
Jorge Henrique Cartaxo
Lenora Barbo
Especial para o Correio
“Brasília é tão artificial quanto devia ter sido o mundo quando foi criado”, disse a refinada e festejada Clarice Lispector quando da sua primeira visita à cidade, em 1970. Naquele primeiro olhar, ela se incomodou também com o silêncio de Brasília e com o fato, óbvio, de não haver ainda o “homem de Brasília”. Dona Leopoldina, em 1818, poucos meses depois de chegar ao Rio de Janeiro — então capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves —, em uma de suas cartas para Maria Luísa, sua irmã mais velha, casada com Napoleão Bonaparte, acostumada com a paisagem dos campos de neve que circundavam os Palácios de Hofburg e Schönbrunn nos longos invernos austríacos, registrou a sua primeira grande impressão do novo país: “Não existe silêncio no Brasil”. A natureza e as pessoas dos trópicos falam, cantam e recantam o dia inteiro. À noite, a própria floresta que então abraçava as cidades, as fazendas e os palácios tinham seus ruídos, cantos e movimentos.
Quando George-Eugène, o barão Haussmann, foi nomeado prefeito do Departamento do Sena por Napoleão III, em 1853, teve início a grande reforma de Paris: a criação da grande cidade iluminista e esplendorosa da França moderna. Napoleão I, em vários momentos, pensou em fazer de Paris a nova Roma dos Césares na Europa moderna. As guerras contínuas não permitiram. O Arco do Triunfo, erguido depois da vitória em Austerlitz, em 1805, foi apenas um dos indicativos dessa inspiração.
As doenças, epidemias, a insalubridade, esgotos a céu aberto, vielas e ruas estreitas e lúgubres, monturos malcheirosos expandindo desconforto, tifo e tétano; e, claro, as tensões políticas e as revoltas populares violentas — com destaque para a de 1848, que levou à morte mais de 19 mil franceses — indicavam a urgência da reconstrução da capital. Em 1832, a cólera havia tirado a vida de outros 20 mil. “Les Misérables”, de Victor Hugo, e “Les Mystères de Paris”, de Eugène Sue, são dois clássicos da literatura do século XIX que descrevem e denunciam a vida sórdida dos moradores de Paris naquele momento.
Com a determinação de Haussmann e o apoio de Napoleão III, em poucos anos os labirintos herdados dos tempos góticos e medievais deram lugar aos amplos boulevards, serviços de esgoto e abastecimento de água tratada e gás encanado. Os trens vindos do interior passaram a desembarcar dentro da cidade (Gare de Lyon e Gare du Nord). Os parques públicos Bois de Boulogne, Bois de Vincennes, Monceau e Montsouris completaram a nova paisagem.
Napoleão III e o Barão, mesmo que tenham construído a ainda mais encantadora cidade do mundo, não a fizeram sem críticas, cometendo injustiças e destruindo memórias. “A velha Paris não existe mais [...] Paris muda! Mas nada se move em minha melancolia! Palácios novos, andaimes, blocos, velhos subúrbios, tudo para mim se torna alegoria; minhas caras lembranças são mais pesadas do que rochas”, bradou o sempre intrépido Baudelaire em “Le Cygne” (1857).
No final do século XV, o Papa Sisto V iniciou uma grandiosa reforma em Roma. Antevendo o Renascimento, o surgimento das nações e dos Estados modernos, a Igreja Católica se preparava para os novos tempos, nos quais as cidades, mais do que defesa e segurança militar, seriam símbolos de ordem, cultura e saber. Assim, Roma refez os seus monumentos e cristianizou edificações pagãs. A estátua de Minerva no Capitólio, por exemplo, tornou-se um símbolo da Roma cristã. O mesmo aconteceu com vários obeliscos, transformados em cruzes ou pedestais para estátuas de santos.
