Em uma rua de aproximadamente 100 metros, um grupo criminoso montou uma estrutura destinada ao tráfico de drogas. Aliados à segunda maior facção do Rio de Janeiro, o Terceiro Comando Puro (TCP), traficantes criaram um organograma, com direito a líderes, fornecedores, soldados e fogueteiros. Tudo isso na Rua da Glória, na Vila Cauhy, situada no Núcleo Bandeirante e a sete minutos de distância do Aeroporto Internacional de Brasília. O Correio obteve acesso com exclusividade a documentos que ligam os criminosos do DF aos faccionados cariocas. Todo o contato era mantido pela internet, e os envolvidos chegavam a transmitir lives ao vivo pelo Instagram. No final do ano passado, a 11ª Delegacia de Polícia (Núcleo Bandeirante) desencadeou a megaoperação Último Comando e desmantelou parte da cúpula com a prisão de 32 pessoas.
O Núcleo Bandeirante é uma das regiões mais seguras do DF, segundo a avaliação dos próprios moradores. Em um ano, de janeiro de 2023 a janeiro de 2024, a cidade registrou 300 ocorrências por crimes contra o patrimônio (roubos e furtos), estupro, tentativas de homicídio e furtos a transeuntes. No mesmo período, não ocorreu nenhum crime violento letal intencional (homicídios, latrocínios e lesão corporal seguido de morte) e o total de produtividade policial — o que inclui prisão de traficantes, apreensão de drogas, armas ou localização de veículos roubados — foi de 89 casos, de acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF). Mas as ações repressivas das polícias Civil e Militar não impediram a ação de criminosos em traçar estratégias para driblar os agentes de segurança e criar um sistema articulado voltado ao tráfico de drogas.
A Rua da Glória, apesar de situada em área de invasão, simples e com poucos comércios, teve os muros das casas e becos tomados por pichações em apologia ao TCP, o que despertou a atenção da polícia. Os símbolos, até então nunca vistos na capital, fazem menção a uma das facções mais perigosas do Rio de Jeneiro. O Terceiro Comando Puro surgiu em 2002, a partir do rompimento com o Comando Vermelho (CV) e parte das lideranças da organização criminosa fundou o chamado Complexo de Israel, um conjunto de favelas formado por cinco comunidades do Rio. Para demonstrar o poderio, os faccionados erguem bandeiras de Israel e estampam um dos principais símbolos do judaísmo nos muros, a estrela de Davi.
O vínculo entre traficantes do DF e do Rio ficou comprovado após uma investigação minuciosa da 11ª DP por mais de um ano. O documento da Polícia Civil, ao qual o Correio teve acesso, traz detalhes sobre a aliança entre os dois grupos, inclusive os responsáveis por comandar a célula em Brasília. Os criminosos do DF (presos na operação da polícia) e do Rio usavam as redes sociais para conversar e promoviam transmissões ao vivo pelo Instagram sempre em posse de armas. Uma das lives ocorre entre o brasiliense Luis Gustavo Cardia Vieira (preso), apontado como um dos líderes do tráfico de drogas na Vila Cauhy, dois comparsas e um faccionado do Rio. Por diversas vezes, eles fazem o gesto com a mão para indicar "3C", em menção à organização criminosa, enquanto, ao vivo, o morador do Rio ostenta um fuzil AK 47.
Luis Cardia ostenta uma vasta ficha criminal por tráfico de drogas, roubos, ameaça, injúria, desobediência, adulteração de sinal identificador de veículo, lesão corporal, receptação, corrupção de menores e tentativa de homicídio. Ele foi um dos alvos da operação da 11ª DP no ano passado, mas já estava detido no Complexo Penitenciário da Papuda por tentar matar um rapaz a tiros. O crime ocorreu em 26 de junho de 2023, na Vila Cauhy, em razão de uma discussão banal entre o autor e a vítima. Antes disso, Luis estava na mira da polícia ao ser flagrado distribuindo drogas para serem vendidas por integrantes do segundo escalão.
