CULTURA

Entenda impactos da possível extinção de jumentos no Brasil

Essencial para produção de mulas e símbolo cultural principalmente na região Nordeste, espécie é mais importante do que se imagina, conforme explicam especialistas ao Correio

Jumento é parte de identidade cultural e regional do Brasil, apontam pesquisadores -  (crédito: CC BY-SA 3.0/Wikimedia Commons)
Jumento é parte de identidade cultural e regional do Brasil, apontam pesquisadores - (crédito: CC BY-SA 3.0/Wikimedia Commons)

Relatório apresentado pela Organização Não Governamental (ONG) britânica The Donkey Sactuary em workshop internacional a respeito de jumentos no Brasil, no fim de junho, revela que a população desses animais no país diminuiu em 94% desde a década de 1990. De acordo com Fabrício Escarlate, professor de Ciências Biológicas do Centro Universitário de Brasília (Ceub), a redução drástica tem múltiplas causas.

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Ao Correio, ele e a professora do Departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade de Brasília (CFS/UnB) Concepta Margaret McManus Pimentel esclarecem impactos que um possível desaparecimento da espécie, principalmente da raça presente na região Nordeste, geraria ao país em termos ambientais, sociais, econômicos e culturais.

Fundamental para a produção da mula, que é o cruzamento entre ele e a égua e que tem papel importante no agronegócio brasileiro, o jumento nordestino — raça de menor porte e maior risco de extinção entre as três presentes no Brasil — é forte, resistente e usado para deslocamento de pessoas e mercadorias dentro de fazendas e entre cidades no interior desde muito tempo atrás.

Fora da rotina produtiva

O problema começa quando esses animais passam a ser substituídos por outros meios de transporte. “Por muitos anos, foi essencial para transportar carga, puxar arados e ajudar em tarefas pesadas”, afirma Fabrício. “Com o passar do tempo, no entanto, essa função foi sendo substituída por máquinas e veículos. Hoje, muita gente no campo usa motocultivadores, motocicletas ou caminhonetes. Isso acabou tirando o lugar do jumento na rotina produtiva.”

Concepta complementa que “muito da ligação do jumento é com o povo mais pobre, então se cria um estigma, e, com o estigma, as pessoas procuraram outras opções e começaram a soltar os jumentos, e eles acabavam morrendo de fome e de outras causas”.

“Infelizmente, esses animais passaram a ser vistos como ‘sobrando’ no sistema econômico atual, e isso tem um peso grande nessa redução populacional”, completa o professor. Ele reforça que “o jumento não está desaparecendo como espécie global”, mas que “talvez estejamos, sim, diante do risco de perder raças específicas brasileiras, com impactos genéticos e culturais relevantes e isso, por si só, já é motivo para preocupação e cuidado”.

Falta de previsão de futuro

Os jumentos brasileiros, em especial o nordestino, são abatidos por diversos motivos. Entre eles, a exportação como matéria-prima para medicamentos na China, como alimentação para outros animais e como fonte de pele para produção de itens de vestuário em países europeus.

Apesar do abate crescente, não houve esforço oficial de reposição desses animais. Embora liminares de 2018 e de 2022 tenham tentado suspender a prática, tendo em vista a diminuição da população, as medidas não foram para frente e seguem em impasse judicial.

“Se você tira um animal, você tem que repor”, sintetiza Concepta. Nenhuma espécie poderia substituir a função de outra em um ecossistema não apenas ambiental, mas social e cultural. Segundo ela, a “negligência institucional” em torno do jumento trata-se de “falta de previsão de futuro”.

A pesquisadora reforça que o animal é parte da variedade genética que permite ao Brasil, se estudada, enfrentar desafios. “A gente nunca sabe o que a gente vai precisar no futuro”, diz. “Com as mudanças climáticas, o mundo está ficando mais quente, e vamos precisar de toda a variedade genética que temos para lidar.”

Além disso, muitos dos jumentos têm sido caçados por abatedouros que não têm registro perante o governo federal. Para a professora, essa prática “põe em risco não apenas os animais, mas a saúde humana, porque não se sabe o que pode estar proliferando dentro desses abatedouros”.

