AMOR ADOTADO

Conheça histórias de jovens que saíram de casas de acolhimento aos 18 anos

De 2024 até maio deste ano, 36 adolescentes deixaram instituições de acolhimento no DF por atingirem a maioridade. Para muitos deles, o desligamento — que deveria marcar o início da vida adulta com mais autonomia — representa, na prática, uma ruptura abrupta, marcada por insegurança e solidão

Luis Felipe sonha em ter seu próprio restaurante
 -  (crédito: Ana Carolina Alves/CB/D.A Press)
Luis Felipe sonha em ter seu próprio restaurante - (crédito: Ana Carolina Alves/CB/D.A Press)

“Os sonhos vão se apagando com o tempo por conta das dificuldades da vida adulta”, reflete David Alcides, 19 anos, que deixou o serviço de acolhimento em 2024, ao completar 18 anos. A frase resume a realidade vivida por muitos jovens com histórias parecidas. O momento que deveria marcar o início de uma nova etapa, com mais autonomia e oportunidades, muitas vezes se transforma em um salto no escuro, sem rede de apoio, estabilidade financeira ou perspectivas claras de futuro.

Em 2024, 22 adolescentes deixaram instituições de acolhimento do Distrito Federal por atingirem a maioridade. Entre burocracia, insegurança e o medo de fracassar, o desafio comum a todos eles é um só: construir uma vida adulta possível, ainda que isso, por enquanto, signifique apenas manter as contas pagas e a comida na mesa. Morador do Itapoã, David entrou no sistema aos 10 anos. Ao deixar a instituição, foi morar com a irmã de 25 anos, o que tornou a transição menos abrupta. Mesmo assim, o choque da nova rotina foi inevitável. “Lá dentro é tudo uma maravilha. Tem cuidadoras, comida pronta, roupa lavada. Aqui fora, se quiser jantar, tem que fazer. Se quiser roupa limpa, tem que lavar. E a máquina de lavar é cara”, brinca.

 11/07/2025 Bruna Gaston CB/DA Press. David Alcides
David Alcides trabalha em uma pizzaria e cursa o ensino médio (foto: Bruna Gaston CB/DA Press)

Hoje, David trabalha em uma pizzaria e cursa o ensino médio, mas conta que saiu sem preparo para lidar com tarefas básicas e burocracia. “No abrigo, não ensinam a pagar conta. É na marra que a gente aprende”, explica. Essa sensação de despreparo é frequente. A psicóloga Aline Ferreira, coordenadora do abrigo Lar São José, em Ceilândia Norte, critica a forma como o desligamento é tratado. “Esse bicho-papão dos 18 anos não pode continuar existindo. Hoje, com 17 anos e 11 meses, eles são prioridade. No dia seguinte, não são mais. Que conta é essa?”, questiona.

Para tentar suavizar o rompimento brusco, a equipe técnica do Lar São José costuma manter os jovens por mais alguns meses, até que haja segurança de ambas as partes. “Aqui, fazer 18 anos é só mais um aniversário. Procuramos acompanhá-los até que estejam realmente prontos para seguir com autonomia. Em média, permanecem por mais quatro meses, mas isso é por nossa conta, já que eles não são mais responsabilidade do Estado”, destaca a coordenadora.

Luis Felipe Barbosa, que completou 18 anos em maio, ainda vive o processo de desligamento. Ele foi para o acolhimento em janeiro de 2025 e encontrou no lugar uma nova forma de enxergar a vida. “Quando cheguei no abrigo, eu não tinha mais vontade de seguir vivo. Aqui foi onde eu arrumei um sentido para continuar vivendo”, diz. Foi também onde conheceu o que chama de família. “Sempre fui sozinho. E aqui são 12 acolhidos numa casa, mais duas cuidadoras. É impossível você ficar sozinho. Antes era só eu, agora tenho mais de 80 irmãos”, brinca.

Cristina Pereira acredita que um acompanhamento durante o período de desligamento é essencial
Cristina Pereira acredita que um acompanhamento durante o período de desligamento é essencial (foto: Fotos: Ana Carolina Alves/CB; Ana Carolina Alves/CB; Bruna Gaston CB/DA Press e Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Apaixonado por gastronomia, ele sonha em estudar, conquistar estabilidade e, um dia, retornar ao abrigo para mostrar sua vitória: “Quero voltar à minha casa e falar: um dia eu passei por aqui e hoje eu consegui tudo o que eu queria’. Esse é o meu sonho”. O maior desafio, para ele, é enfrentar o peso das decisões do futuro. “O difícil é pensar em quem eu vou ser daqui a 10 anos. Eu já errei uma vez, e quase perdi tudo. Agora, preciso de tempo para fazer diferente”, analisa. 

Foram 14 os jovens registrados neste ano que deixaram o acolhimento por atingirem a maioridade, até maio, e a expectativa é de que mais oito passem pelo mesmo processo até o fim de 2025, conforme dados da Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes-DF). Quem se prepara para esse processo é Ana Clara Alcântara, 17. Ela traça o momento com planos e um objetivo claro: reunir os irmãos em um novo lar. Atualmente no abrigo com o irmão mais novo, ela almeja alugar uma casa e construir, junto da irmã mais velha, uma vida estável e independente. Determinada, Ana adquiriu habilidades práticas, como cuidar da casa e poupar dinheiro, e traçou metas concretas: “Eu quero fazer faculdade de direito para ser advogada. Além de reunir minha família, esse é um outro grande sonho”.