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Novas pontes foram construídas, pântanos foram recuperados e urbanizados, e um novo sistema viário foi implantado e modernizado. A polícia na cidade foi reforçada para garantir a segurança dos moradores, visitantes e peregrinos. A Cúria foi reformada, visando maior harmonia na Igreja e melhor capacidade de gestão aos clérigos. Coube ao Papa Sisto VI, sobrinho do anterior, prosseguir no mesmo projeto, mandando construir também a notável Capela Sistina, de Michelangelo.
Em março de 1549, desembarcaram na Baía de Todos os Santos, na Ponta do Padrão, o governador-geral do Brasil Tomé de Souza e mais de mil homens, em suas três naus, duas caravelas e um bergantim. Por ordem de Dom João III, de acordo com o projeto do arquiteto Luís Dias, seria construída a primeira capital da América Portuguesa: São Salvador.
O historiador Cid Teixeira, especialista na história da Bahia, considera a criação da primeira capital do Brasil, no século XVI, uma decisão tão significativa quanto foi a construção de Brasília no século XX. Fruto de decisões geopolíticas — domínio físico e econômico do território e segurança militar —, as duas cidades trouxeram, ainda que em tempos distintos, inovações urbanísticas, arquitetônicas e impactos econômicos significativos. “Não se tratava de um povoado que foi crescendo. A cidade de Salvador não nasce de um passado, mas de um projeto de futuro que era construir o Brasil”, considera o antropólogo e historiador Antônio Risério.
Nas celebrações dos 50 anos de Brasília, o jornalista Etevaldo Dias, diretor-presidente da Santafé Ideias e Comunicação, com seus auxiliares Maurício Júnior, Flavio Gomes, Maria Luiza Abbott e Beatriz, coordenou uma grande pesquisa na The British Library, em Londres; na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro; e nas bibliotecas da Câmara e do Senado, em Brasília. Assim nasceu a bela publicação “Do Concreto ao Papel — O nascimento de Brasília na imprensa mundial”, de onde recolhemos, para este artigo, os textos publicados em alguns jornais do mundo noticiando e comentando a inauguração de Brasília e suas percepções. Merece referência também, nesta publicação, o texto precioso do jornalista Cláudio Kuck analisando e descrevendo o cenário da política internacional no final da década de 50 e início da década de 60 do século passado: “O mundo no nascimento de Brasília”.
A Voz — Lisboa, 22/04/1960
“Brasília — Fabulosa cidade moderna
Construída no centro geográfico do Brasil — tornou-se, desde ontem, a nova capital de um país imenso e irmão.
Papa concede Benção Apostólica e invoca abundantes graças à nação
‘Voltado para a Cruz da Descoberta e da Primeira Missa, que Portugal nos confiou para este dia solene, agradeço a Deus com a maior humildade o que foi feito’, disse o Presidente Juscelino Kubitschek no momento da inauguração.
Brasília, 21 — A partir de hoje, o Brasil tem uma nova capital [...] Brasília tem a forma de um avião, com a sua proa voltado para o norte — ali se erigiu o Palácio da Alvorada, residência oficial do Presidente da República. Na ‘cabina de comando’, a Praça dos Três Poderes. No ‘espaço dos passageiros’, o centro comercial, repartições públicas, cinemas e hotéis. No ‘leme’ as estações ferrovias e rodoviárias; ao leste, há o aeroporto, que já está construído; ao sul, indústrias e fábricas. Em redor da cidade, ficarão os bairros residenciais e as cidades-satélites”.
ABC — Madrid, 19/04/1960
“Brasília, cidade de vanguarda
O Palácio da Alvorada, com suas colunas surrealistas refletidas no espelho d’agua frontal
Certa manhã do mês de julho de 1930, encontrava-me numa carreta pelos pantanais do Estado de Mato Grosso quando avistamos, ao longe, uma outra carreta. [...] Nela viaja o doutor Toledo, governador do estado, com que conversei por mais de meia hora. Ao expressar minha admiração pelas paisagens maravilhosas daquele planalto, ele me disse que existia um projeto, lançado pelo grande patriota José Bonifácio em 1823, de fundar, no vizinho estado de Goiás, a futura capital do Brasil. O objetivo era atrair ao coração do país a corrente migratória e abrir para uma civilização moderna as fertilíssimas terras que eu acabara de conhecer.
