Educação

A luta de quem vive no campo e quer estudar durante a pandemia no DF

Escolas que atendem crianças do meio rural enfrentaram dificuldades durante a crise sanitária. Com a volta ao presencial, o desafio não acabou para os alunos e suas famílias

Ana Luisa Araujo
Arthur de Souza
postado em 14/04/2022 06:00
 (crédito: Fotos: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
(crédito: Fotos: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Alunos de escolas rurais tiveram dificuldades durante a pandemia, mas não somente por falta de acesso à internet ou pela defasagem na aprendizagem. Enquanto muitos pais tinham de conhecer plataformas educacionais, baixar aplicativos e assistir a vídeos, dentro de casa havia preocupações maiores: faltava comida. Boa parte dos 24.458 alunos das 80 escolas de campo do Distrito Federal depende do sistema educacional para se alimentar. Muitos problemas persistem, mesmo após a retomada das aulas presenciais.

Diretor da Escola Classe Bucanhão, de Brazlândia, Ronaldo Bontempo, 41 anos, detalha o impacto causado pela covid-19 no cotidiano dos alunos. "Aqui é uma zona rural, muitas famílias trabalham com a agronomia. Com a pandemia, muitos perderam seus empregos, e alguns tiveram de voltar para os seus estados de origem, fazendo com que alunos saíssem da escola", lamenta Ronaldo.

Além disso, o diretor ressalta que os alunos que permaneceram no DF também deixaram de frequentar a escola na volta do ensino presencial, pois os pais não tinham como mandá-los. "Você acha que um pai ou uma mãe, estando em dificuldade financeira, vai se preocupar com educação? A prioridade é colocar comida na mesa", constata. "Com isso, nosso principal desafio — por ser uma escola do campo e de uma comunidade humilde — foi manter o aluno estudando. Quando ele não tem o que comer e os pais estão desempregados", descreve o diretor.

Vice-diretora da Escola Classe Ipê (Núcleo Bandeirante), Daiane Gonçalves, 39, também destaca os problemas que as famílias dos alunos enfrentaram nos dois últimos anos. "Entramos dentro da casa das crianças. Vimos e sentimos toda a dificuldade que elas viviam, dificuldades básicas. Começamos, então, a pensar por outros vieses", relata.
Foi a partir daí que elas começaram uma campanha de arrecadação de cestas básicas para as famílias. "Estava faltando tudo para elas. Como é que a gente estava exigindo tudo isso: que aprendam a saber baixar um programa?", questiona. Após isso, a coordenadora pedagógica Lucélia Ferreira, 41, disse que a equipe passou a dar palestras para auxiliar os pais. "Os tutoriais chegaram a passar de 100", conta. Entre eles, estavam como baixar um aplicativo, como abrir um PDF e como responder formulário no Google forms.

Depois da pandemia, ao retornar ao presencial, os desafios continuam. Os professores relatam, atualmente, o quanto os alunos estão atrasados, questão que preocupa a todos. Segundo a vice-diretora, um aluno de segundo ano parece que está no primeiro, não só na questão educacional, mas comportamental e disciplinar. "Muitas vezes, a sociedade, as pessoas, os pais, não entendem que a escola não é só notas. Tem muitos pais que chegam aqui perguntando: qual é a nota do meu filho? A educação vai além disso. Essas crianças ficaram atrasadas em outras questões além de ler e escrever. São fatores comportamentais, do convívio humano, que se aprende vindo para a escola, convivendo com os alunos e professores, e enfrentando conflitos cotidianos para o amadurecimento", esclarece a diretora da Escola Classe Ipê, Leisy Lino, 51.

Além de a escola lidar com o ensino fundamental I — crianças do 1º ao 5º ano — a instituição oferece ensino integral de 10 horas, com quatro refeições ao longo do dia. No total, são 11 ônibus que buscam e levam as crianças, e somente um deles não vai por estrada de chão. "Nossa escola é um caso de sucesso? Sim. Mas ainda há muito o que conquistar", aponta a diretora, depois de mostrar biodigestores recém-construídos para tratar o esgoto da escola. Leisy frisa que na região essa questão é muito difícil, por se tratar de uma zona rural. Novas salas de aulas foram construídas. Junto a elas, foram erguidos um novo refeitório com capacidade maior, bem como uma cozinha, uma diretoria e um parquinho.

A aluna do 4º ano na EC dos Ipês Rafaelly Fernandes, 8, conta que sentiu saudades de estudar na escola durante a pandemia. Apesar de a sua mãe criar galinhas, a criança diz que não há galinhada como a que é servida na escola. A estudante até gostou de ficar em casa, mas entendia que isso também a prejudicava. "Quando a gente não veio para a escola, fiquei com saudade de brincar e também queria ver como é que estava a escola", conta.

