amor além do cuidado

Série do Correio conta como uma grande amizade pode surgir do cuidado

O laço entre a atleta paraolímpica Alanna Evangelista e a fisioterapeuta Cristina Rosa de Souza foi atado em um momento de adversidade, mas transformou a vida das duas e extrapolou os corredores do HUB

A Praça Somos Todos HUB, no Hospital Universitário de Brasília, é ponto de encontros e reencontros. Está sempre movimentada. Foi ali que, após meses de distância física, Alanna Evangelista, 27 anos, e Cristina Rosa de Souza, 46, abraçaram-se e mataram um pouco da saudade. O lugar, estratégico, traz memórias afetivas para ambas. Afinal, foi nos corredores da enfermaria cirúrgica do HUB que elas se conheceram e construíram um laço atado com firmeza. É o que mostra a terceira reportagem da série Amor além do cuidado, que conta histórias — de amor, amizade e compaixão — traçadas nos hospitais do Distrital Federal.

Tudo começou em 18 de agosto de 2022, quando Alanna, à época estudante de química e competidora de handebol, foi submetida a uma cirurgia delicada, no HUB, para tratar as dores de uma condição conhecida como hipertensão intracraniana idiopática. Devido a complicações no procedimento, a jovem sofreu uma lesão na coluna que a deixou tetraplégica. "Foi um choque muito grande. Mas eu sou uma pessoa com 'a cabeça muito feita'. Então, quando soube, pensei 'tudo bem, se é o que Deus reservou para mim, que seja. Vamos ver o que dá para fazer agora'", conta.  

Dias após a cirurgia, ainda internada, Alanna foi encaminhada à fisioterapia. Lá conheceu Cristina, a quem hoje se refere como anjo da guarda. "Lembro que cheguei um pouco arisca para a primeira sessão, porque chorava de dor. Ela entendeu e soube como conduzir o processo. Começamos a conversar, e Cris me perguntava sobre o que eu gostava. Falamos de arte e, em determinado momento, ela pediu para eu escolher uma boa música e tentar relaxar. Escolhi Clair de lune, um clássico francês de que gosto muito. Então, fui criando confiança nela", recorda. 

Arquivo pessoal -
Fotos: Arquivo pessoal -
Ed Alves/CB/D.A Press -
Ed Alves/CB/D.A Press -

Em cerca de três meses, a jovem começou a retomar os movimentos dos braços e passou a se locomover de cadeira de rodas. A mobilidade das pernas, no entanto, não voltou. "Houve uma ocasião em que ela até conseguiu dar alguns passos com um andador, mas uma mudança no quadro e outra internação a deixaram paraplégica, condição que os médicos entendem ser permanente", explica a fisioterapeuta da enfermaria cirúrgica. Alanna, no entanto, não se abateu. Com as sessões diárias de fisioterapia e o incentivo de Cris, a paciente voltou a treinar. Dessa vez, arremesso de peso, halterofilismo e lançamento de dardos. 

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"The queen"

Moradora de Samambaia, Alanna conta com o transporte do programa DF Acessível para conseguir chegar aos treinos na Associação de Centro de Treinamento de Educação Física Especial (Cetefe), na Asa Sul. Como lhe são permitidas apenas duas viagens por dia, qualquer outra situação na qual precise se deslocar vira um desafio, incluindo os carros por aplicativo que, muitas vezes, se recusam a transportá-la. A mãe, Cícera Evangelista, 61, é quem acompanha a filha a todos os lugares. "Quando estamos na rua, eu ando rezando para não deixá-la cair", diz a aposentada. Durante a conversa, Alanna acrescenta "minha mãe é uma guerreira". 

Nesse contexto, o carinho e a amizade de Cris trouxeram à família — formada apenas por mãe e filha — aconchego. "Não temos outros parentes, assim, não tínhamos ninguém para conversar, além de nós duas, no início da internação. Foi aí que ela (Cris) chegou e começou a puxar assunto, me fez criar laços com o restante da equipe também. Acabamos formando uma grande família, tanto que me senti mais à vontade para fazer piadinhas com os enfermeiros e estagiários. Colocava apelidos em todo mundo", conta Alanna. A fisioterapeuta, que tinha um broche de coroa em seu jaleco, ganhou o apelido mais especial. "The queen", a rainha, em inglês. 

Além do incentivo para voltar a treinar, o carinho da profissional aliviava os dias das sessões mais intensas. "Ela sempre chegava e me abraçava, escutava meus desabafos. Até hoje, quando bate o desânimo ou algo me incomoda, a Cris é a primeira pessoa a quem recorro", destaca a jovem. Em certa ocasião, ainda durante a internação, Alanna confidenciou à fisioterapeuta o desejo de sair, por alguns minutos, do hospital. "Queria olhar a rua, ver gente e tomar um ar. Nisso, ela (Cris) falou 'pode deixar, vou dar um jeito'", conta. E deu. Com uma autorização do HUB, a paciente teve o pedido atendido.   

Perspectivas

Hoje, Alanna segue com o tratamento na Rede Sarah, e as visitas ao HUB tornaram-se esporádicas. A amizade, porém, extrapolou os corredores da fisioterapia. "A gente mantém contato constante. Ela sabe da minha vida, eu sei da vida dela e, sobretudo, acompanho toda essa trajetória de atleta. Ela deixou de ser minha paciente e se tornou minha amiga", afirma Cris. Para o profissional, o bom humor e a determinação de Alanna deixaram o legado de dias de trabalho mais leves. "Nossa interação trazia alegria às sessões. Eu sentia muita satisfação e orgulho ao ver a garra e o esforço dela para aderir à reabilitação", elogia.

Com a paraplegia, Alanna precisou trancar a graduação em química, que, mais para frente, pretende retomar. O foco profissional, no entanto, mudou. Apaixonada por esportes, a jovem se tornou atleta paraolímpica. Atualmente, é campeã brasileira recordista no arremesso de peso, além de terceira colocada no lançamento de dardos. Ainda este ano, ela vai para o segundo campeonato nacional para tentar bater mais um recorde (no arremesso de peso) e ser convocada para os Jogos Parapan-Americanos, previstos para ocorrer em 2026 na Colômbia. "Eu sonho alto, quero ir para as Olimpíadas e ser a melhor do mundo", destaca. 

Cris segue na torcida. "Sei todas as medalhas que ela tem e as que almeja conquistar. Estamos sempre conversando. Falamos de viagens, da vida pessoal e de sonhos. Um dia ainda vamos viajar juntas", conta a fisioterapeuta. No último encontro, na Praça Somos Todos HUB, a profissional trouxe, da Itália, uma lembrança especial para a amiga, um terço, que Alanna fez questão de colocar prontamente no pescoço. Olhando-a nos olhos, Cris se declara: "Admiro muito sua determinação, bom humor, a resiliência e a capacidade de confiar e saber que as coisas ficarão bem. Tenho orgulho de ti". 

Questionada sobre qual palavra usaria para descrever Alanna, Cris não pensou duas vezes. "Coragem!". 

 


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