ENTREVISTA

Mulheres magistradas são minoria no Judiciário do DF

Ao CB.Poder, a juíza Gabriela Jardon, titular da 6ª Vara Cível do TJDFT, comentou sobre a desigualdade de gênero que persiste na Corte. A presença feminina é de 37% entre os desembargadores e de 24% na segunda instância

 09/10/2023 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - CB.Poder entrevista a Juiza Gabriela Jardon. -  (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
09/10/2023 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - CB.Poder entrevista a Juiza Gabriela Jardon. - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
postado em 10/10/2023 00:00

A desigualdade de gênero no Judiciário foi tema do CB.Poder — parceria entre Correio e TV Brasília — desta segunda-feira (9/10). Aos jornalistas Carlos Alexandre de Souza e Thays Martins, a juíza Gabriela Jardon, titular da 6ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), falou sobre o cenário na Corte e a respeito da disparidade entre o número de mulheres que cursam direito e a presença feminina na magistratura, que é bem menor.

A senhora tem um vasto estudo a respeito da igualdade de gênero no Judiciário. Pode descrever essa situação do TJDFT em relação a essa questão?

Aqui no TJDF a gente acaba sendo retrato dos demais tribunais estaduais, apesar de termos uma natureza híbrida, um tribunal estadual e distrital. Mas, dentre, os tribunais do mesmo porte e que têm essa competência estadual, o TJDF acaba reproduzindo as estatísticas conhecidas. Hoje, temos na primeira instância por volta de 37% de mulheres desembargadoras e, na segunda instância, 24%. São dados de 2022, que foram colhidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Esse é o nosso retrato. Existe no TJDF, como no país inteiro, em todas as instâncias, em todos os tribunais, de todas as competências — com exceção da Justiça do Trabalho, que tem uma situação particular e na segunda instância eles já igualaram, têm 50% de participação feminina. Existe essa desigualdade, que agora está em cheque.

As mulheres são maioria na população, nos cursos de direito e também na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Por que essa disparidade?

É uma estrutura super complexa, patriarcal, de onde não infrequentemente deriva uma estrutura misógina. São várias as barreiras. O que sabemos, por construção das ciências sociais e por pesquisas como essas todas do CNJ, que estão baseando toda essa discussão, é que as mulheres se perdem no encaminhamento para essas carreiras, muito devido ao que chamaremos na academia de divisão sexual do trabalho doméstico. Seriam os afazeres. O cuidado da vida humana ainda é super feminino. Estatisticamente, é calculado que 98% do trabalho doméstico, hoje, no Brasil, seja feito por mulheres, contratadas ou não. É muito alto. O trabalho com essa administração da vida, dos filhos, dos idosos, das pessoas com deficiência, de todo mundo ainda é majoritariamente entregue às mulheres. Como explicamos que nos cursos de direito somos maioria (54%), mas o ingresso na magistratura cai para 37%? Esses 17% onde estão? Alguns podem pensar que essa diferença é pouca. Não é pouco, porque, se não há algo externo que está interferindo, a tendência é que se reproduzam os mesmos percentuais, mas eles caem significativamente.

No início da carreira é comum os juízes recém-nomeados trabalharem em locais mais distantes. Aí, entram questões que não dizem respeito apenas à mulher, mas à família. Como isso impacta?

No Distrito Federal, não temos nada muito longe, por causa das nossas dimensões, então, não nos mudamos. Normalmente, a pessoa fica onde já é seu domicílio, mas as outras colegas, dos outros 26 estados da federação, têm que se mudar. Lembro de conhecer colegas que ficavam a dez horas da capital do Mato Grosso, Cuiabá. Às vezes, local em que não se chega nem com avião. A profissão é muito capilarizada, o que é uma coisa linda, primeiro necessária e, depois, para quem gosta, é bonito ver a Justiça chegar tão longe, em lugares tão pequenos. Qual é a mulher que dos 25 aos 35 — que é a faixa etária em que a gente normalmente ingressa na carreira — vai ter esse suporte para poder não estar cuidando da sua família?

O início da carreira é um momento muito delicado — em geral, quando a juíza está entre 25 e 35 anos — e numa fase, muitas vezes, de consolidação da maternidade, do casamento. E ainda tem responsabilidades em relação aos pais. Isso é levado em conta quando se discute a realidade da mulher no Judiciário?

Indiretamente, sim. Em todas as instâncias isso foi discutido e acho que uma das primeiras coisas a serem faladas quando começamos a tentar entender esse fenômeno é: por que as mulheres estão em menor número? Essa particularidade da carreira certamente afasta as mulheres. Aí, você pensa: "mas as mulheres estarem tão encarregadas dos cuidados é um dado natural?". Não, é um dado social, é uma construção social. Implementar a paridade no Judiciário vai fazer alguma coisa com isso que é tão maior que o Judiciário? Não diretamente, mas, com certeza, vai minando as bases de algo muito maior e que só é transformável com essas iniciativas à mão. Não tem como decretar que, a partir de agora, as famílias se dividam melhor. Não é assim que a coisa funciona.

O CNJ, na Resolução Nº 106 de 6 de abril de 2010, decidiu que haveria duas listas, uma relativa à antiguidade e outra em relação a merecimento, para a promoção de magistrados a segunda instância. O que exatamente chama atenção nessa decisão?
No critério do merecimento — para a maior parte das pessoas ou, pelo menos, para uma parte considerável — é bastante visível a possibilidade de incidência de machismo. Então, no merecimento você faz a lista e aquela colega, por esses pensamentos subterrâneos coletivos, acaba nunca figurando na lista para ser escolhida. São critérios subjetivos. Tentamos, como uma república que somos, que os critérios sejam os mais objetivos possíveis. Há vários tribunais em que isso é tentado de uma forma mais objetiva, mas sabemos que tem uma grande área subjetiva. Para merecimento realmente (precisamos) de uma ação afirmativa que, já que não é muito espontâneo, coloque a força mais mulheres participando dessas listas. Isso é bem-vindo. Agora, a antiguidade ainda é vista como um critério objetivo, pela grande maioria dos colegas e da sociedade, porque a pessoa passou no concurso, ela ganha ali um número e fica na fila esperando sua vez. Mas, se formos para uma análise mais sofisticada, sabemos que, para a mulher ser antiga custa mais. Peguei um relatório do CNJ — esse que foi a base de toda essa votação que acabou de acontecer — e tem um gráfico muito interessante, que é dos inscritos no concurso e dos que passam. Para homens e mulheres é o mesmo percentual dos inscritos e dos que passam, o que demonstra o óbvio, que não existe diferença de capacidade intelectual nem de aprendizagem nem de rendimento entre homens e mulheres. Só que as mulheres passam menos, porque se inscrevem menos. Tenho falado com colegas — numa posição muito pessoal minha, que não representa de forma nenhuma o tribunal, nem a maioria dos meus colegas — que, ao meu ver, a antiguidade da mulher é mais antiga do que simplesmente uma ordem numérica numa lista de antiguidade. O mais importante, e que eu endosso com veemência, é que se quisermos simplificar a discussão, ela simplifica sem perder em qualidade. Vamos olhar os dados. A população é de 51% mulheres. Por que num tribunal de segunda instância temos 24%, como aqui no TJDFT? E se tem, vamos igualar. Porque quanto mais conseguirmos que homens e mulheres estejam representados nos tribunais, vamos ter um poder Judiciário mais legítimo. Isso é legitimidade. Estamos aqui no recorte de gênero. Na verdade, também precisamos fazer vários outros recortes para que a sociedade esteja representada.

A senhora tem um caminho acadêmico, com dois mestrados e está se encaminhando para um doutorado. O primeiro mestrado foi sobre direitos humanos em relações internacionais, mas o segundo chama atenção, por tratar da escuta no Judiciário. O que é isso?
Isso aí é o exercício acadêmico. Foi mestrado em direitos humanos e cidadania. Um programa multidisciplinar na Universidade de Brasília (UnB), mas em que a sociologia jurídica comparece bastante. Então, dentro do campo da sociologia jurídica, tentei estudar o comportamento dos juízes e das juízas em audiência, e tentei propor um direito das partes processuais falarem diretamente com os juízes encarregados dos seus casos e falarem em audiência. Mas eles não falam? Falam, a depender da sensibilidade do julgador e a depender do pedido de prova. Você só vai escutar um réu, se houver pedido da parte contrária de depoimento pessoal. Então, se eu for seguir o código rigorosamente, só vou escutar aquelas pessoas se elas forem vantajosas do ponto de vista da prova pessoal. Não vou escutar, porque elas são as protagonistas do conflito. Não existe essa preocupação, o código não foi feito pensando nisso — na minha prática, já são 18 anos em sala de audiência, o que eu reparei muito cedo e só ficou confirmando esses anos todos. É arriscado dizer isso, mas eu ouso dizer que mais importante do que a decisão que vou tomar no final do processo, muitas vezes, é como essas pessoas vão ser tratadas e, muito especificamente do ponto de vista da escuta, se comparecerem ao Judiciário. Quando você escuta, dá atenção para aquela pessoa, deixa ela contar com as palavras dela, sem intermediação de advogado ali naquele momento. Mas que ela possa falar. Estou falando desse aspecto humano da narrativa sobre o que você está passando.

Veja a entrevista

*Estagiário sob a supervisão de Malcia Afonso

 

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