Caso Bolsonaro

Bolsonaro culpa remédios por ter mexido em tornozeleira; psiquiatras falam em delírio

Enquanto a defesa do ex-presidente insiste na tese de um episódio psiquiátrico motivado por medicamentos, especialistas indicam que a combinação usada por Bolsonaro não costuma gerar quadros paranoides

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) afirmou, durante audiência de custódia, ontem, que danificou a tornozeleira eletrônica que portava em razão de uma "certa paranoia" associada a uma suposta interação inadequada de dois medicamentos que estaria tomando, receitados por médicos diferentes: pregabalina e sertralina. Detido por tentativa de fuga e dano ao dispositivo de monitoramento, ele alegou ter tido uma "alucinação" de que havia uma escuta dentro do aparelho e, por isso, ou abri-lo com um ferro de solda.

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Segundo Bolsonaro, a noite anterior ao ato foi marcada por insônia e "sono picado", o que o teria levado, por volta da meia-noite, a mexer na tornozeleira. Ele afirmou ter interrompido a ação ao "cair na razão" e comunicado o ocorrido aos agentes. Em vídeo divulgado pela Polícia Federal no sábado, porém, ele relata que começou a manipular o equipamento ainda no fim da tarde de sexta-feira.

O ex-presidente disse que estava acompanhado em casa, onde cumpria prisão domiciliar, da filha, do irmão mais velho e de um assessor, mas que ninguém percebeu o que ele fazia porque todos dormiam. Também negou qualquer intenção de fuga e afirmou que a cinta do equipamento não chegou a ser rompida. Porém, especialistas ouvidos pelo Correio explicam que os medicamentos citados por Bolsonaro e seus advogados não costumam provocar delírios ou alucinações, mas que outros fatores clínicos e físicos, especialmente em pacientes idosos, precisam ser considerados.

A psiquiatra Helena Moura, da Apuí Saúde Mental, comenta que o suposto episódio descrito por Bolsonaro se enquadra no conceito de delírio, caso tenha ocorrido. "Chamamos assim uma crença falsa e irrefutável que não pode ser explicada pela cultura, religião ou nível intelectual da pessoa", disse. Segundo ela, delírios persecutórios — como crer que há uma escuta escondida em um dispositivo — podem surgir em quadros de esquizofrenia, uso de drogas ou outros transtornos mentais graves.

Moura alerta, porém, que é preciso diferenciar delírio de delirium, condição comum em idosos e causada por disfunções orgânicas, como alterações nos níveis de sódio, infecções ou pós-operatórios. "A pessoa tem flutuações do nível de consciência (...) Pode haver agitação psicomotora e a pessoa age de forma mais 'atrapalhada'", destacou. Segundo ela, que também é professora da Faculdade de Medicina da UnB, os episódios são repentinos e melhoram após correção da causa física.

Sobre os medicamentos usados pelo ex-chefe do Executivo, a psiquiatra afirma que a sertralina pode causar hiponatremia em idosos — condição que pode levar ao delirium —, mas reforça que "nenhum dos efeitos tem a ver com surtos ou alucinações". Já a pregabalina, de acordo com ela, costuma provocar apenas sonolência. "Apenas pela interação da sertralina e da pregabalina em si, não. A associação dessas duas medicações tem baixo potencial de risco", esclareceu.

O surto

O psiquiatra Bruno Brandão avalia que, se Bolsonaro realmente tivesse um surto, o ex-presidente se enquadraria no campo dos delírios. "Com base no que está alegando, ele teve um delírio", frisou. "É quando a pessoa tem uma quebra com a realidade (...) começa a criar ideias, histórias e ver coisas que não existem." Ele ressalta, contudo, que a medicação isoladamente não costuma provocar esse tipo de quadro. "Isso não é tão frequente", disse sobre pregabalina e sertralina. Ainda para Brandão, outros elementos precisam ser analisados: "Como está a saúde física dele? Função renal, cardiorrespiratória, nível de hidratação, nível cognitivo prévio".

O psiquiatra lembra que idosos podem desenvolver delirium diante de quadros clínicos simples, como desidratação, infecção urinária ou pneumonia, e que o estresse intenso também pode desencadear um transtorno psicótico breve. "Em um paciente idoso, essa combinação de medicamento associado ao quadro clínico dele pode, sim", declarou.

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Contradições

As falas de Bolsonaro sobre o horário em que teria feito a avaria na tornozeleira eletrônica — variando entre o fim da tarde de sexta e a madrugada de sábado — e sobre seu estado mental levantam dúvidas sobre a causa do comportamento do ex-presidente.

Enquanto a defesa insiste na tese de um episódio psiquiátrico motivado por medicamentos, os especialistas consultados indicam que a combinação usada por Bolsonaro não costuma gerar quadros paranoides, e que outras condições clínicas — como alterações metabólicas, infecções ou estresse extremo — seriam explicações mais plausíveis para comportamentos desorganizados. A investigação sobre o dano à tornozeleira e a suposta tentativa de fuga segue sob responsabilidade da Polícia Federal.

 

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