MOBILIDADE URBANA

Trânsito caótico, passageiro adoecido; veja o drama de quem usa ônibus

Brasilienses que demoram, em média, duas horas por dia no transporte público perdem três semanas por ano dentro do ônibus. Eles estão sujeitos ao adoecimento físico e mental provocados pela exaustão e pela ansiedade

 Usuários reclamam de que passam a viagem inteira espremidos e em pé. Mesmo quem vai sentado sofre os incômodos da superlotação  -  (crédito: Fotos: Ed Alves/CB/DA.Press)
Usuários reclamam de que passam a viagem inteira espremidos e em pé. Mesmo quem vai sentado sofre os incômodos da superlotação - (crédito: Fotos: Ed Alves/CB/DA.Press)
Mila Ferreira
postado em 10/09/2023 06:00 / atualizado em 10/09/2023 06:00

Depender de transporte público para se deslocar no Distrito Federal é enfrentar, diariamente, os desafios de uma cidade que não tem mobilidade amigável aos usuários que precisam do transporte público. De acordo com o último relatório global produzido pelo aplicativo Moovit em 2022, de ônibus ou de metrô, enfrentando a defasagem e a superlotação, o morador do DF passou, em média, duas horas por dia no transporte público.

Na segunda reportagem da série Brasília em Movimento, o Correio detalha a rotina de usuários dos coletivos. A jornada começou quando a reportagem embarcou na Linha 180.1, de São Sebastião à Rodoviária do Plano Piloto. O ônibus estava lotado, até nos degraus das escadas de entrada e de saída do veículo, comprometendo a segurança. Mesmo com as janelas abertas, a grande quantidade de pessoas amontoadas e a pouca ventilação tornavam a respiração difícil. Se engana quem pensa que os passageiros sentados fizeram uma viagem confortável. O excesso de pessoas fazia com que, quem estava de pé, se curvasse por cima de quem estava nas cadeiras. O veículo, com capacidade para 40 pessoas, tinha, no mínimo, o dobro.

Benedita dos Santos, 45 anos, mora na Cidade Ocidental (GO) e trabalha como atendente em um restaurante na Asa Sul. Ela passa, no mínimo, três horas por dia dentro do ônibus, considerando o tempo gasto para ir ao trabalho e para retornar para casa. Para chegar ao restaurante às 9h, Benedita é forçada a começar a rotina às 5h, quando ela desperta e acorda as duas filhas, de seis e 15 anos. Entre banho, café da manhã, colocar as filhas no transporte escolar e chegar à parada de ônibus, mais duas horas se passaram. O tempo médio de espera até o ônibus que a leva até o final da Asa Sul é de meia hora.

"Vou sempre em pé no ônibus, nunca sentada. Já chego ao trabalho cansada e ainda preciso trabalhar por oito horas. Se colocassem mais ônibus para circular ajudaria muito. Aqui na Cidade Ocidental só tem uma empresa de ônibus circulando", reclamou. "No fim do dia, saio do trabalho às 18h, mas nunca chego em casa antes das 21h. Ainda vou ajudar minhas filhas com o dever de casa e fazer o jantar. Meu cotidiano é bem cansativo", concluiu.

O que Benedita vive diariamente, Zuleide Feitosa, doutora em transportes e pós-doutora em políticas públicas de transporte, comprova com pesquisas. "É aceitável cerca de 10 minutos a 20 minutos para a pessoa sair de casa e chegar ao destino. Neste tempo, ela está apta física e psicologicamente. Mais que isso entra em sofrimento mental e estresse. A realidade no DF é uma espera pelo transporte de mais de 30 minutos. Isso quando o ônibus não está superlotado e nem pára, obrigando o usuário a esperar pelo próximo coletivo", pontuou.

Tempo perdido

A pedido do Correio, o economista Newton Marques calculou o tempo perdido dentro de um transporte público na vida de um cidadão que trabalha de segunda a sexta-feira (veja quadro) ao longo da vida. Uma pessoa que gasta, em média, duas horas por dia para se locomover, perde 21 dias inteiros por ano dentro de um ônibus. "A partir do momento em que o trabalhador despende muitas horas para se deslocar, menos ele dá atenção à família, menos ele tem tempo para se capacitar e tende a ter uma qualidade de vida abaixo da razoável, pois acaba ficando extenuado, sem lazer e vai trabalhar cada vez mais nervoso, cansado, podendo contrair doenças como depressão", ressaltou. "O bom funcionamento do transporte público é importante, pois reflete na qualidade de vida e, consequentemente, na produtividade no trabalho", completou.

O técnico em refrigeração Junior Neves, 30, mora em São Sebastião e trabalha no Plano Piloto. O profissional conta que, para sair de casa, chegar em todos os locais necessários para realizar os consertos e retornar para casa, passa um total de mais de quatro horas diárias dentro de um transporte público. "Sempre pego o ônibus extremamente lotado. Nunca vou sentado. Eu acredito que a expansão da linha do metrô e o aumento da frota de ônibus facilitariam o dia a dia de muita gente", opinou.

