Série

Violência contra o idoso, uma triste rotina para centenas de brasilienses

Com a pandemia, o número de agressões a pessoas com mais de 60 anos disparou, segundo especialistas. Para piorar, os ataques, na maioria das vezes, partem de parentes de dentro da própria casa. Mas há também vítimas de golpes

Nos espaços públicos, as dificuldades para os idosos são majoritariamente físicas e visíveis. Entretanto, outros desafios pesam contra o bem-estar dessa parcela da população com mais de 60 anos, que chega a 400 mil pessoas no Distrito Federal. A violência contra os mais velhos, em dimensões físicas e emocionais, se apresenta como um obstáculo coletivo para a capital federal. Na terceira reportagem da série Envelhecer no DF, as estatísticas de agressões e os impactos na terceira idade assustam. A obsolescência humana, que inferioriza e exclui idosos, é questionada como mentalidade dominante e expõe a urgência do debate da inclusão rumo à civilidade.

Em 2021, diferentes órgãos de proteção e vigilância dos direitos da pessoa idosa registraram uma explosão no número de denúncias. A ouvidoria do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) registrou 7.106 violações na capital federal. Os atentados compõem o universo de 1.718 denúncias captadas pelo disque 100 — linha telefônica para assistência aos mais vulneráveis. Dependendo da natureza da ocorrência, em apenas uma denúncia estão tipificados diferentes níveis de crimes e agressões contra os maiores de 60 anos.

A diretora de programas de integração social da Secretaria de Justiça do DF (Sejus), Jamille Passarela, confirma o crescimento. "Com a pandemia, as famílias ficaram mais próximas. Os filhos começaram a trabalhar em casa e, infelizmente, o número de denúncias aumentou", lamenta. A gestora explica que, como as denúncias são anônimas, as delegacias especializadas são rapidamente acionadas e, logo que a vítima é identificada, são oferecidos serviços e políticas públicas para auxiliar no momento de vulnerabilidade. "Se o idoso está abandonado, ele é encaminhado para um espaço de acolhimento temporário. Se ele tem família, o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) passa a fazer o assessoramento familiar", detalha, reconhecendo que a maioria dos casos parte de familiares da vítima.

Por trás das estatísticas, há um perfil predominante: mulheres, entre 65 e 69 anos, brancas e pardas, com instrução entre o ensino fundamental incompleto e médio, que recebem até três salários mínimos. De acordo com Jamille, há uma feminização da violência nesse recorte etário, já que as mulheres vivem, em média, sete anos a mais que os homens. E se engana quem pensa que a principal agressão é a física. Atentados contra integridade psíquica são a maioria (veja o quadro).

Para a promotora de Justiça Maércia Mello, há um conjunto de fatores que podem ser apontados como responsáveis por esse crescimento. "No contexto de crise, muitas famílias começaram a depender do idoso, até mesmo famílias mais ricas, em que ele tinha um maior poder aquisitivo, seja por manter um negócio ou receber algum tipo de aposentadoria ou benefício. Tensões e casos de exploração econômica surgem quando a família se vê totalmente dependente daquela renda", comenta Maércia, que também acompanhou o crescimento de casos no Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT).

Saiba Mais

O Mapa da violência contra a pessoa idosa do MPDFT contabiliza 563 processos em andamento. A maioria é de ações penais, 217, e em diferentes recortes sociais. O maior número de queixas dos idosos vem de Brasília, Ceilândia, Taguatinga e Sobradinho. Os crimes mais recorrentes são estelionato, maus tratos, violência doméstica e injúria.

Estigmatização 

A fragilidade costuma ser um atrativo para estelionatários que veem em idosos desacompanhados a oportunidade ideal para golpes. A aposentada Dulce Maria, 68 anos, foi vítima de um criminoso. Moradora de Ceilândia, ela recebeu uma ligação identificada como da operadora de cartão de crédito. "A atendente começou falando que tinham feito compras no meu cartão, e se eu gostaria de saber quem foi, já que tinha sido um alto valor", conta.