Impacto ecológico

Fabrício afirma que, do ponto de vista ecológico, o impacto de uma possível extinção do jumento no país seria “praticamente nulo”.

“Por ser uma espécie domesticada e introduzida, o jumento não ocupa um papel ecológico que precise ser ‘substituído’”, esclarece. “Ele não é uma peça-chave em cadeias alimentares ou em relações ecológicas estabelecidas aqui no Brasil. Pelo contrário, em algumas regiões onde houve abandono desses animais, eles chegaram a causar problemas, como acidentes em rodovias ou competição com animais nativos. Então, se formos olhar exclusivamente para o meio ambiente, não estamos falando de uma extinção com impacto ecológico relevante.”

Apesar de, segundo o professor, a espécie não ser “essencial para os ciclos naturais” do território brasileiro, “não quer dizer que sua perda deva ser ignorada”.

Concepta, por sua vez, aponta um papel importante do jumento nordestino: a produção de mulas. “A mula não existe sem o jumento”, reforça. “Hoje em dia, a mula é muito importante para manejo de animais em fazendas de gado”. Se raças maiores são cruzadas, os produtos da reprodução são também maiores e não tão adequados para as funções a que eram destinados originalmente. “Esse tipo é bem fundamental.”

Impactos econômicos e sociais

Porque são pequenos, também, lembra a professora, “podem ser criados como animais de estimação em hotéis-fazenda, (ser ferramenta de) terapia equina e são excelentes animais de guarda”.

Além de guardar, os jumentos podem produzir. O leite de jumenta, que é estudado a fim de servir como fonte de alimento a crianças que não conseguem beber o produto da vaca, produz queijos que são vendidos a altos preços no Brasil e exterior.

Por fim, a força e a resiliência desses animais, que incluem grande resistência a doenças e a capacidade de “andar grandes distâncias sem precisar de muito cuidado”, também contribuíram no passado e contribuem no presente para diversas conquistas socioeconômicas.

“As cidades do Nordeste devem ao jumento a própria construção”, exemplifica Concepta. “Sem eles não teria a criação dessas cidades. O povo tem muito a dever para o jumento, apesar de as pessoas não reconhecerem a sua importância, e vai continuar devendo.”

“Mesmo com a substituição por máquinas, o jumento continua sendo um símbolo importante para muitas regiões do Brasil, especialmente no sertão nordestino”, reitera Fabrício. “Ele faz parte da vida de muita gente, da memória afetiva e da história de um povo que resistiu às adversidades com a ajuda desse animal.”

Impactos culturais

Isso faz com que o jumento seja, portanto, principalmente para o Nordeste, “uma identidade cultural” e representativa. “Em termos culturais, esses animais são um símbolo de resiliência das dificuldades de morar na região”, afirma Concepta.

Fabrício concorda. “Perder o jumento seria como apagar parte da nossa identidade rural. É mais do que perder um ‘meio de transporte’, é deixar para trás um companheiro de jornadas, de batalhas diárias, de sobrevivência. E isso tem um peso emocional e simbólico muito forte.”

O professor considera o animal patrimônio cultural: “Ele aparece na música, na literatura, no imaginário popular”. Os dois pesquisadores citam canções que refletem o quanto o jumento está presente na cultura brasileira e o quanto, mesmo assim, é renegado pelo próprio povo que canta sobre ele.

Enquanto Concepta incorpora Luiz Gonzaga — “Padre Vieira falou que o jumento é nosso irmão / A vida desse animal / Padre Vieira escreveu, / mas na pia batismal / ninguém sabe o nome seu” —, Fabrício relembra Chico Buarque: “Trabalha, trabalha de graça / não agrada ninguém, nem nome não tem”.

“É o retrato de um Brasil que nem sempre foi visto, mas que sempre esteve lá”, finaliza o profissional. “Se a população de jumentos realmente desaparecer, o que se perde é essa figura simbólica, o bicho manso, resistente, que ajuda sem reclamar. É uma perda patrimonial, sim. Perder essa presença no nosso território seria como ver uma parte do Brasil profundo sumir. Não é só sobre o animal, é sobre o que ele representa.”

 

postado em 03/07/2025 19:10 / atualizado em 03/07/2025 19:20
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