Construir vínculos verdadeiros pode transformar destinos, e, muitas vezes, isso começa por um gesto simples: estar presente. No Distrito Federal, o tempo médio de espera para a adoção de uma criança na primeira infância gira em torno de cinco anos. São 387 crianças e adolescentes que vivem em lares de acolhimento. Desses, 103 aguardam a adoção. Isso porque nem todos os que estão em lares podem ser adotados de imediato, porque o acolhimento é uma medida de proteção emergencial. Somente é aplicado em casos de suspeita ou comprovação de violação de direitos, como negligência, maus-tratos e abandono. O destino pode ser o retorno à família de origem ou a adoção.
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As violações podem ter sido praticadas pelo Estado, por mães, pais ou responsáveis, ou mesmo serem decorrentes de atitude da própria criança ou adolescente. O acolhimento pode ser feito em um abrigo institucional ou em família acolhedora (que é diferente de família adotiva), preparada e cadastrada para se responsabilizar, temporariamente, por cuidar das crianças ou adolescentes. Isso ocorre até o juiz decidir se o menor vai voltar para a família de origem ou se vai para adoção. Enquanto isso, vínculos afetivos podem florescer.
Apadrinhados com amor
Foi assim com Ludmila Miranda que, aos 16 anos, conheceu a madrinha, Kelly Cristina, por meio do programa de Apadrinhamento Afetivo do grupo Aconchego. Faltavam dois anos para deixar o abrigo onde vivia, mas ela tinha receio, pois, segundo Ludmila, existe um histórico de padrinhos abandonarem seus apadrinhados no caminho. "Não foi uma conexão de início, eu era muito acanhada, mas minha madrinha sempre se esforçou e nunca desistiu de mim", lembra. A relação entre as duas se fortaleceu ao longo dos anos.
Kelly, empresária, apoiou a jovem em cada etapa da transição para a vida adulta, inclusive nos momentos em que Ludmila batalhou por sua independência financeira. "Ela me ajudou muito no processo de sair do abrigo, mas sempre respeitou meu tempo e minhas escolhas", afirma. Mesmo quando, após os 18 anos, foi convidada a morar com a madrinha, Ludmila não aceitou. Preferiu seguir por conta própria. "A gente viaja, almoça juntas, nós temos uma conexão. Saber que, se algo der errado, eu a tenho e ajuda muito", diz. Aos 23 anos, Ludmila trabalha como assistente de operações e sonha em retribuir o apoio: "Um dia, quero ser metade do que ela é".
Há perfis que costumam permanecer por mais tempo no sistema de acolhimento. De acordo com a psicóloga do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) Andrea Peixoto, aqueles acima de 10 anos, grupos de mais de três irmãos e jovens com questões de saúde enfrentam maiores dificuldades para encontrar uma nova família. Para muitos deles, o apadrinhamento é uma forma de vivenciar vínculos fora das instituições.
Ronald Cândida, hoje com 21 anos e estudante de engenharia de software, chegou ao serviço de acolhimento ao lado do irmão. "Foi assustador e bem ruim no início, mas, depois, foi ficando mais tranquilo. Conheci muitas pessoas", relembra.
Entre elas, estavam seus padrinhos, o casal Luiz Augusto e Patrícia. A aproximação foi gradativa. "Eu nunca fui muito de conversar, mas eles foram compreensivos e não me pressionaram. Foram fundamentais para o meu desenvolvimento como pessoa", agradece. Quando deixou o acolhimento, Ronald enfrentou um novo desafio: a solidão de quem precisa começar a vida por conta própria. Mas ele não estava realmente sozinho. O padrinho seguiu por perto, oferecendo apoio e, hoje, é quem custeia sua faculdade. "Comecei o curso recentemente e sou muito grato por tudo. A esposa dele, minha madrinha, faleceu, mas me lembro do carinho e do cuidado que tinham por mim. Desde então, estamos construindo esse vínculo que vai ser para a vida toda". Há quatro anos, Ronald atua no serviço especializado em abordagem social, ajudando pessoas em situação de rua.
Dedicação
Mas para que essas conexões aconteçam, é essencial o papel de quem está nos bastidores — voluntários e profissionais, gente que dedica tempo, afeto e profissionalismo a essa missão.
Uma dessas histórias é a do advogado Hugo Damasceno Teles, 46, pai por adoção e voluntário na Organização não Governamental (ONG) Aconchego.
Ele e a mulher, Karina, conheceram o Aconchego em 2007, quando deram os primeiros passos no processo de habilitação para adoção. Durante o trâmite judicial, ao preencher o formulário inicial na Vara da Infância e Juventude, o casal foi orientado a participar dos encontros mensais do grupo de apoio à adoção e à convivência familiar e comunitária.
"Percebemos a importância dos debates, dos relatos e dos projetos para pessoas com histórias semelhantes à nossa", explica Hugo. A partir daquele momento, o casal passou a se envolver não apenas com as ações da ONG, mas também com a Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (ANGAAD). Hoje, Hugo celebra a continuidade desse trabalho, que culminará no Encontro Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (Enapa), a ser realizado em Brasília, de 14 a 16 de agosto.
