brasília

Crônica da cidade: Janelas iluminadas

Gosto de atravessar o Eixinho de carro quando a cidade desacelera e o vento seco escorrega pelas janelas abertas. As luzes dos postes formam um rio contínuo e, enquanto o carro avança, fico imaginando as histórias que se escondem atrás das cortinas.

Há noites em que Brasília parece um tabuleiro de luzes silenciosas. Os blocos — esses retângulos de concreto tão iguais por fora — guardam dentro de si mundos inteiros, universos que não se tocam, embora compartilhem a mesma parede. À distância, cada janela acesa é uma promessa de vida; cada janela apagada, um segredo guardado.

Gosto de atravessar o Eixinho de carro quando a cidade desacelera e o vento seco escorrega pelas janelas abertas. As luzes dos postes formam um rio contínuo e, enquanto o carro avança, fico imaginando as histórias que se escondem atrás das cortinas. Brasília, com sua arquitetura geométrica e seu ar de ordem, abriga um caos doce e humano que escapa à simetria dos pilotis.

Na 108 Sul, suponho que more um diplomata aposentado que ainda engoma as camisas todos os domingos, embora não tenha mais reuniões nem embaixadas pelo mundo para visitar. Talvez tome café na varanda às seis da tarde, ouvindo boleros antigos e se lembrando da mulher que o deixou por um escultor de Pirenópolis. Quando o sol se deita sobre o Eixão, imagino-o levantando o copo de uísque e brindando sozinho.

No bloco da 206 que dá pro Eixinho, talvez viva um casal gay que discute em voz baixa sobre a partilha do apartamento. O amor acabou, mas ninguém quer abrir mão de morar perto do Parque da Cidade, do Beirute e do Cine Brasília. O mais sensível, talvez canceriano, chora no banheiro; o aquariano finge ler o Correio que brigou para manter a assinatura em seu nome. O gato dorme entre os dois, alheio à harmonia falida da convivência.

Na Asa Norte, também pela 206, penso em uma estudante de psicologia da UnB tentando entender a própria cabeça enquanto ouve o choro do bebê do vizinho. Sonha em mudar o mundo, mas por enquanto se contenta em mudar a cor das paredes do quarto — magenta, a cor que, segundo o astrólogo que conheceu na Chapada, "acalma o espírito".

Mais adiante, na 114 Norte, imagino um senhor caminhando toda manhã no Parque Olhos D' Água, com o mesmo boné desbotado. Aposentado do Banco Central, cumprimenta cada árvore pelo nome — "Olá, ipê, firme e forte?". 

E há, claro, os anônimos que suponho existir: o entregador que atravessa os pilotis com fones de ouvido, sonhando com um futuro que ainda não sabe descrever; a enfermeira que chega do plantão do Hospital de Base e come bolo de padaria em frente à televisão; o menino que ensaia passos de dança na garagem, iluminado apenas pelos faróis dos carros que chegam; a viúva que passeia no Eixão aos domingos com uma cadela de raça que tem o nome de uma personagem de novela — pode ser Dara, Jade ou Porcina.

Brasília parece fria, mas é quente por dentro. É feita de ausências que se olham sem se ver, de histórias que coexistem no mesmo CEP sem jamais se cruzar. Há janelas onde o riso ecoa alto, e outras onde o silêncio pesa. E talvez seja isso o encanto e a solidão dessa cidade: cada bloco é um mosaico de vidas, cada apartamento uma ficção em andamento.

De longe, o conjunto de luzes parece harmônico — um grande organismo respirando. Mas, de perto, é tudo tão humano: amores em crise, jantares solitários, orações sussurradas, playlists de madrugada, sexo silencioso. Enquanto sigo de carro pela faixa central, com o cigarro aceso, o rádio baixo e as luzes passando como constelações de concreto, reflito sobre como Brasília é uma cidade que se revela pelas frestas.

Não é nos monumentos arquitetônicos tombados que mora sua alma, mas nas janelas iluminadas — essas pequenas confissões noturnas de que, mesmo cercados de concreto, ainda resistimos, cada um à sua maneira, tentando existir com um pouco de dignidade, um pouco de ternura, e a eterna esperança de que, amanhã, alguma luz volte a se acender.

 

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