Mesmo para quem consegue fazer pelo menos uma parte do trajeto diário de metrô, a rotina é desafiadora. Edna Rodrigues, 54, é promotora de vendas e trabalha em um supermercado na Asa Sul. Moradora do Sol Nascente, em Ceilândia, ela precisa acordar às 5h para chegar ao trabalho pontualmente às 8h40. O deslocamento começa quando Edna pega um ônibus perto de casa até a estação de metrô, em Ceilândia. Por volta de 6h30, ela embarca no metrô até a estação da Rodoviária do Plano Piloto. "O estresse começa cedo, porque dificilmente consigo pegar o primeiro trem que passa. Neste horário estão todos muito lotados. Na maioria das vezes, preciso esperar passar dois ou três para aparecer um com espaço para alguém entrar. Ir sentada, então, é fora de cogitação", relatou. "Saio do trabalho por volta de 18h e passo pelo mesmo trajeto na volta, porém, raramente chego em casa antes de 21h", concluiu.

Saúde

A diarista Maria de Lourdes, 53 anos, tem um cotidiano estressante, agravado significativamente pelo tempo gasto diariamente dentro do transporte público. Morando em Sobradinho e trabalhando no Guará, a diarista precisa acordar às 6h para pegar dois ônibus e chegar ao trabalho às 9h30. O primeiro coletivo sai de Sobradinho II e vai até a rodoviária do Plano Piloto. De lá, Maria de Lourdes precisa pegar outro ônibus até o Guará, onde trabalha. Na volta, ela sai do local de trabalho às 17h30 e, por conta do tempo que gasta aguardando a condução, tem dia que só consegue chegar em casa por volta de 21h. "Trabalho como diarista, já passo o dia trabalhando em pé, venho no ônibus em pé, volto em pé. Tem dia que chego e não tenho mais energia, não consigo nem raciocinar, jogo a bolsa no sofá e apago na cama, sem comer mesmo", compartilhou.

O médico do trabalho Antonio Luiz Cardoso Rosa explicou que, de fato, o tempo gasto pelas pessoas dentro do transporte público pode gerar ansiedade e depressão, interferindo na produtividade. "O trabalhador já tem um dia desgastante e pesado, agravado pelo estresse dentro do ônibus. Os problemas de saúde causados pelo tempo gasto dentro do transporte público trazem para nós, médicos do trabalho, um grande desafio. Muitas vezes, o próprio trabalhador não sabe a raiz do problema que o afeta na esfera psíquica e, muitas vezes, física. Às vezes, ele está estressado e não sabe o motivo. É preciso uma sensibilidade por parte da empresa e do governo", esclareceu o médico. "O trabalhador que pega transporte público diariamente é um herói, pois é grande a quantidade de problemas a se enfrentar e, ao mesmo tempo, ainda precisa entregar uma boa qualidade de trabalho", afirmou.

Caminhabilidade

A diretora presidente do Instituto Caminhabilidade e mestra em Planejamento de Cidades e Design Urbano, Letícia Sabino, avalia que a dificuldade de se caminhar na capital do país também atrapalha o trajeto por ônibus. "Todo deslocamento por transporte público começa e termina a pé, então não ter cidades 'caminháveis' é pior para quem depende de ônibus ou metrô. A situação é pior ainda para mulheres, crianças ou idosos", lembrou. "O desenvolvimento urbanístico de Brasília torna a cidade bastante excludente. É preciso repensar a mobilidade urbana, com foco em mobilidade ativa. Brasília tem um potencial enorme para ser a cidade mais ciclável do Brasil. Mas, para isso, seriam necessárias melhores estruturas cicloviáveis, mais sinalização, diminuição de velocidades. E, aí sim, creio que essa seria uma boa solução de mobilidade para uma Brasília do futuro", disse Letícia.

Audiência pública

A mobilidade ativa, que consiste na locomoção não motorizada, será tema de uma audiência pública na próxima terça-feira no plenário da Câmara Legislativa (CLDF). A audiência terá a temática "Mobilidade ativa como forma de melhorar a mobilidade urbana" e foi sugerida pelo deputado distrital Max Maciel (PSol).

Adriana Bernardes, Isac Mascarenhas* estagiário sob a supervisão de Ana Maria Campos 

  •  Para especialistas, até 20 minutos é aceitável no trajeto diário
    Para especialistas, até 20 minutos é aceitável no trajeto diário Foto: Ed Alves/CB/DA.Press
  •  Usuários reclamam de que passam a viagem inteira espremidos e em pé. Mesmo quem vai sentado sofre os incômodos da superlotação
    Usuários reclamam de que passam a viagem inteira espremidos e em pé. Mesmo quem vai sentado sofre os incômodos da superlotação Foto: Fotos: Ed Alves/CB/DA.Press
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação