Bichos do Zoo

Animais resgatados de circo há 17 anos são xodó no Zoo de Brasília

O elefante Chocolate, a hipopótamo fêmea Iuly e o rinoceronte Thor recebem cuidados, atenção e carinho no Zoológico de Brasília. Veja a segunda reportagem da série do Correio sobre os animais mais famosos do Zoológico de Brasília

Chocolate ganhou esse nome porque nasceu um dia antes da Páscoa em 1992 -  (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Chocolate ganhou esse nome porque nasceu um dia antes da Páscoa em 1992 - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Elefante, hipopótamo e rinoceronte, integrantes da megafauna — termo que designa aves e mamíferos com mais de 50 kg — são campeões em roubar a atenção dos visitantes do Jardim Zoológico de Brasília. Contudo, quem os vê grandes e alimentados, soltos em um recinto de tamanho ideal às espécies com grandes proporções, jamais imagina que esses bichos carregam lembranças de um passado, em cima de um picadeiro, marcado pela crueldade.

Em 2008, o Distrito Federal viveu o caso do Circo Le Cirque, denunciado pela ONG ProAnima (Associação Protetora dos Animais). Após uma operação de fiscalização ambiental, foram apreendidos pelo Ibama, que constatou indícios de maus-tratos, 10 pôneis, quatro elefantes, duas girafas, dois camelos, duas lhamas, um hipopótamo, um rinoceronte e uma zebra.

 15/01/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - Zoológico de Brasília. Histórias dos bichos mais queridinhos do Zoo. Hellen Cristina de Sousa (médica veterinária e chefe do núcleo de mamíferos) com Rapahel Braz Camargo, biólogo e supervisor do setor de mamíferos.
A elefanta Belinha veio da África do Sul e não é um caso de resgate, mas fez questão de posar ao lado da veterinária Hellen Cristina e do biólogo Rapahel Camargo (foto: Fotos: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Alguns dos resgatados foram encaminhados para o Zoo da capital federal e, mais tarde, viraram o xodó do público, que se comoveu com suas histórias — é o caso do elefante Chocolate, da hipopótamo fêmea Iuly e do rinoceronte Thor. O Correio os visitou e conferiu de perto como eles estão passados quase 17 anos do resgate.

Memória indelével

Os abcessos que costumam aparecer na pele de Chocolate são sequelas de perversidades a que foi continuamente submetido, quando vivia no circo. Ainda que sua espécie seja considerada a maior entre os quadrúpedes não extintos, o gigante não teve forças suficientes para se defender da maldade de alguns humanos. Mesmo livre das torturas por quase duas décadas, ele ainda apresenta quadros de estereotipia — comportamentos repetitivos decorrentes de estresse.

Hellen Cristina de Sousa, médica veterinária e chefe do núcleo de mamíferos, contou que os tratadores souberam que, no circo, os "treinadores" deixavam o elefante em cima de uma chapa quente, para que ele "dançasse". "Colocavam uma música e como a chapa estava quente, o elefante levantava uma patinha e outra, simulando, assim, uma dança. No entanto, isso causou pododermatite — inflamação nas patas. Vez ou outra, o grandão faz o movimento, repetidas vezes, como se estivesse lembrando o que passou", disse. 

 15/01/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - Zoológico de Brasília. Histórias dos bichos mais queridinhos do Zoo. Elefante Chocolate.
Chocolate ganhou esse nome porque nasceu um dia antes da Páscoa em 1992 (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

A profissional apontou que os resgatados sofreram tanto violência física quanto psicológica. "Existe o ditado de 'memória de elefante' e é isso que acontece com o Chocolate. Ele não esquece o que passou. Os elefantes têm memória excepcional", revelou. Outra característica que denuncia os maus-tratos é a falta do marfim, retirado dele, provavelmente, para que não tivesse as presas para se defender. 

O biólogo Raphael Camargo, supervisor do setor de mamíferos, conta que os visitantes percebem as marcas e, comumente, questionam. "Nós não sabemos como esses animais eram 'treinados' para apresentar os números ao público, mas o Chocolate, ainda hoje, sofre. Ele sempre está com pomada branca ou roxa pelo corpo, porque desenvolveu problemas emocionais, por causa do trauma, que fazem com que apareçam abcessos em seu corpo, principalmente nas patas e orelhas. Quando o público vê, fica curioso e pergunta", contou.  

