PREJUÍZOS

Enchentes no Acre atingem locais ainda danificados por desastre do ano passado

Antes mesmo de se recuperar das cheias de 2023, unidade federativa mais ocidental do país enfrenta novas enchentes. Governo local e comunidade se empenham em mitigar a devastação provocada pelas águas. Saúde e violência são outros desafios

Shirlei Maria Guerra com os filhos Naira, Laiane e Gael: rotina de mudanças provocada pelas cheias
 -  (crédito: Fotos: Carlos Vieira/CB/D.A Press)
Shirlei Maria Guerra com os filhos Naira, Laiane e Gael: rotina de mudanças provocada pelas cheias - (crédito: Fotos: Carlos Vieira/CB/D.A Press)
postado em 24/03/2024 00:00 / atualizado em 23/03/2024 03:55

Rio Branco — Na caçamba de um caminhão, uma senhora sorri e beija o cão que vai ao colo. Com ela estão cinco adultos e três crianças, todos da família Guerra. O grupo volta do abrigo que serviu de lar, por duas semanas, depois de as águas invadirem as casas deles. Ao contrário da família sertaneja de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que fugia da estiagem com a cachorra Baleia, essa família enfrenta a "alagação", termo acriano para as habituais enchentes da região.

Na caçamba, também vão móveis velhos e duas geladeiras, todos os pertences que foram salvos quando a água começou a subir. Mas, na chegada ao pequeno terreno, medindo cerca de 5 metros por 20, com três barracos, o choro é contido, a emoção do alívio da volta para casa acompanha a desolação com a destruição das casas que abrigam três gerações de mulheres da família Guerra.

A situação não é novidade, garante a dona de casa Shirlei Maria Guerra, de 42 anos. Junto aos seus três filhos — as meninas Naira, 10, Laiane, 6, e o caçula Gael, 3 — e o marido, Cherles Almeida de Oliveira, de 47 anos, ela se mudou para as tendas da prefeitura. "Todo ano dá alagação aqui, desde que eu me entendo por gente, eu nasci aqui. Eu não tenho mais nada, só os meus filhos mesmo", lamenta a moradora de Rio Branco.

Recebendo R$ 900 do Bolsa Família, Shirlei diz que não tem esperança em conseguir outra moradia. O marido Cherles, que enfrenta diabetes severa, era auxiliar de mecânica do pai. Desde a morte dele, há dois anos, não encontra recolocação. Nos outros barracos, a mãe de Shirlei, Francisca Guerra, de 62 anos, e a tia Francisca Antônia Guerra de Araújo, de 58 anos, trabalhavam como diaristas, mas também estão desempregadas. A única outra renda dos Guerra é o benefício Loas do marido da tia de Shirlei, João Fernandes de Araújo, de 77 anos.

Abrigo

O abrigo que recebeu a família está em um parque de exposição do governo estadual. Atendeu a mais de 900 famílias, totalizando quase 4 mil pessoas. É mais de 1% de toda a população de Rio Branco, que não chega a 365 mil habitantes.

Na estrutura, gerida pela prefeitura, funciona verdadeira cidade. Há portões de acesso com identificação, segurança das duas forças policiais e a constante entrada e saída de caminhões carregando os pertences restantes das famílias desalojadas. Enroladas em lonas e devidamente numeradas, as mudanças ficam guardadas em tendas até a limpeza das ruas e a liberação das casas pela Defesa Civil.

As famílias que permaneceram no abrigo contam com médicos, consultórios dentários, postos de órgãos dos governos municipal e estadual, que, entre outros serviços, oferecem a emissão da segunda via da identidade, documento perdido por muitos na inundação. Em uma outra área um canil e gatil faz o atendimento e guarda os animais de estimação de todos. Apesar do cuidado de veterinários, 24 horas por dia, os desabrigados lamentam só poder visitar os bichinhos por uma hora ao dia.