Passaram 30 anos e o projeto de Bonifácio já é realidade. Brasília é o início de uma nova era, de uma ruptura e mutação de valores artísticos e humanos, uma revalorização, uma revalorização audaz para um novo tipo de civilização que, para nós europeus, arraigados em moldes talvez demasiado arcaicos, poderá ser surpreendente, mas que suscita profunda admiração”.
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Corriere Della Sera — Milan, 20/04/1960
“Amanhã nascerá Brasília, capital da esperança”
Grandiosos preparativos para a inauguração da moderníssima metrópole erguida em tempo recorde pela vontade de Kubitschek
Estamos no Planalto Central para assistir ao nascimento de Brasília que no dia 21 de abril, tornar-se-á a capital do Brasil. A cidade é um teorema de urbanismo demonstrado por Lucio Costa, e um esforço plástico de Oscar Niemeyer. Na Praça dos Três Poderes há dois edifícios do Parlamento: a Câmara dos Deputados, coberta por uma calota, e o Senado, por uma cúpula que parece um radar. Em frente à praça, nas duas margens do Eixo Monumental estão onze enormes caixotes rígidos e neutros: os Ministérios”.
Der Spiegel — Hamburg, 27/04/1960
Kubitschek — O gigante se move
Brasília, no planalto central de Goiás – distante a quase mil quilômetros da costa – foi inaugurada como a nova capital do país na semana passada. Desde 21 de abril de 1960, os 460 aniversários do descobrimento do Brasil pelo português Alvarez Cabral, o presidente Juscelino Kubitschek e o seu gabinete e estado maior — com um total de 2 mil funcionários públicos com as suas famílias — conduzem a história do Brasil, a partir de Brasília. [...] Segundo Kubistchek, ‘em vinte anos Brasília não só será a capital do quarto maios pais do mundo, mas também do quarto mais poderoso país do mundo — à frente dos demais, somente sendo superado pelos EUA, a União Soviética e a China”.
Il Gionale D´Italia — Rome, 21/04/1960
No aniversário de Roma, o nascimento de Brasília
Roma comemora hoje o 2.713º aniversário da sua fundação e o Prefeito recorda o fato com uma proclamação aos cidadãos
O aniversário foi celebrado com uma cerimônia realizada nesta manhã, às 11h, na presença das autoridades do governo e da cidade. A celebração adquiriu relevância particular pela comemoração do nascimento de Brasília, a nova capital do Brasil e, no decorrer da cerimônia, o presidente do Centro de Ação Latina, entregou ao encarregado de negócios do Brasil uma Loba de bronze e uma coluna do Foro Romano. A doação será levada à Brasília para testemunhar os sentimentos de amizade que ligam os dois povos”.
Herald Tribune — London, 22/04/1960
Brasília inaugura sua nova capital, Brasília
O presidente Juscelino Kubistchek comandou hoje a abertura oficial de Brasília como a nova capital federal do Brasil. ‘Acreditamos que cumprimos com nosso dever mais ousado e excepcional’, disse ele em seu discurso. [...]
Prédios já concluídos, entre eles o magnífico Palácio do Alvorada, em vidro e mármore (residência do Presidente); o Brasília Palace Hotel, com 180 quartos e cerca de 1.000 moradias particulares de baixo custo. O Palácio do Planalto (gabinete do Presidente), o Palácio da Justiça e os prédios subjacentes do Senado e da Câmara estão em fase de conclusão.