Ao afirmar que queria mais detalhes, Dulce ouviu que precisaria entregar o cartão para os procedimentos necessários. "Em menos de duas horas, chegou um homem todo bonitão e arrumadinho aqui em casa, com crachá do banco e tudo. Dei o cartão, e só depois vi que era golpe, porque pessoas me disseram que isso não existe", lembra. Após perceber o engano, ela foi à delegacia fazer a ocorrência, mas o estrago estava feito. "Liguei para o banco e disseram que fizeram empréstimos de R$ 5 mil na minha conta. Foram dias sem conseguir dormir, com uma sensação de impotência, mas consegui recuperar a minha alegria", complementa.

O Estatuto do Idoso, que regula e assegura os direitos das pessoas com mais de 60 anos, qualifica como violência "qualquer ação ou omissão praticada em local público ou privado" que cause danos físicos ou psicológicos à população mais velha. A sensação de fragilidade experimentada por Dulce é compartilhada por milhares de brasilienses em situações cotidianas que não necessariamente configuram crime. Desrespeito, impaciência e silenciamentos acarretam danos profundos aos idosos. Como explica a psicóloga Maria Cristina Corrêa Lopes Hoffmann, que já foi membro do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso, entre 2012 e 2016.

"A violência contra os idoso se compara, em certa medida, com a que acontece com crianças, porque é dentro das famílias, ou com pessoas que deveriam cuidar delas", salienta. Para a profissional, não é fácil analisar o contexto, que perpassa por fatores econômicos, pela sobrecarga dos cuidadores dos idosos que estão desassistidos e até mesmo pelo idadismo, ou etarismo, que é a discriminação por faixa etária.

Ela afirma que o enfrentamento da violência depende da mudança de paradigmas culturais. Um deles é a associação de valor do cidadão à produção e trabalho. "Temos a ideia de que só quem produz economicamente e é capaz de ter filhos, ou seja, gerar mais força de trabalho, tem valor. Então, cultuamos a manutenção da juventude, uma busca eterna e isso se desdobra no preconceito, no estigma às pessoas mais velhas", constata.

Como todos os países estão envelhecendo de forma bastante acelerada, ela defende que o Brasil invista em políticas públicas e informações massivas como forma de sensibilizar a sociedade sobre um cenário que é real e iminente. "A velhice é uma etapa da vida e precisa ser vista dessa maneira. Muito do tabu envolto está relacionado a nossa dificuldade de encarar a finitude da vida, mas a morte faz parte da vida. E precisamos de uma sociedade mais acolhedora, que tenha amorosidade com os seus", salienta.

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

 

Três perguntas para

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) atua para o enfrentamento à violência por razão de idade com o trabalho da Central Judicial do Idoso (CJI), que divulga informações sobre os direitos desse segmento populacional. Ontem, no Dia Mundial de combate à violência contra a pessoa idosa, a juíza Monize Marques, coordenadora da central, apresentou um levantamento de ocorrências no DF. De 2019 para 2020 houve um acréscimo de mais 200% de denúncias. Foram 2.025 registros no primeiro ano da pandemia. Ela respondeu a alguns questionamentos do Correio sobre as estratégias para reverter esse quadro

1- Quais as principais dificuldades no enfrentamento à violência contra o idoso?
Estão relacionadas à ausência de informação. É necessário esclarecer que algumas condutas agressivas em relação ao envelhecimento são configuradas como crime e que a pessoa idosa é sujeita de direitos e não mero objeto de proteção da lei. Assim, deve exercer o protagonismo no gerenciamento das suas decisões.

2- Quais as principais ocorrências atendidas pela central e os encaminhamentos?
Normalmente as que envolvem violência psicológica, negligência e abuso financeiro no contexto familiar. Os encaminhamentos são decididos a partir de uma análise da lide sociológica e, por isso, não há um protocolo fechado para cada tipo de ocorrência.

3- O que está por trás desses casos de violência e quais os caminhos possíveis para uma cultura de inclusão?
Uma visão equivocada da longevidade, que ainda associa à velhice sentimentos negativos de incapacidade, improdutividade e doenças. O primeiro passo para a mudança, e mais importante, é ressignificar o envelhecimento, reconhecendo a longevidade como uma grande conquista da humanidade. Além disso, é importante acolher todo tipo de velhice e suas complexidades, refutando a ideia de uma velhice padrão.