Sem programas habitacionais para retirar a população das áreas de "alagação", os órgãos governamentais ganharam expertise no atendimento dessas famílias no período de cheias, aponta o prefeito de Rio Branco, Sebastião Bocalom Rodrigues (PL), conhecido como Tião Bocalom. "O atendimento no parque, segundo a Defesa Civil nacional, em 2022, ganhou o prêmio de melhor acolhimento do Brasil. Em 2023, não saiu ainda o resultado, mas acreditamos que voltaremos a ganhar o prêmio, a assistência de 2024 acreditamos que foi ainda melhor", comemora o chefe do executivo municipal.

Além dos mutirões de limpeza de ruas e casas nas áreas urbanas, o atendimento às populações ribeirinhas ocorre com barcos que viajam, por até 30 dias, com médicos para prestar assitência de saúde além de fornecer cestas básicas para esses moradores isolados.

Habitação

A "alagação" deste ano foi a segunda maior em nível de transbordamento do Rio Acre — perdendo apenas para 2015. As marcas estão nas paredes das construções por todo o estado, que segue limpando toneladas de lama das ruas. Apesar de rotineira e menor que em 2015, a enchente deste ano teve o maior número de famílias desabrigadas, aponta o capitão Britto Soares, da Defesa Civil municipal de Rio Branco. "Foi menor esse ano (a enchente), mas temos hoje mais famílias atingidas. Isso acontece, pois temos mais pessoas nas áreas de risco que em 2015, ano inclusive do último projeto de moradia popular construído no estado", lamenta.

O projeto a que se refere Soares é a Cidade do Povo, idealizado ainda no governo do petista Tião Viana. A previsão era abrigar até 10 mil pessoas, mas atualmente chega a apenas 30% desse número. Entre as razões para a baixa ocupação, está a distância do conjunto habitacional, que fica a cerca de 15 quilômetros da região central da cidade, além do fato de o espaço, hoje, estar dominado por facções do crime organizado.

Após tantas reconstruções, o governo do Acre promete coibir novas edificações nas regiões de baixada e no entorno dos rios do estado. O governador Gladson Cameli (PP) afirma que dará início a um ambicioso projeto de mover toda a população do estado que vive nos bairros sujeitos às cheias. Para colocar em curso o programa de reconstrução, a expectativa é conseguir entre R$ 300 milhões e R$ 400 milhões do governo federal.

Segundo o governador, o projeto prevê a construção de moradias em áreas altas, mas que ainda sejam próximas dos locais onde as famílias vivem hoje, para assim garantir a adesão dos moradores ao programa.

Já a Prefeitura de Rio Branco, depois de gastar mais de R$ 60 milhões na enchente de 2025 e, até o momento, mais de R$ 20 milhões na cheia deste ano para o atendimento às famílias, também quer investir recursos municipais em moradia. Com o objetivo de construir 1.001 casas este ano, o prefeito Tião Bocalom, que concorre à reeleição, quer disputar com o rival Cameli o protagonismo político. "A Prefeitura de Rio Branco nunca teve programas habitacionais. Agora tem, nós já começamos a produção de casas, que são pré-fabricadas de madeira. O programa chama-se 1.001 Dignidade, é para produzir 1.001 casas em um dia. Vai produzir mais, mas tem esse nome para bater o recorde, esse do Iris Rezende que fez mil em um só dia. Nós vamos fazer 1.001", assegura o prefeito.

Bocalom refere-se ao bairro Vila Mutirão, em Goiânia, que entrou no livro dos recordes após a construção de mil casas populares em um só dia, em 16 de outubro de 1983, pelo então prefeito de Goiânia, Iris Rezende (MDB).

Cidade em mudança

O projeto do governo do estado, com previsão de ser apresentado ao Ministério das Cidades em abril, não deve ter apenas a previsão de deslocamento de moradores. Pretende-se mudar uma cidade de lugar. Brasiléia, com pouco mais de 25 mil habitantes, foi a mais atingida do Acre durante a cheia deste ano. A cidade, que faz fronteira com a Bolívia, chegou a ter um bairro transferido para o país vizinho após uma região ser cortada por um desvio de curso do Rio Acre — que faz a linha de fronteira. Com quase 70% da zona urbana atingida pelo alagamento, o governo estadual promete mover a cidade inteira para a parte alta do município, e criar uma área de preservação permanente (APP) ou um parque no local onde hoje é a sede do município.

O repórter e o fotógrafo viajaram a convite do governo do Acre.

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