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Le Figaro — Paris, 21/04/1960
A nova capital do Brasil
“É um gigantesco mutirão em Brasília, dos quais os visitantes e os novos moradores continuam a afluir a um ritmo vertiginoso às vésperas da inauguração da nova capital do Brasil. É impossível estabelecer números. Duzentas, trezentas, quatrocentas mil pessoas talvez estejam por lá na quinta. Os aviões pousam de cinco em cinco minutos de todas as partes do país. [...] Não é por acaso que se constrói em quatro anos no deserto uma cidade de 500 mil habitantes funcionando perfeitamente”.
Le Monde — Paris, 22/04/1960
Desde a meia-noite, Brasília, construída em cinco anos, substitui o Rio de Janeiro como capital do Brasil.
Em missa à meia-noite de ontem em Brasília, aos pés da cruz diante da qual o padre Henrique de Coimbra celebrou a primeira missa em 1500 e ao retumbar do hino nacional, o Papa saudou o povo brasileiro e o seu legado. Hoje, quinta-feira, o Congresso reunido em sessão solene, inaugura-se a nova capital. Desfile militar, corridas e concerto sinfônico integram as celebrações. Nada faltará para marcar de forma digna o triunfo da grandeza.
Le Soir — Brussels, 21/04/1960
Brasília, capital do século XXI
Após nós termos deixado Minas Gerais, há uma hora, o avião sobrevoa um deserto, uma espécie de tundra com vegetação esverdeada, atrofiada, monótona e cansativa. Em seguida, ela aparece de repente, gigantesco formigueiro no meio do cerrado, deixando entrever na algazarra de seu canteiro a visão fulgurante do futuro”.
El Nacional — Caracas, 21/04/1960
“Com o império da história, celebrou-se, hoje, a inauguração de Brasília. Uma vez mais, diga-se, o homem tomou o lugar do mito. Num gesto em que os rugidos dos aviões e dos tratores, o planejamento moderno da conquista e colonização penetra em um continente virgem[...] No planalto de Goiás, Brasília fecha um capítulo de uma lenda voraz, incorpora ao Novo Mundo a quarta parte do seu território, e coloca o Brasil, após quatro séculos de isolamento, dentro de si mesmo”.
Newsweek — New York, 25/04/1960
Faltando quinze minutos para a meia-noite, nesta quinta-feira, o Cardeal Manuel Cerejeira, de Lisboa, iniciaria uma enorme missa ao ar livre, na mais nova, mais destacada cidade do Brasil. Ao erguer a hóstia à meia-noite, todas as luzes da cidade e grandes holofotes ao redor dos prédios públicos e ascenderiam, revelando o sonho dourado do Presidente Juscelino Kubistchek se materializando. Naquele momento, em 21 de abril, Brasília, a metrópole avant-garde surgindo sobre um planalto selvagem se gorna a capital federal”.
Uma cidade — sua construção ou seu refazimento —, como qualquer obra humana, é a intervenção da vontade sobre aquilo que não existe. Clarice viu em Brasília artificialidade e silêncio. Leopoldina, no Rio de Janeiro de Dom João VI, desejou o silêncio da sua distante Viena. Baudelaire se deparou com a melancolia ao contemplar a exuberância da Paris de Haussmann. Sisto V queria sua cidade pronta para o Renascimento que se anunciava. A Salvador de Tomé de Souza inaugurou o domínio decisivo de Portugal em sua colônia na América.
A Brasília de 1960, como festejado no Brasil e no resto do mundo, era ousadia, desenvolvimento, crescimento econômico, expansão e beleza. Alumbramento e esperança!
Com esse artigo encerramos a nossa série que oferecemos como celebração e homenagem aos 65 anos de Brasília, do Correio Braziliense e da fundação, por JK, do Instituto Histórico e Geográfico de Brasília.
Jorge Henrique Cartaxo é jornalista e Diretor de Relações Institucionais do IHGDF
Lenora Barbo é arquiteta e Diretora do Relações Institucionais do IHGDF

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