Também aos 17, Ágatha Lima de Oliveira enfrenta a iminência da maioridade com uma mistura de medo e empolgação. “Me sinto assustada e com medo, mas também com ansiedade para viver essa experiência”, diz. Ela valoriza o apoio recebido no abrigo, mas sabe que o maior desafio será o desapego emocional do local onde viveu tantas experiências marcantes. Com planos de cursar medicina, alugar o próprio apartamento e conquistar estabilidade, Ágatha busca se preparar aos poucos para a nova fase. 
Para a promotora de Justiça Luisa de Marillac, da Promotoria de Defesa da Infância e da Juventude do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), ao atingir a maioridade, muitos jovens são simplesmente lançados à própria sorte. “A construção da autonomia exige um melhor desenho das políticas públicas. Muitos deixam os abrigos aos 18 anos sem o suporte necessário em áreas como moradia, emprego e renda, elementos fundamentais para qualquer início de vida adulta. Isso é especialmente crítico diante da imaturidade emocional e dos impactos da institucionalização”, alerta.

Apoio

A conselheira Luiza Martins, do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDCA), também alertou para a lacuna na proteção desses jovens. “Não existe uma política pública contínua e integrada que garanta um processo digno de saída das instituições, especialmente após a maioridade. As decisões tomadas nos sistemas de proteção afetam diretamente o desenvolvimento pleno dessas pessoas”, afirma.

Aline conhece de perto as dificuldades enfrentadas por jovens acolhidos ao completar 18 anos
Aline conhece de perto as dificuldades enfrentadas por jovens acolhidos ao completar 18 anos (foto: Ana Carolina Alves/CB)

Segundo ela, o principal entrave é a ausência de um olhar efetivo da sociedade e do Estado para quem ainda precisa de proteção, mesmo fora das instituições. “Algumas medidas urgentes seriam: o acompanhamento psicossocial das famílias dos egressos; a criação de rodas de conversa voluntárias entre jovens acolhidos e egressos durante a transição; a obrigatoriedade de busca ativa periódica pelos órgãos competentes, mantendo os dados atualizados por até três anos após a saída do sistema de acolhimento; e a inclusão de jovens egressos em políticas públicas de primeiro emprego e geração de renda”, propõe.

A experiência de Cristina Pereira dos Santos, 24 anos, mostra como o apoio no momento do desligamento pode fazer diferença. Seis anos após deixar o acolhimento, ela reconhece que teve sorte, mas também acredita que esse processo deveria ser mais estruturado para todos. “Seria ótimo se existisse um cursinho da vida adulta. Ninguém ensina isso. Falam sobre drogas, mas não ensinam a trocar o nome na conta de luz ou a fazer um contrato de aluguel. Eu tive apoio, mas quem não tem fica muito mais perdido”, enfatiza.
Essa perspectiva é compartilhada pelo advogado Francisco Eugênio Más, especialista em Direito da Família. Para ele, o Brasil ainda não possui uma política nacional específica voltada aos jovens egressos do acolhimento. “Após os 18 anos, muitos simplesmente se tornam invisíveis para o sistema. Falta continuidade no apoio e articulação entre os serviços”, ressalta. Ele destaca que esse momento é marcado por alta vulnerabilidade, com riscos de desamparo, insegurança habitacional, exclusão social e dificuldades no acesso ao mercado de trabalho.

Políticas 

Na tentativa de auxiliar nesse processo de transição e diminuir o sentimento de solidão entre esses jovens, nasce o Jovem em Movimento. Criado pelo Grupo Aconchego — que há mais de duas décadas atua com famílias adotivas e adolescentes acolhidos — o projeto surgiu da necessidade de oferecer suporte real e contínuo a jovens que estão prestes a deixar os abrigos, buscando acompanhar essa travessia com afeto e rede de apoio, oferecendo oficinas que vão do autoconhecimento à educação financeira. 

 09/07/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - Os desafios dos jovens em serviços de acolhimento ao completarem 18 anos.  Maria da Penha Oliveira, psicóloga e coordenadora do Jovem em Movimento.
Maria da Penha, psicóloga e coordenadora do Jovem em Movimento (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

A ideia veio do primeiro projeto, o Projeto Identidade e Promoção de Autonomia (Pipa), feito em 2023 em parceria com o Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDCA). A ação buscava desenvolver o processo de autonomia com adolescentes de 12 a 18 anos por meio de oficinas. “Eles tinham uma bolsa e aprendiam a administrar esse dinheiro. Alguns gastaram tudo no mesmo dia, outros economizaram. Tudo isso foi treinado para que ganhassem autonomia e pudessem gerenciar suas vidas”, conta a psicóloga e coordenadora do projeto, Maria da Penha Oliveira. 

A iniciativa foi um sucesso para os jovens, mas, mesmo assim, ela sentiu que faltou alguma coisa. “Foi frustrante porque demos a base e fomos embora. Queríamos algo mais consolidado e que pudesse acompanhar esses jovens pelo menos por um período”, avalia. Dessa etapa, foi criado o Jovem Movimento, que propõe o acompanhamento contínuo de jovens em processo de desligamento do acolhimento. “A autonomia não se constrói sozinha, ela se constrói nas relações. É preciso fortalecer essa rede de cuidados: saúde, habitação, educação, assistência”, detalha.

A proposta do Jovem Movimento é, além de promover oficinas que abordam desde temas emocionais até aspectos práticos da vida adulta, ao final, lançar uma política pública concreta. “A ideia é deixar um documento, uma metodologia possível. E construir essa travessia com apoio, com afeto, com rede. Para que esses jovens cheguem à vida adulta com dignidade”, explica.

O projeto é financiado por um edital público lançado em 2023 pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). A proposta do projeto foi selecionada e recebeu apoio financeiro por dois anos. A parceria também é feita com o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), por meio da Secretaria Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (SNDCA).

*Estagiária sob a supervisão de Malcia Afonso

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VT
postado em 21/07/2025 05:00
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