A votação do Projeto de Lei que define regras para demarcação de Terras Indígenas, prevista para esta terça-feira (30/5) na Câmara dos Deputados, originou uma onda de protestos de indígenas e entidades que promovem a defesa dos direitos dos povos originários. Na manhã desta terça-feira, cerca de 500 indígenas guarani, residentes do Pico do Jaraguá, bloquearam a Rodovia dos Bandeirantes, em São Paulo.
A rodovia foi liberada, por volta das 9h, após o uso de bomba de gás e balas de borracha contra o grupo. Outros protestos estão previstos para esta terça nas regiões Sul e Sudeste. Os atos foram convocados pela Comissão Guarani Yvyrupa, que congrega povos indígenas dos estados que compõem as duas regiões. Para a entidade, a urgência da votação do PL 490/07 mostra aos povos originários uma “urgência na luta pela vida”.
“O PL 490 quer apagar nossa história de resistência com um marco temporal e inviabilizar as demarcações de terras indígenas. É um PL feito com a ganância dos que querem abrir nossos territórios para exploração, dos que só conseguem ver a terra como forma de ganhar dinheiro”, defende a Comissão em um comunicado nas redes sociais.
Para indígenas e especialistas, a proposta de lei trará um retrocesso na luta pela demarcação de terras indígenas, assim como para o reconhecimento de que os povos indígenas são dignos de moradia e de valorização nacional.
Confira os principais pontos propostos pelo PL e repudiados pela comunidade indígena:
- Definição de uma data para definir o direito dos indígenas sobre uma terra: o PL define que as terras não ocupadas pelos povos originários em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal de 1988, não são de direito dos indígenas. A delimitação de uma data se tornou conhecido como Marco Temporal;
- A mudança em um direito constitucional por meio de lei ordinária;
Vincular a comprovação dos “requisitos” para definição de uma terra indígena a “critérios objetivos”, não definidos na lei;
- A retirada da Lei da da participação dos indígenas nos “resultados da lavra”, ou seja, dos recursos retirados das terras indígenas por meio de mineração, direito que era previsto nos artigos 231 e 49 da Constituição;
- Definir, de maneira vaga, que “áreas cuja ocupação atenda a relevante interesse público da União” não sejam de usufruto dos indígenas;
- Definir que as terras indígenas podem ser utilizadas pela União para a implementação de hidrelétricas e instalação de redes de comunicação;
- Garimpo: definir que as atividades garimpeiras podem ser feitas no local, desde que tenha permissão;
- A possibilidade de revisão de reservas indígenas, por meio do inciso que afirma que alteração dos “traços culturais da comunidade” ou “por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo” e que caracterize como a área indígena como “essencial para o cumprimento da finalidade”, seja retomada pela União ou destinada ao Programa Nacional de Reforma Agrária.
Projeto de Lei relativiza direitos previstos na Constituição, dizem entidades
A proposta, que foi aprovada a urgência para votação após solicitação do deputado Zé Trovão (PL-SC), tem como principal mudança em relação à demarcação de Terras Indígenas a definição de que apenas áreas ocupadas por indígenas no dia da promulgação da Constituição Federal de 1988, 5 de outubro daquele ano, são de direito dos povos originários.
A definição altera o texto constitucional, que prevê, no parágrafo 1º do artigo 231, como terras indígenas toda e qualquer terra “por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) repudiou o texto proposto pelo relator Arthur Oliveira Maia (DEM-BA) e apoiado pelos demais parlamentares que já demonstraram aprovação pela matéria. “Os deputados defendem a restrição dos direitos das comunidades indígenas com a aplicação do marco temporal, o que negaria todo o histórico de violência, esbulho e exploração das terras, corpos e cultura dos primeiros povos deste país, em benefício dos próprios violadores, sob um falso argumento de defesa das comunidades e paz no campo”, declara a entidade em nota.
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Para o Ministério Público Federal (MPF), “fixar um marco temporal que condicione a demarcação de terras indígenas pelo Estado brasileiro viola frontalmente o caráter originário dos direitos territoriais indígenas”.
“A Constituição garante aos povos indígenas direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sendo a tradicionalidade um elemento cultural da forma de ocupação do território e não um elemento temporal.”, acrescenta o órgão.
Para os especialistas, a mudança descarta a discussão histórica e antropológica da exploração e marginalização de indígenas durante a história do país. É fato comprovado que os povos originários foram expulsos dos territórios em que residiam para a expansão urbana brasileira.
“A tese do marco temporal, se aprovada, consolidaria inúmeras violências sofridas pelos povos indígenas, como as remoções forçadas de seus territórios, os confinamentos em diminutos espaços territoriais, os desapossamentos, os apagamentos identitários históricos, entre outras”, explica o MPF em nota.
É o que também afirma a Defensoria Pública da União (DPU), que lembrou, em nota, que o “início da história do homem branco no continente americano coincide com o fim da história de muitos povos indígenas”. “Dizimados por armas, pela escravidão e pelas doenças importadas, o genocídio das comunidades indígenas acompanhou o nascimento da sociedade brasileira”, acrescenta o órgão.
O PL menciona a possibilidade de reivindicação, por parte dos indígenas, de uma terra indígena que pertencia ao grupo antes de 5 de outubro de 1988, mas que não estava mais ocupada nesse dia, desde que seja “devidamente comprovado” a ocupação anterior.
A definição é como um beco sem saída, já que os indígenas não possuem, historicamente, o registro da história deste parte da população não é feita de forma documental, por meio de arquivos físicos, mas, sim, de forma oral.
“Inviável exigir que povos indígenas provem a resistência – da forma como nós a entendemos – aos atos de violência a que foram submetidos na expropriação de suas terras, até porque somente depois de 1988 deixaram de estar sujeitos ao regime tutelar e impedidos de reivindicar, em nome próprio, direitos em Juízo”, pontua a DPU.
Memória
Proposto pelo então deputado Homero Pereira (PR-MT) em março de 2007, o projeto de lei foi designado para avaliação das comissões de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) e de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR). Em 2009, foi comunicado a divergência de pareceres entre os dois colegiados e a Mesa Diretora da Câmara determinou que a proposta deveria ser avaliada pelo Plenário, mas não foi para a frente.
O PL caminhou a passos pequenos por mais duas legislaturas, sempre com a defesa de deputados da direita e com posições contrárias de deputados à esquerda. Em fevereiro de 2019, o PL foi desarquivado e voltou ao trâmite na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), conduzido pelo deputado Arthur Oliveira Maia (DEM-BA), designado relator da proposta.
O relator utilizou a tese do Marco Temporal, utilizada em parecer da Advocacia-Geral da União em 2009, em julgamento sobre a demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, o que foi apoiado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) naquele caso.
O texto do relator foi aprovado em junho de 2021. A inclusão do PL na agenda do dia da Câmara foi solicitada, desde então, três vezes, mas não obteve êxito. Um requerimento que solicitava a realização de audiência pública para discutir a proposta foi aprovado, mas a discussão não foi feita. Em maio deste ano, o deputado Zé Trovão conseguiu êxito ao solicitar regime de urgência para apreciação do texto no Plenário.
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