Iniciativa privada
Empresas e instituições podem contribuir, por meio do programa de voluntariado Anjos do Amanhã, do TJDFT, que organiza ações em diferentes eixos para o desenvolvimento integral das crianças e adolescentes, como saúde, educação, cultura, esporte e profissionalização. Médicos, dentistas, psicólogos e pedagogos, entre outros especialistas, podem colaborar fornecendo atendimentos gratuitos, oficinas e mentorias. Empresas também podem participar ofertando cursos técnicos, atividades esportivas e oportunidades no mercado de trabalho. As ações variam entre doações de materiais e serviços especializados.
O Aconchego também desenvolve o Projeto Irmão Mais Velho, voltado a acolhidos em instituições, com a participação de estudantes do 9º ano e do ensino médio de escolas parceiras."(O projeto) visa à convivência comunitária, à construção de vínculos afetivos e formação de redes sociais, por meio da troca de experiências cotidianas, atividades lúdicas e culturais, contribuindo, sobretudo, para dirimir o preconceito", explica a presidente do Grupo Aconchego Soraya Pereira.
Apadrinhamento
Para a servidora pública Cassandra Santos, 54, de Águas Claras, o afeto é uma das ferramentas para mudar a vida dos acolhidos. Ela é madrinha no programa de apadrinhamento afetivo do Aconchego.
"À época, meus dois filhos eram adolescentes e eu pensei que seria bom para eles terem contato com outros da mesma idade e de outra realidade, para o desenvolvimento deles". "E também eu sabia da possibilidade de ajudar uma criança, servir de referência, mas sem a responsabilidade de uma adoção", completa Cassandra.
A servidora explica que o compromisso tem um impacto emocional profundo. "A gente se vincula bastante ao afilhado. Se ele não tivesse sido adotado, e tivesse completado 18 anos no lar, eu teria chamado para morar comigo. Seria uma consequência natural".
O papel do padrinho vai além da convivência, pois prepara também para a vida real. "Ser madrinha significa ser referência de afeto. Esses adolescentes, quando vão para o abrigo, estavam em situação de perigo ou foram abandonados, isso significa que eles não têm referência de carinho", explica.
Hoje, o afilhado de Cassandra mora nos Estados Unidos com uma família que adotou não apenas ele, mas também seus outros quatro irmãos.
Três perguntas para
Andrea de Paula Porto Fernandes Peixoto, psicóloga do TJDFT
Por que o processo de adoção ainda é considerado difícil e demorado no DF?
A adoção é uma medida excepcional, que deve sempre atender ao melhor interesse da criança e do adolescente. Uma das principais razões da demora é a incompatibilidade entre os perfis das crianças disponíveis para adoção e as expectativas dos adultos habilitados. Em um mundo ideal, cada família cuidaria de seus próprios filhos. Por isso, quanto mais políticas públicas existirem para garantir que as famílias de origem possam manter suas crianças, melhor. A adoção entra justamente quando isso não é possível, e deve ser cuidadosamente conduzida. Vale lembrar que o sistema de adoção é unificado em todo o Brasil. Só se busca uma família de outro estado caso não haja nenhuma habilitada na comarca da criança.
O que se espera de um pai ou mãe no processo de adoção?
Do ponto de vista objetivo, o processo de habilitação para adoção exige a apresentação de documentos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que compõem o processo judicial. Após a autuação, há uma análise psicossocial e, dentro de um prazo de até 120 dias, ocorre a sentença de habilitação. Uma vez habilitada, a família passa a integrar o sistema de adoção e entra na fila, aguardando o surgimento de uma criança com o perfil previamente indicado. Além dos requisitos formais, há critérios subjetivos importantes: é necessário que a família ofereça um lar seguro, tenha disponibilidade afetiva e esteja emocionalmente preparada para tornar-se pai ou mãe de um filho não idealizado.
Como as idealizações dos pais impactam a adoção de crianças do sistema de acolhimento?
O tema é delicado, mas a maioria dos adultos habilitados para adoção buscam substituir a filiação biológica. E mesmo quando são filhos biológicos, muitas vezes existe uma expectativa de que a criança venha ao mundo para atender aos desejos dos pais. Em muitos casos, os adultos têm dificuldade de se apropriar verdadeiramente desse filho e de enxergá-lo como alguém que vai se desenvolver a partir das próprias necessidades, e não das projeções dos pais. É fundamental que as famílias compreendam a história de origem dessas crianças. Vivemos em um país com racismo estrutural, e a maioria das crianças que estão no sistema adotivo são pardas e pretas, oriundas de núcleos familiares em que, muitas vezes, não há a presença de um pai, somente de mães solo. Entender e suprir a necessidade emocional da criança é essencial para que, mesmo inserida em uma nova família, ela tenha seus direitos resguardados.
*Estagiária sob a supervisão de Malcia Afonso
