conservação e limpeza. Entretanto, Thaise reforça que o preconceito e "portas fechadas" são os principais entraves no processo de ressocialização. Por vezes, os egressos do sistema prisional até são aprovados nas etapas do processo seletivo, mas quando chega o momento da entrega da documentação, eles são descartados. No Brasil, o Projeto de Lei 4506/2019 prevê instituir o benefício fiscal ao imposto sobre a renda de pessoas jurídicas, com o objetivo de incentivar a ressocialização de presos e egressos. Contudo, a proposta ainda precisa ser aprovada pelo Congresso Nacional.

Um dos sonhos de Thaise é que as pessoas sejam tratadas em sua individualidade e que todos tenham a chance de recomeçar. "Dizem que sonhos devem ser grandes, meu sonho é fazer parte da transformação de um mundo mais igualitário e melhor. Meus planos são muitos, ver meu filho crescido e realizado, finalizar minha faculdade, ter sucesso profissional e que tenhamos apoio e amparo do Estado, empresários e sociedade civil, porque assim mudaremos a realidade e a perspectiva de várias vidas", comenta.

Os porquês do medo e do preconceito

A neuropsicóloga, doutora em psicologia e mestre em psicanálise Roselene Espírito Santo Wagner defende que a insegurança da sociedade em lidar com os egressos do sistema prisional tem bases no inconsciente, pois o comportamento futuro da pessoa passa a ser pautado pelas ações passadas. "O medo se dá pelo fato do presídio representar um lugar de penitência, onde aqueles que viviam 'fora da lei', irão cumprir pena pelo crime. O sujeito que transgride a lei é sempre visto no lugar de excluído, de diferente, por ter agido pela desrazão ocupando uma posição de negatividade", explica.

Para a psicóloga Nataly Padilha, os processos de julgamento e tomada de decisão são, muitas vezes, baseados na simplificação da sociedade, pois lidar com a complexidade do mundo exige tempo e disposição. "Na sociedade brasileira está bem difundido o estereótipo do 'bandido e ladrão'. Há um processo de aprendizagem muito longo e complexo até chegar nesse ponto onde um estereótipo vira algo bem difundido na sociedade, então é muito importante discutirmos esse assunto para construir mudanças na forma que recebemos as informações do mundo", avalia a especialista.

Portanto, antes de julgar e enxergar o outro baseado em estereótipos, a psicóloga Nataly orienta que é importante reconhecer que o egresso está em um momento de assumir as responsabilidades pelo o que cometeu e que ele precisa de tempo e oportunidades para demonstrar que admite o erro e que quer recomeçar. E, claro, reconstruir a confiança vem de forma gradual e depende de um esforço coletivo.

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