
A Polícia Federal (PF) assumiu integralmente a responsabilidade pela fiscalização e controle de Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs), marcando o desfecho de um longo processo de transição do controle de armas civis dos militares para uma instituição civil. Esta mudança, impulsionada por uma recomendação do Tribunal de Contas da União (TCU) e formalizada pelo Decreto nº 11.615/2023, representa um avanço rumo a um controle mais eficaz e transparente, mas vem acompanhada de desafios operacionais substanciais para a PF.
A necessidade dessa transição tornou-se evidente após uma auditoria do TCU, entre 2019 e 2022, que revelou falhas na fiscalização do Exército sobre o Sistema Sigma, identificando milhares de ocorrências criminais associadas a indivíduos registrados, vendas de munições a pessoas falecidas e armas registradas para indivíduos privados de liberdade. A mesma auditoria, porém, também expôs a fragilidade do Sistema Nacional de Armas (Sinarm), administrado pela PF — menos de 3% das armas apreendidas no país foram cadastradas no Sinarm, e muitas apreensões sequer são comunicadas à PF, segundo o Atlas da Violência 2025
Ao Correio, a PF informou que existem no Brasil mais de 978,4 mil Certificados de Registro de CACs e 1,5 milhão de armas de fogo registradas em seus nomes. Segundo a instituição, os dados recebidos da Força ainda estão sob análise detalhada e os números por unidade da federação serão disponibilizados assim que prontos.
O Exército foi criticado, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), no relatório Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, por sua "inaptidão" em fiscalizar e pela "aparente incompreensão do interesse público" sobre o tema. Este ano, no Atlas, o FBSP reforçou o posicionamento do Anuário, apontando que apenas 10,4% dos caçadores registrados obtiveram autorização do Ibama para a atividade, sugerindo desvio de finalidade.
Procurado, o Exército não respondeu aos questionamentos da reportagem, mas o espaço segue aberto para manifestações.
Transparência
Com a PF, é esperada maior transparência, responsabilidade e um banco de dados unificado que permitirá conhecer o ciclo de vida das armas, desde a fabricação até o desvio para o crime, apontou Roberto Uchoa, membro do conselho do FBSP. Os profissionais da PF, lembra Uchoa, já possuem expertise no controle do mercado de armas através do Sinarm e "o escrutínio sobre os requerentes é muito maior do que o feito pelos militares", investigando antecedentes e a idoneidade das informações prestadas, o que deve dificultar a aquisição de armas por organizações criminosas, algo comum entre 2019 e 2022.
"O agente federal vai além de apenas conferir a documentação. Essa, para mim, é a grande diferença. E isso deve ajudar a evitar que armas sejam adquiridas tão facilmente por organizações criminosas, como aconteceu entre 2019 e 2022, quando várias investigações de polícias civis, inclusive da Polícia Federal, vêm mostrando, assim como denúncias e descobertas da imprensa, que isso foi algo muito comum durante os quatro anos do governo Bolsonaro", destacou.
No entanto, a transição para a PF não será simples. O especialista julga que a instituição enfrentará um aumento exponencial na demanda por serviços, reforçando o levantamento do Anuário, que apontava que, em 2025, a instituição teria que fiscalizar um total de pelo menos 4,8 milhões de armas de fogo, somando registros ativos e vencidos (1,7 milhão) do Sinarm e as armas de CACs recadastradas (963 mil).
O Anuário considera, ainda, o crescimento do mercado de armas em 2023 um alerta importante — o volume total de armas com registros ativos junto à PF ultrapassou 2 milhões em 2023, o que representa um aumento de 34% entre 2022 e 2023, e um crescimento de 227,3% no período de 2017 a 2023.
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Embora a PF tenha recebido um investimento de R$ 20 milhões, contratado empresas terceirizadas e treinado 600 servidores, Roberto Uchoa expressa ceticismo, afirmando que tal investimento não é suficiente para o desafio de assumir a fiscalização de quase um milhão de CACs e mais de um milhão e meio de armas.
"Eu não acredito que seja o suficiente para preparar a Polícia Federal para o desafio que é assumir a fiscalização de quase um milhão de CACs e de mais de um milhão e meio de armas de fogo, clubes de tiro e comércio de armas de fogo para civis. Mas eu torço para que o governo tenha noção dessas dificuldades e possa solucionar esse problema no futuro, porque se isso permanecer dessa forma, é provável que tenhamos um retrocesso, que é o que muita gente deseja", afirmou o especialista.
O cenário que envolve armas de fogo é complexo. Dados do Atlas da Violência 2025 mostraram que o Brasil registrou 32,7 mil homicídios com armas de fogo em 2023 — 71,6% do total de homicídios — e o estudo estimou que a flexibilização da legislação armamentista após 2019 tenha impedido a poupança de cerca de 6.379 vidas entre 2019 e 2021.
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O instituto do CAC foi desvirtuado, de acordo com o membro do conselho do FBSP, para promover um "derrame de armas na sociedade civil", com o número de CACs saltando de 63 mil em 2017 para mais de 900 mil em 2023.
"A gente vê o número de CACs no Brasil pular de 63 mil integrantes registrados em 2017 para mais de 900 mil em 2023. Acreditar que esse público todo foi em busca da prática do esporte, da caça, do tiro ou do colecionismo é uma ilusão, porque isso não condiz com a realidade", destacou.
A centralização na PF é vista pelo especialista como a melhor opção possível no contexto atual. Contudo, a perspectiva de longo prazo para a segurança pública dependerá, para Uchoa, de a instituição ser dotada dos recursos necessários e da manutenção de uma gestão que preserve o conhecimento especializado para evitar retrocessos e a perda de expertise em um tema tão crítico para um país com cerca de 40 mil homicídios por ano — segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024.
*Estagiário sob a supervisão de Carlos Alexandre de Souza
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