
Vestido com a camiseta do Botafogo e cercado de quase 200 amigos, que cantaram, trocaram muitos afetos e se emocionaram, o poeta Vicente Sá — morto na última sexta-feira (24/1), aos 67 anos — teve o velório diferenciado, neste domingo (26/1), no Espaço Cultural Renato Russo (508 Sul). Das mais antigas amigas dele, Noélia Ribeiro explicou a agitação e o tom diferenciado do enorme grupo de admiradores que, em muitos momentos da vida, se encontraram fosse em rodadas de poesia ou ainda na animação da mesa de bar.
"Na hora do aperto, nós estamos sempre presentes. Todos se uniram, por exemplo, nos eventos que tiveram o objetivo de ajudar no tratamento do Vicente. Todos, convocados, todos apareciam. Somos da geração que tem força e é solidária o tempo todo. Temos, na verdade, nostalgia de uma época sem violência em que se criavam muitos eventos culturais na cidade", comentou.
No enorme encontro da 508 Sul, que contou com participação do amigos de Sá da época do Liga Tripa, entre outros, a poeta e escritora Flora Bennitez enfatizou que a amizade atravessou mais de 30 anos ("éramos amigos de rir, de cantar e falar muito"). Apesar de os encontros não serem constantes — quando seguiam a rota de idas ao Beirute e outros locais emblemáticos de Brasília —, Vicente Sá deixou grafada na memória um feito impressionante.
Acometida da doença de Lyme, à época de uma internação, a autora de Ata-me (livro de poesias suaves de observação) teve ocasional quadro da perda de memória, mas se recobrou movida pelo impacto de uma poesia de Sá. "No consultório, meu filho Renan me deu a seção cultural do Correio, em 2011, e de pronto — mesmo confusa até mesmo entre parentes — li um poema do Vicente Sá, e reconheci, pela admiração significativa do trabalho dele", contou. Entre muitas qualidades, Flora admirava Sá pela "liberdade de falar com leveza".
Entre 45 anos de amizade com Sá, desde a série do Concerto Cabeças, quando tinha 14 anos, o ator Murilo Grossi sublinhou, na despedida, a categoria de poeta que aderia em Sá — "a do poeta absoluto". Na definição de Grossi, Sá é visto como "ser deificado", que transcende, vagueia, imprime leveza e ironia. Nos últimos 10 anos, eram constantes as visitas para Vicente e a (agora) viúva Lúcia para trocas de comidas e troca de "receitas" de componentes puros e naturais de poesia. Certas vezes, Grossi foi a voz de Sá, na leitura esmerada de poemas recém-criados. Daí, ter dedicado a Sá um poema entregue à internet, que traz o trecho: "amor e sentido maior / este ser deificado não chega nem vai / Permanece".
Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular
Verônica Carriço, poeta e cantora da banda Mata Hari, dedicou-se à interpretação, no palco da 508 Sul, de Meu coração (poema extraído do livro Anjo Carmim). De Sá, guarda o ser "apaixonante, a sagacidade, a inteligência e o talento para criações instantâneas". Presente no chamado "chá das 5" do amigo, fazia revezamento nas visitas para o abatido Sá (que morreu de pneumonia e estava fragilizado pelo quadro de câncer). "Passei a admirar, cada vez mais, o coração imenso de Lúcia (esposa de Sá)", conta. Ainda abalada, a viúva Lúcia Leão, encerrou, ao Correio, a definição para a rede de amigos presente na 508 Sul: "Aqui está a geração de Aquarius".
Gêmeo de Brasília
Amigo por mais de 50 anos de Sá, Sérgio Duboc (do Liga Tripa) comentou que "Vicente Sá era um gêmeo de Brasília, nascido no 21 abril" e que "ele fez parte da cidade". Emblemático representante da geração mimeógrafo, Nicolas Behr divulgou pelas redes, sob o título O céu está em versos, homenagem do Coletivo Celeiro Literário Brasiliense, a postos para ressaltar poema de Sá: "Onde é que você mora, poeta / Eu não moro, me demoro quando me enamoro". Behr também esteve no Espaço Cultural Renato Russo, e observou que, do mundo, o amigo nada levou, "além do espírito". "Ficou tudo aqui: poesia, arte, muitas amizades e a alegria da informalidade de um poeta que ria de si mesmo. Ele deixa um filme bom", avaliou.
Aldo Justo, um dos fundadores do Liga Tripa, lembrou da contribuição de letrista de Vicente Sá, orbitando no grupo, "como respiro, à época da ditadura, presente em gramados e praças". "Incontáveis" anos de amizade ligaram o produtor musical e instrumentista Rênio Quintas a Sá. Na flauta, Rênio executou Se eu quiser falar com Deus (de Gilberto Gil). "No Vicente, sempre admirei o amor dele tanto pela beleza quanto pelo próprio sentimento do amor. Vicente tinha amor pela vida, pela poesia e era resistência", analisou.
Primeira esposa de Vicente, a atriz e produtora de cultura Dina Brandão também compareceu à despedida. À reportagem, lembrou de quando, adolescentes, moravam na 307 e 707 Sul, e cursavam o "científico", em 1974. "Ele sempre foi poeta. Me identificava muito com o que ele desenvolvia. Vicente era agregador, generoso, alegre, boêmio e seresteiro", descreveu. Muito livre para manter a disposição ávida na vida, o poeta e letrista demarcou um antes e um depois na cidade. "Considero nossa geração precursora da cultural em Brasília. Fazíamos tudo por amor à arte. Nós chegamos nos anos de 1960, com
Brasília criança", disse Dina. Na 508 Sul, neste domingo (26/1), Vicente Sá tornou-se estandarte de um estilo de vida e de celebração. "Ele bebia a vida até a última gota", concluiu Dina Brandão.