Organograma
Na função de líder, Luis não tinha receio em usar as redes sociais para postar fotos com armas, dinheiro, drogas e com símbolos referentes ao TCP, conforme mostram as fotos, a qual o Correio teve acesso. Junto a Luis, os investigadores identificaram outros dois jovens responsáveis por chefiar o tráfico na região: Kauã Martins Pinheiro (foragido) e Davi Valentim Nogueira, atualmente preso.
Kauã e Davi também acumulam passagens pela polícia por furto, receptação, roubo de veículo, desobediência, corrupção de menores, desacato, ameaça, resistência e tráfico de drogas. Assim como Luis, Kauã e Davi publicavam fotos em apologia ao crime, em posse de armamentos pesados e, inclusive, com rádios comunicadores e coletes balísticos. A presença de equipamentos como esses expõe o nível de organização da célula criminosa.
Ao longo das apurações, os policiais identificaram a divisão de tarefas entre o grupo, a forma como eles monitoravam a presença da polícia e a venda de drogas. A rua funcionava como uma verdadeira feira de entorpecentes, e os traficantes faziam uma espécie de "escala" de horários para comercializar as drogas. A negociação costumava ocorrer no beco da rua, justamente por ser uma área estreita e com dois pontos de saída.
Abaixo dos líderes, o grupo intitulava os chamados "soldados", encarregados por fazer a segurança do ponto de tráfico, vender ou guardar drogas e armas; e os fornecedores. Além dos três líderes, mais de 30 pessoas estavam ligadas à organização criminosa na Rua da Glória, revelou a polícia. Os traficantes com maior poderio aliciavam, inclusive, moradores de rua do Núcleo Bandeirante para a função de "fogueteiros". Em troca de drogas, principalmente crack, as pessoas em situação de rua exerciam o papel de alertar os criminosos para uma possível presença policial. Para isso, eles gritavam, soltavam foguetes ou acenavam.
Na comunidade, por ser pequena, os traficantes conheciam qualquer carro que não fosse de propriedade de algum morador da rua. A presença de veículos "estranhos" era o suficiente para os fogueteiros entrarem em ação e os traficantes correrem e dispensarem as drogas. A via estreita e com espaço praticamente para apenas um automóvel acabava sendo um ponto favorável para a fuga.
Intimidação
Não bastasse o tráfico, várias pichações na região sugerem ameaças aos moradores. Além das citações em menção ao Terceiro Comando Puro, os traficantes escreveram mensagens indiretas aos residentes: "Informante safado/x9 vai morrer!", "Segura a língua, morador", "Aqui, o coro come". O objetivo, segundo a polícia, era impedir denúncias e reprimir qualquer ação de segurança.
No entanto, mesmo diante do cenário de medo e ameaça, a PCDF e a PMDF receberam inúmeras denúncias anônimas sobre a traficância no local. O Correio esteve no local dois meses após a operação e tentou conversar com moradores. Com receio, eles preferiram não se manifestar, mas afirmaram brevemente que a comunidade estava "mais tranquila".
A operação Último Comando, do final do ano passado, deixa o recado de que a polícia está atenta a qualquer tentativa de instalação do crime organizado ou poder paralelo no DF. Agora, os investigadores trabalham para identificar outros possíveis integrantes e colaboradores do grupo, que atuam no tráfico de drogas e na lavagem de dinheiro em toda a capital.
A PMDF, por meio do 25º BPM, responsável pelo policiamento do Núcleo Bandeirante, realiza constantemente operações específicas na área e que diariamente equipes vão ao local intensificando o policiamento. Entretanto, as equipes já realizaram diversas prisões por porte e uso de drogas, tráfico, e, recuperou carros roubados próximo do local, e na maioria das vezes são autores contumaz, com larga ficha criminal. A PMDF reforça que a denúncia anônima dos vizinhos é muito importante e a sua cooperação nesses momentos, auxilia bastante o trabalho da polícia.
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