A mãe de Rafaelly, Sandra Chiarelly, 37 anos, dona de casa, fala sobre as dificuldades enfrentadas no período pandêmico. "Tivemos de nos acostumar com isso tudo. Ela falava o tempo todo que queria voltar para a escola, que estava com saudade da professora e da própria galinhada da escola. O psicológico fica muito afetado em razão do afastamento dos colegas e do convívio. Rafaelly não via a hora de poder ter uma rotina normal novamente", conta.

Mais problemas

Outro desafio enfrentado pelos alunos é em relação ao acesso à escola. Segundo Ronaldo Bontempo, diretor da Escola Classe Bucanhão, dois ônibus atendem os estudantes. Mas a reclamação fica por conta das vias esburacadas e não pavimentadas, que estão apenas em terra batida. "No período de chuva, parte da via que dá acesso a nossa escola se torna uma fusão de lama e buraco. Com isso, os ônibus que nos atendem acabam atolando ou quebrando, e os alunos chegam atrasados ou, às vezes, acabam nem vindo para a escola", reclama.
Cláudia Souza, 43, é produtora e mãe da Emanuely Souza, 10, que estuda na EC Bucanhão.

A mãe conta que é recorrente os atrasos durante o trajeto até a escola. "Outro dia, ficamos no ponto de ônibus, das 11h até as 14h, e ele não passou", afirma Cláudia. O diretor da escola diz que já acionou os órgãos competentes para saber sobre a pavimentação da via. "Tivemos a resposta que existem projetos, porém, nada concreto. Nunca estipularam uma data para que seja feito", comenta.

Situação parecida enfrenta a diretora da Escola Classe Polo Agrícola da Torre, também em Brazlândia. Roberta Fontinele, 41, afirma que quatro ônibus atendem os alunos, e a reclamação também fica por conta da pavimentação. "Quando chove, o problema é a lama; no período de seca, é a poeira, que chega a causar doenças respiratórias, principalmente nas crianças. Certa vez, um ônibus atolou e, quando outro tentou ajudar, também ficou preso", relata a diretora. O Departamento de Estradas de Rodagem do Distrito Federal (DER-DF) afirma que a pavimentação das instituições mencionadas está prevista para este ano e está em fase de projeto.

Questionada, a Secretaria de Educação do Distrito Federal informou que as dificuldades enfrentadas pelas escolas do campo durante a pandemia foram a falta de sinal de internet e estudantes sem aparelhos tecnológicos. A pasta destacou que desenvolveu ações como o programa Escola em Casa DF, que entregou material impresso a estudantes que não tinham acesso à internet. Também foram veiculadas teleaulas na TV Justiça, TV União e TV Gênesis durante três meses, em 2020. Na lista de itens do Cartão Material Escolar, foi incluído o chip de celular, que possibilitou acesso à internet aos alunos da rede pública.

Também durante a crise sanitária, o GDF concedeu o auxílio do Bolsa Alimentação a mais de 82 mil alunos da rede pública. O benefício foi instituído em 2020 pelo governador Ibaneis Rocha para garantir a segurança alimentar e nutricional desses estudantes enquanto durasse a suspensão das aulas por força da pandemia da covid-19.
"Acho que nós temos que ser mais assistidos. Os alunos que frequentam este tipo de instituição têm mais desafios, em todos os setores. Até nós, como escola, temos dificuldade de conseguir pessoal, mesmo um educador social, por conta da distância", comenta a diretora da Escola Classe Polo Agrícola da Torre.

 

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  • Em 2020 e 2021, a Escola Classe Ipê passou por reformas
    Em 2020 e 2021, a Escola Classe Ipê passou por reformas Foto: Material cedido ao Correio
  • Rafaelly Fernandes, 8 anos, é estudante do 4º ano da EC dos Ipês
    Rafaelly Fernandes, 8 anos, é estudante do 4º ano da EC dos Ipês Foto: Material cedido ao correio
  • Alunos da Escola Classe Bucanhão voltaram às aulas, mas ainda enfrentam dificuldades
    Alunos da Escola Classe Bucanhão voltaram às aulas, mas ainda enfrentam dificuldades Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press

Formação

Luis Antônio Pasquetti é professor da graduação de educação no campo na Universidade de Brasília (UnB) há 15 anos. O câmpus de Planaltina é o único que disponibiliza o curso atualmente. Quilombolas e kalungas são os principais estudantes da graduação, que funciona de forma alternada, dois meses nas comunidades e dois meses na universidade. O curso atende moradores das cidades goianas de Cavalcante, Teresina de Goiás, Nova Roma e Monte Alegre. Luis conta que, entre as dificuldades enfrentadas pelas escolas rurais, está a falta de professor. Algumas instituições fazem turmas multisseriadas porque não há educador suficiente para atender toda a demanda. “Nós os habilitamos em ciências da natureza, linguagens e matemática. Em geral, os professores não estão preparados para lidar com uma realidade tão diferente. Isso (a graduação) tem proporcionado uma melhora significativa nessas escolas”, esclarece.


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