Pequena guerreira 

Assim como o Chocolate, a hipopótamo Iuly carrega cicatrizes adquiridas no época em que teve rotina circense. Era mantida em um contêiner pequeno — quase que imobilizada — em meio às próprias fezes e urina. Por passar muito tempo presa na estrutura, acabava ingerindo os dejetos, o que, segundo os especialistas, fez com que seu desenvolvimento fosse afetado. A hipopótamo é muito menor que Bárbara, Catarina e Chumbinha, da mesma espécie dela e que estão na instituição de Brasília. 

 15/01/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - Zoológico de Brasília. Histórias dos bichos mais queridinhos do Zoo. Hipopótamo Lilly
A hipopótamo Iuly atende aos chamados dos tratadores (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

"Era um circo itinerante e nós não sabemos como era feito o manejo e alimentação dos animais. Por ter crescido confinada, Iuly não é bem desenvolvida estruturalmente. Ela não teve uma nutrição adequada, provavelmente não tomava banho de sol, e, por estar em um espaço limitado, não conseguia andar e expressar seu comportamento ", explicou Raphael. 

Hoje, Iuly vive bem, é um animal saudável, apesar da estrutura diferenciada das demais companheiras. Ela é um pouco menos sociável que Bárbara, Catarina e Chumbinha, por isso vive separada das colegas de espécie. A veterinária Hellen explicou que houve um período de estudo para tentar deixar todas juntas, mas não deu certo. Iuly prefere ficar sozinha, e está tudo bem. "Ela é mais tímida, pequenininha, os visitantes pensam, inclusive, que ela é filhote das outras. Ela é muito inteligente", disse. 

Livre das amarras 

O grande Thor, um rinoceronte-branco, é, aparentemente, o menos traumatizado do trio. Apesar de também ter passado por maus bocados, mostra-se extremamente sociável. Segundo o biólogo Raphael Camargo, de todos os animais de megafauna que há no Zoo, Thor é o que tem o comportamento mais tranquilo. 

 15/01/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - Zoológico de Brasília. Histórias dos bichos mais queridinhos do Zoo. Rinoceronte Thor.
Rinoceronte Thor foi o menos traumatizado do grupo e hoje é o mais sociável (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

"Todos os dias, os veterinários fazem com ele o condicionamento operante com reforço positivo — quando o animal recebe como recompensa algo que faz parte de sua alimentação após obedecer a um comando. O Thor tem uma conjuntivite crônica (que nada tem a ver com o período no circo). Diariamente, nós temos de fazer a limpeza dos olhos dele, passar soro fisiológico e aplicar colírio para que haja lubrificação, então o condicionamento contribui", explicou.   

Tamanha inteligência do grandalhão é comprovada continuamente. O rinoceronte dá a orelha, voluntariamente, para que o sangue seja coletado, quando é necessário passar por exames. Ele também deixa que seus espermatozoides sejam coletados, isso é necessário porque a espécie é considerada em extinção e faz parte de planos de conservação. 

 15/01/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - Zoológico de Brasília. Histórias dos bichos mais queridinhos do Zoo. Rinoceronte Thor.
inoceronte Thor foi o menos traumatizado do grupo e hoje é o mais sociável (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Sobre a idade do trio, que chegou desnutrido ao Zoo, sabe-se somente que Chocolate tem 32 anos. Ele foi, inclusive, "batizado" assim porque nasceu um dia antes do domingo de Páscoa daquele ano. No caso de Iuly e Thor, não há informações, mas não eram filhotes quando cruzaram os portões daquele jardim. 

Eles são espertos. Têm "aulas" de condicionamento" semanalmente e atendem os tratadores quando chamados por seus nomes. A reportagem pôde verificar a inteligência dessa turminha. Quando, por exemplo, Iuly era chamada, ela vinha lentamente, no próprio tempo, sem deixar de atender à convocação. Isso porque, assim como todos os seus demais vizinhos naquele local, ela vive, agora, com a liberdade de fazer o que quiser.

 

Lei

Desde fevereiro de 2018, o DF conta com a Lei 6113/2018, que proíbe a apresentação e a utilização de animais domésticos e da fauna silvestre nativos ou exóticos em espetáculos circenses ou congêneres realizados na capital federal. O texto prevê multa de 20 mil reais por cada espécime em situação irregular, além da apreensão do animal. 

Letícia Guedes
postado em 20/01/2025 06:00
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